terça-feira, 19 de julho de 2022

A Vida no Céu | Quinto capítulo

Ilustração: A. D.

(Magia: chama-se magia à forma como o sonho interfere com a realidade, modificando-a. O céu foi sempre um território propenso à magia. Em quase todas as antigas religiões, magos, profetas e deuses manifestavam-se a partir do céu, ou regressavam ao céu depois de se manifestarem. Magia é haver tanto céu.)

Aimeé imaginara um plano para resgatar o meu pai e o levar de volta a casa. Estava tão entusiasmada enquanto o apresentava, rindo e gesticulando, que eu tive dificuldade em prestar atenção ao que dizia – perdia-me nos gestos dela, na luz que fluía dos seus olhos. Quando se calou, Sibongile, a sangoma, esticou os braços para trás, como a espreguiçar-se, e suspirou:
Absurdo. Tão absurdo que talvez resulte.
Pedi-lhe que repetisse tudo. Aimée riu-se e repetiu:
Vou pedir ao meu irmão que entre no computador central do Paris e simule um incêndio no Le Fantôme. Bombeiros e polícia correrão até lá. Boniface irá precisar da ajuda de todos os seus homens para ocultar as máquinas e salvar o lucro do dia. O teu pai ficará sozinho. Eu e a Sibongile iremos buscá-lo. Tu estarás na Maianga, à nossa espera, com tudo preparado para partirmos. Quando Boniface e a sua quadrilha derem por isso já estaremos muito longe.
Estaremos?!
Claro. Eu vou com vocês.
Não vais não. Não podes.
Não posso?
Não, sem a autorização dos teus pais. Seria sequestro.
Deixo uma carta a dizer-lhes que parti por minha livre vontade.
Não. Sinto muito. Não posso permitir isso.
Aimée lançou-me um olhar furibundo e calou-se. Pouco depois levantou-se. Despediu-se de Sibongile com três beijos na face e foi-se embora sem sequer me dirigir palavra. Fiquei atordoado:
Não te preocupes – tranquilizou-me Sibongile. – Amanhã já lhe passou.
Efetivamente, na manhã seguinte, estava eu ocupado a descascar batatas, nas cozinhas, quando o meu telefone tocou. Reconheci a voz de Aimée, muito animada:
Conversei com o meu irmão. Ele topa. Consegues ter a tua balsa pronta para zarpar esta noite?
Esta noite?!
Hoje é sexta-feira. Le Fantôme vai estar cheio. Boniface terá muito mais trabalho para controlar os danos. Vai precisar de todos os seus homens.
Isso é verdade.
E então?
Disse-lhe que sim e desliguei. Manu reparou no meu nervosismo:
Aconteceu alguma coisa?
O cozinheiro sempre demonstrara grande afeição por mim. Decidi contar-lhe tudo. Escutou-me espantado:
Conheço o Boniface. Homem muitíssimo perigoso.
Recomendou-me mil cuidados. Disse-me que fosse preparar a balsa. Pagou-me pelo meu trabalho na cozinha naquele último mês e acompanhou-me ao mercado. Comprei água e mantimentos para a viagem.
Despedi-me dele no aeroporto, bastante emocionado:
Voltaremos a ver-nos?
Certamente, amigo. Mas não te aconselho a regressar ao Paris. Pelo menos enquanto Boniface estiver por aqui. Ele não te perdoará.
Passei a tarde a aparelhar e afinar a Maianga. Testei os motores e os sistemas de navegação. Estava nisto quando escutei o gemido de sirenes. Liguei para Aimée:
O que se passa?
Escutei a respiração dela no meu ouvido:
És tu? És tu? – Quase lhe podia sentir o hálito quente e o pulsar do coração aflito. – Tivemos de antecipar toda a operação. A Maianga está pronta para descolar?
Ao fundo, do outro lado do telefone, soavam gritos remotos. Mais próximo, uma voz de homem cantarolava em português uma canção que eu conhecia muito bem: ...Se Luanda te encher de emoção / Se o povo te impressionar demais / é porque são de lá os teus ancestrais... O meu pai, Júlio, costumava cantar essa canção, em surdina, para me acalmar, ou para se acalmar, sempre que nos encontrávamos numa situação difícil.
É o meu pai? – gritei. – O meu pai está contigo?
Sim, fica tranquilo, correu tudo conforme o previsto e ele parece bem. A Maianga está pronta para voar?
Disse-lhe que sim. Abandonar o Paris é fácil, não precisamos de passar pela polícia de fronteiras, nem existe qualquer controlo. Entrar, pelo contrário, pode ser muito difícil. Os agentes exigem um documento de identidade com fotografia. Trata-se de uma manobra para dificultar a entrada dos pobres, pois a maioria dos balseiros, em particular dos filhos do céu, não possui documento algum. Em Luanda, felizmente, produzimos papel. Trabalhamos com papel. Todos nós dispomos de passaportes atualizados. Isso impressiona muito os estrangeiros. Liguei para a torre de controlo. Uma voz entediada respondeu-me que sim, que estava autorizado a largar âncora quando quisesse. Não havia nenhuma outra balsa em manobras e o céu estava limpo, com uma firme corrente ascendente:
Um céu de anjos – disse a voz. – Façam boa viagem.
Seguiram-se minutos de extrema ansiedade. Várias vezes pensei em saltar, ir ao encontro dos fugitivos, mesmo sabendo que seria um disparate. Então vi-os: corriam ao longo da pista. Aimée, de mochila às costas, arrastava o meu pai pela mão direita. Júlio, com o braço esquerdo preso ao peito, parecia atónito e estremunhado, como se tivesse invadido um sonho alheio. Sibongile seguia um pouco atrás dos dois, empurrando um carrinho de supermercado cheio de sacos. Logo a seguir vi outro, um sujeito alto, de cabeça rapada, todo vestido de preto. Ultrapassou a sangoma e preparava-se para deitar a mão ao meu pai quando um gigante saltou de trás de um contentor e o derrubou com um soco.
Caramba, e que soco!
O homem caiu de costas e já não se levantou.
O gigante voltou-se para mim e acenou sorrindo. Era Manu. Desci as escadas de corda e abracei-me ao meu pai. Aimée sacudiu-me:
Rápido! Eles estão aí...
Olhei para trás e vi avançar um grupo de três homens. Manu intercetou-os. Dois recuaram, assustados. O que parecia ser o chefe, a julgar pelas ordens que gritava, ainda tentou lutar. Aconteceu-lhe o mesmo que ao primeiro. O punho direito do cozinheiro atingiu-o no queixo, como uma martelada, e ele foi atirado para longe. O tumulto atraiu a atenção da polícia. Ajudei o meu pai a subir as escadas. Quando cheguei ao convés pude ver que o porto se enchia de polícias. Gritei a Aimée que soltasse as amarras e corri para a cabina de pilotagem. Em menos de trinta segundos estávamos a navegar, uns cinquenta metros acima do fulgor do Paris. Lancei um olhar para o convés, à procura do meu pai, e dei com Aimée.
O que fazes aqui?!
O que faço aqui?
Encarou-me furiosa:
Viste aqueles brutos? Querias que eu ficasse lá em baixo? Sabe-se lá o que fariam comigo.
O que fariam contigo? Pelo amor de Deus, aquilo está cheio de polícias. Vão prender os gorilas do Boniface. Talvez prendam também o Manu durante dois ou três dias. A ti, o pior que te poderia acontecer seria levarem-te pelas orelhas até ao apartamento dos teus pais.
OK! Desculpa por te ter ajudado!
Gritou isto, enfurecida, e voltou-me as costas. Estabilizei a balsa a favor do vento, numa velocidade muito razoável, e fui procurar o meu pai. Encontrei-o sentado num dos sofás da biblioteca, com a mesma expressão de alheamento com que o vira a correr minutos antes. Sibongile estava sentada diante dele:
Acho que o drogaram – disse-me. – Imagino que costumavam drogá-lo para que respondesse às pessoas.
Como se estivesse em transe?
Como se estivesse?! Talvez estivesse mesmo. Há substâncias que nos ajudam a entrar em transe.
Não quero discutir isso consigo. Só quero saber se vai ficar bem.
Não sei. Vou dar-lhe um chá, e depois deixamo-lo descansar. Amanhã veremos.
Aimée interrompeu-nos:
Há uma balsa atrás de nós!
Tens a certeza?
Sim, vi-a largar do Paris.
Corri até à cabina de pilotagem. O Paris estava já muito distante, uma centelha prateada a flutuar no horizonte. Acima dele destacava-se uma mancha vermelha. Fui buscar os binóculos. Era uma balsa ligeira, aquilo a que nós, os filhos do céu, chamamos uma lancha. São pequenos balões rígidos, muito rápidos, alimentados a gasóleo, combustível raro e caríssimo. As lanchas podem ser usadas para salvamentos ou para transporte de passageiros entre os grandes dirigíveis. Infelizmente, ficaram também famosas por servirem a piratas para manobras de abordagem. Têm um contra: não possuem muita autonomia. Correm uns trinta minutos, no máximo, e logo morrem. Aquela deveria estar a cerca de nove milhas. Levaria pouco mais de vinte minutos para nos alcançar, a menos que conseguíssemos ir um pouco mais depressa. Aumentei a velocidade, sabendo que, com isso, iria esgotar as baterias muito rapidamente.
Aimée compreendeu o perigo:
Tens armas, algum instrumento com que nos possamos defender?
Armas? Não. O meu pai ensinou-me que a violência é sempre uma capitulação da inteligência. Teremos de nos defender com a cabeça.
Espero que tenhas a cabeça muito dura.
A lancha avançava. Crescia. Com os binóculos li o nome dela no casco: Port-au-Prince. Vi que transportava três homens. Um deles agitava uma espingarda de caça submarina, com arpão. Pouca gente no céu dispõe de armas de fogo. Os grandes dirigíveis possuem um pequeno arsenal, e os jovens recebem exercício militar, de forma a poderem fazer frente a eventuais ataques de piratas ou de quaisquer outros inimigos. Na verdade, ameaças remotas. Os salteadores não se arriscam a atacar cidades importantes. A polícia, no dia a dia, usa apenas cassetetes e algemas, o suficiente para combater rixas de bar ou repor a ordem entre casais desavindos.
A lancha estava tão próxima que era possível reconhecer o rosto dos nossos perseguidores. Os três homens riam às gargalhadas. Gesticulavam obscenidades. Aimée estava pálida:
Vão abalroar-nos!
Um dos piratas puxou de um megafone:
Só queremos O Voador. Entreguem-nos o homem e podem partir em paz.
Gritei, desesperado:
Não! Para que querem o meu pai?
O Voador! O Voador! Só queremos O Voador!
Estavam a menos de trinta metros. A menos de vinte metros. Então, quando tudo parecia perdido, a lancha abrandou e deteve-se, num golpe seco, adernando para o lado direito. O sujeito que tinha nas mãos a espingarda de caça submarina perdeu o equilíbrio. Endireitou-se de um salto, ergueu a arma e disparou. O arpão saltou na direção do meu peito. Quando parecia que me iria atravessar, foi travado pelo cordel de nylon que o prendia e saltou para trás. Perdi o fôlego:
Caramba! Pode dizer-se que vi a morte presa por um fio.
Voltei à cabina de pilotagem e reduzi a velocidade, para poupar as baterias. Não queria ficar sem energia a meio da noite. A mesma balsa que Boniface já deveria ter enviado para recuperar a lancha rápida poderia continuar depois à nossa procura. Vimos a Port-au-Prince dissolver-se ao longe, enquanto o sol desaparecia, lá em baixo, entre um incêndio de nuvens.
Abracei Aimée. Ela tremia:
Então – posso ficar?
O que vais dizer aos teus pais?
Deixei-lhes uma longa carta, explicando o quanto é importante para mim fazer esta viagem. Espero que compreendam.
Espero que não me mandem matar. Levamos o meu pai de volta a Luanda e depois regressas tu ao Paris – OK?
Nem pensar! Eu vou com vocês procurar a Ilha Verde.
Não existe nenhuma Ilha Verde.
Há pessoas, saudáveis, que se convencem de que têm um tumor no cérebro. Esse tumor imaginário incomoda-as e assusta-as, destrói-lhes a tranquilidade, tanto quanto um tumor real. A Ilha Verde é o meu tumor imaginário. Como poderei ter a certeza de que não existe se não for à procura dela?
Baixei a voz:
Também eu sofro de curiosidades e de inquietações, mas neste momento são outras. O interesse dos piratas no meu pai, por exemplo. Não te parece excessivo?
Como assim?
Boniface pode ter visto no meu pai a oportunidade de ganhar mais alguns trocos, drogando-o, servindo-se dele como de um xamã amestrado. Não creio, porém, que se desse ao trabalho de nos perseguir, enviando atrás de nós uma lancha rápida. Isso ficou-lhe caro. E o que faria com Júlio? Pagaria uma fortuna para que o deixassem entrar sem documentos no Paris? Levá-lo-ia numa balsa, de aldeia em aldeia, para o mostrar ao povo, como uma curiosidade de feira?
Tens razão – concordou Aimée. – Não faz sentido.
Pois não. Há mais alguma coisa. Ele precisa do meu pai, e eu não sei porquê.

José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu

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