Ilustração: A. D.
(Magia:
chama-se magia à forma como o sonho interfere com a realidade,
modificando-a. O céu foi sempre um território propenso à magia. Em
quase todas as antigas religiões, magos, profetas e deuses
manifestavam-se a partir do céu, ou regressavam ao céu depois de se
manifestarem. Magia é haver tanto céu.)
Aimeé
imaginara um plano para resgatar o meu pai e o levar de volta a casa.
Estava tão entusiasmada enquanto o apresentava, rindo e
gesticulando, que eu tive dificuldade em prestar atenção ao que
dizia – perdia-me nos gestos dela, na luz que fluía dos seus
olhos. Quando se calou, Sibongile, a sangoma, esticou os braços para
trás, como a espreguiçar-se, e suspirou:
– Absurdo.
Tão absurdo que talvez resulte.
Pedi-lhe
que repetisse tudo. Aimée riu-se e repetiu:
– Vou
pedir ao meu irmão que entre no computador central do Paris e simule
um incêndio no Le Fantôme. Bombeiros e polícia correrão até lá.
Boniface irá precisar da ajuda de todos os seus homens para ocultar
as máquinas e salvar o lucro do dia. O teu pai ficará sozinho. Eu e
a Sibongile iremos buscá-lo. Tu estarás na Maianga, à nossa
espera, com tudo preparado para partirmos. Quando Boniface e a sua
quadrilha derem por isso já estaremos muito longe.
– Estaremos?!
– Claro.
Eu vou com vocês.
– Não
vais não. Não podes.
– Não
posso?
– Não,
sem a autorização dos teus pais. Seria sequestro.
– Deixo
uma carta a dizer-lhes que parti por minha livre vontade.
– Não.
Sinto muito. Não posso permitir isso.
Aimée
lançou-me um olhar furibundo e calou-se. Pouco depois levantou-se.
Despediu-se de Sibongile com três beijos na face e foi-se embora sem
sequer me dirigir palavra. Fiquei atordoado:
– Não
te preocupes – tranquilizou-me Sibongile. – Amanhã já lhe
passou.
Efetivamente,
na manhã seguinte, estava eu ocupado a descascar batatas, nas
cozinhas, quando o meu telefone tocou. Reconheci a voz de Aimée,
muito animada:
– Conversei
com o meu irmão. Ele topa. Consegues ter a tua balsa pronta para
zarpar esta noite?
– Esta
noite?!
– Hoje
é sexta-feira. Le Fantôme vai estar cheio. Boniface terá muito
mais trabalho para controlar os danos. Vai precisar de todos os seus
homens.
– Isso
é verdade.
– E
então?
Disse-lhe
que sim e desliguei. Manu reparou no meu nervosismo:
– Aconteceu
alguma coisa?
O
cozinheiro sempre demonstrara grande afeição por mim. Decidi
contar-lhe tudo. Escutou-me espantado:
– Conheço
o Boniface. Homem muitíssimo perigoso.
Recomendou-me
mil cuidados. Disse-me que fosse preparar a balsa. Pagou-me pelo meu
trabalho na cozinha naquele último mês e acompanhou-me ao mercado.
Comprei água e mantimentos para a viagem.
Despedi-me
dele no aeroporto, bastante emocionado:
– Voltaremos
a ver-nos?
– Certamente,
amigo. Mas não te aconselho a regressar ao Paris. Pelo menos
enquanto Boniface estiver por aqui. Ele não te perdoará.
Passei
a tarde a aparelhar e afinar a Maianga. Testei os motores e os
sistemas de navegação. Estava nisto quando escutei o gemido de
sirenes. Liguei para Aimée:
– O
que se passa?
Escutei
a respiração dela no meu ouvido:
– És
tu? És tu? – Quase lhe podia sentir o hálito quente e o pulsar do
coração aflito. – Tivemos de antecipar toda a operação. A
Maianga está pronta para descolar?
Ao
fundo, do outro lado do telefone, soavam gritos remotos. Mais
próximo, uma voz de homem cantarolava em português uma canção que
eu conhecia muito bem: ...Se Luanda te encher de emoção / Se o
povo te impressionar demais / é porque são de lá os teus
ancestrais... O meu pai, Júlio, costumava cantar essa canção,
em surdina, para me acalmar, ou para se acalmar, sempre que nos
encontrávamos numa situação difícil.
– É
o meu pai? – gritei. – O meu pai está contigo?
– Sim,
fica tranquilo, correu tudo conforme o previsto e ele parece bem. A
Maianga está pronta para voar?
Disse-lhe
que sim. Abandonar o Paris é fácil, não precisamos de passar pela
polícia de fronteiras, nem existe qualquer controlo. Entrar, pelo
contrário, pode ser muito difícil. Os agentes exigem um documento
de identidade com fotografia. Trata-se de uma manobra para dificultar
a entrada dos pobres, pois a maioria dos balseiros, em particular dos
filhos do céu, não possui documento algum. Em Luanda, felizmente,
produzimos papel. Trabalhamos com papel. Todos nós dispomos de
passaportes atualizados. Isso impressiona muito os estrangeiros.
Liguei para a torre de controlo. Uma voz entediada respondeu-me que
sim, que estava autorizado a largar âncora quando quisesse. Não
havia nenhuma outra balsa em manobras e o céu estava limpo, com uma
firme corrente ascendente:
– Um
céu de anjos – disse a voz. – Façam boa viagem.
Seguiram-se
minutos de extrema ansiedade. Várias vezes pensei em saltar, ir ao
encontro dos fugitivos, mesmo sabendo que seria um disparate. Então
vi-os: corriam ao longo da pista. Aimée, de mochila às costas,
arrastava o meu pai pela mão direita. Júlio, com o braço esquerdo
preso ao peito, parecia atónito e estremunhado, como se tivesse
invadido um sonho alheio. Sibongile seguia um pouco atrás dos dois,
empurrando um carrinho de supermercado cheio de sacos. Logo a seguir
vi outro, um sujeito alto, de cabeça rapada, todo vestido de preto.
Ultrapassou a sangoma e preparava-se para deitar a mão ao meu pai
quando um gigante saltou de trás de um contentor e o derrubou com um
soco.
Caramba,
e que soco!
O
homem caiu de costas e já não se levantou.
O
gigante voltou-se para mim e acenou sorrindo. Era Manu. Desci as
escadas de corda e abracei-me ao meu pai. Aimée sacudiu-me:
– Rápido!
Eles estão aí...
Olhei
para trás e vi avançar um grupo de três homens. Manu
intercetou-os. Dois recuaram, assustados. O que parecia ser o chefe,
a julgar pelas ordens que gritava, ainda tentou lutar. Aconteceu-lhe
o mesmo que ao primeiro. O punho direito do cozinheiro atingiu-o no
queixo, como uma martelada, e ele foi atirado para longe. O tumulto
atraiu a atenção da polícia. Ajudei o meu pai a subir as escadas.
Quando cheguei ao convés pude ver que o porto se enchia de polícias.
Gritei a Aimée que soltasse as amarras e corri para a cabina de
pilotagem. Em menos de trinta segundos estávamos a navegar, uns
cinquenta metros acima do fulgor do Paris. Lancei um olhar para o
convés, à procura do meu pai, e dei com Aimée.
– O
que fazes aqui?!
– O
que faço aqui?
Encarou-me
furiosa:
– Viste
aqueles brutos? Querias que eu ficasse lá em baixo? Sabe-se lá o
que fariam comigo.
– O
que fariam contigo? Pelo amor de Deus, aquilo está cheio de
polícias. Vão prender os gorilas do Boniface. Talvez prendam também
o Manu durante dois ou três dias. A ti, o pior que te poderia
acontecer seria levarem-te pelas orelhas até ao apartamento dos teus
pais.
– OK!
Desculpa por te ter ajudado!
Gritou
isto, enfurecida, e voltou-me as costas. Estabilizei a balsa a favor
do vento, numa velocidade muito razoável, e fui procurar o meu pai.
Encontrei-o sentado num dos sofás da biblioteca, com a mesma
expressão de alheamento com que o vira a correr minutos antes.
Sibongile estava sentada diante dele:
– Acho
que o drogaram – disse-me. – Imagino que costumavam drogá-lo
para que respondesse às pessoas.
– Como
se estivesse em transe?
– Como
se estivesse?! Talvez estivesse mesmo. Há substâncias que nos
ajudam a entrar em transe.
– Não
quero discutir isso consigo. Só quero saber se vai ficar bem.
– Não
sei. Vou dar-lhe um chá, e depois deixamo-lo descansar. Amanhã
veremos.
Aimée
interrompeu-nos:
– Há
uma balsa atrás de nós!
– Tens
a certeza?
– Sim,
vi-a largar do Paris.
Corri
até à cabina de pilotagem. O Paris estava já muito distante, uma
centelha prateada a flutuar no horizonte. Acima dele destacava-se uma
mancha vermelha. Fui buscar os binóculos. Era uma balsa ligeira,
aquilo a que nós, os filhos do céu, chamamos uma lancha. São
pequenos balões rígidos, muito rápidos, alimentados a gasóleo,
combustível raro e caríssimo. As lanchas podem ser usadas para
salvamentos ou para transporte de passageiros entre os grandes
dirigíveis. Infelizmente, ficaram também famosas por servirem a
piratas para manobras de abordagem. Têm um contra: não possuem
muita autonomia. Correm uns trinta minutos, no máximo, e logo
morrem. Aquela deveria estar a cerca de nove milhas. Levaria pouco
mais de vinte minutos para nos alcançar, a menos que conseguíssemos
ir um pouco mais depressa. Aumentei a velocidade, sabendo que, com
isso, iria esgotar as baterias muito rapidamente.
Aimée
compreendeu o perigo:
– Tens
armas, algum instrumento com que nos possamos defender?
– Armas?
Não. O meu pai ensinou-me que a violência é sempre uma capitulação
da inteligência. Teremos de nos defender com a cabeça.
– Espero
que tenhas a cabeça muito dura.
A
lancha avançava. Crescia. Com os binóculos li o nome dela no casco:
Port-au-Prince. Vi que transportava três homens. Um deles agitava
uma espingarda de caça submarina, com arpão. Pouca gente no céu
dispõe de armas de fogo. Os grandes dirigíveis possuem um pequeno
arsenal, e os jovens recebem exercício militar, de forma a poderem
fazer frente a eventuais ataques de piratas ou de quaisquer outros
inimigos. Na verdade, ameaças remotas. Os salteadores não se
arriscam a atacar cidades importantes. A polícia, no dia a dia, usa
apenas cassetetes e algemas, o suficiente para combater rixas de bar
ou repor a ordem entre casais desavindos.
A
lancha estava tão próxima que era possível reconhecer o rosto dos
nossos perseguidores. Os três homens riam às gargalhadas.
Gesticulavam obscenidades. Aimée estava pálida:
– Vão
abalroar-nos!
Um
dos piratas puxou de um megafone:
– Só
queremos O Voador. Entreguem-nos o homem e podem partir em
paz.
Gritei,
desesperado:
– Não!
Para que querem o meu pai?
– O
Voador! O Voador! Só queremos O Voador!
Estavam
a menos de trinta metros. A menos de vinte metros. Então, quando
tudo parecia perdido, a lancha abrandou e deteve-se, num golpe seco,
adernando para o lado direito. O sujeito que tinha nas mãos a
espingarda de caça submarina perdeu o equilíbrio. Endireitou-se de
um salto, ergueu a arma e disparou. O arpão saltou na direção do
meu peito. Quando parecia que me iria atravessar, foi travado pelo
cordel de nylon que o prendia e saltou para trás. Perdi o
fôlego:
– Caramba!
Pode dizer-se que vi a morte presa por um fio.
Voltei
à cabina de pilotagem e reduzi a velocidade, para poupar as
baterias. Não queria ficar sem energia a meio da noite. A mesma
balsa que Boniface já deveria ter enviado para recuperar a lancha
rápida poderia continuar depois à nossa procura. Vimos a
Port-au-Prince dissolver-se ao longe, enquanto o sol desaparecia, lá
em baixo, entre um incêndio de nuvens.
Abracei
Aimée. Ela tremia:
– Então
– posso ficar?
– O
que vais dizer aos teus pais?
– Deixei-lhes
uma longa carta, explicando o quanto é importante para mim fazer
esta viagem. Espero que compreendam.
– Espero
que não me mandem matar. Levamos o meu pai de volta a Luanda e
depois regressas tu ao Paris – OK?
– Nem
pensar! Eu vou com vocês procurar a Ilha Verde.
– Não
existe nenhuma Ilha Verde.
– Há
pessoas, saudáveis, que se convencem de que têm um tumor no
cérebro. Esse tumor imaginário incomoda-as e assusta-as,
destrói-lhes a tranquilidade, tanto quanto um tumor real. A Ilha
Verde é o meu tumor imaginário. Como poderei ter a certeza de que
não existe se não for à procura dela?
Baixei
a voz:
– Também
eu sofro de curiosidades e de inquietações, mas neste momento são
outras. O interesse dos piratas no meu pai, por exemplo. Não te
parece excessivo?
– Como
assim?
– Boniface
pode ter visto no meu pai a oportunidade de ganhar mais alguns
trocos, drogando-o, servindo-se dele como de um xamã amestrado. Não
creio, porém, que se desse ao trabalho de nos perseguir, enviando
atrás de nós uma lancha rápida. Isso ficou-lhe caro. E o que faria
com Júlio? Pagaria uma fortuna para que o deixassem entrar sem
documentos no Paris? Levá-lo-ia numa balsa, de aldeia em aldeia,
para o mostrar ao povo, como uma curiosidade de feira?
– Tens
razão – concordou Aimée. – Não faz sentido.
– Pois
não. Há mais alguma coisa. Ele precisa do meu pai, e eu não sei
porquê.
José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu
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