segunda-feira, 4 de julho de 2022

A Vida no Céu | Primeiro capítulo


(Céu: todo o território onde a vida é mais leve do que o ar. Para os mais velhos, um lugar desprovido de passado, como existir o canto de uma ave, sem que exista a ave. O lugar para onde ascendem os sonhos, inclusive os maus.)

DEPOIS QUE O MUNDO ACABOU FOMOS PARA O CÉU.

O grande desastre – o Dilúvio – aconteceu há mais de trinta anos. O mar cresceu e engoliu a terra. A temperatura à superfície tornou-se intolerável. Em poucos meses fabricaram-se centenas de enormes dirigíveis. Entre os maiores estão o Xangai, com cinquenta mil habitantes, e o New York, o São Paulo e o Tokio, cada qual com vinte mil. As famílias mais pobres, sem meios para comprar apartamentos nessas cidades flutuantes, construíram balões, a que chamamos balsas, muitos deles rudimentares.
Apenas um por cento da humanidade conseguiu ascender aos céus, escapando do inferno, lá em baixo. Uns seis milhões de navegantes. A maioria das balsas resistiu, infelizmente, pouco tempo. Caíram. Afundaram-se no mar. Dez anos depois do Dilúvio já só permaneciam entre as nuvens uns dois milhões de pessoas.
Os balseiros arquitetaram aldeias suspensas, ligando os balões uns aos outros através de redes de cabos fosforescentes, que brilham à noite, e de intrincadas pontes de cordas.
Também se construíram dezenas de grandes navios-cidade. Obter a energia necessária para manter uma temperatura suportável no interior dessas cidades foi sempre um problema. A degradação das condições levou a tumultos. Bandos de marginais tomaram o controlo dos navios, hoje em ruínas, à deriva, embora em alguns deles (segundo se diz) ainda resistam uma meia dúzia de sobreviventes.
Chamo-me Carlos Benjamim Tucano, e nasci há dezasseis anos, numa aldeia, Luanda, que junta mais de trezentas balsas. No conjunto, ocupa uma área bastante vasta. Aldeias grandes são lentas e difíceis de manobrar. Uma balsa isolada, embora menos rápida que um dirigível, consegue evitar tempestades, correndo à frente das nuvens.
O meu pai, Júlio Tucano, desapareceu durante um temporal. Caiu enquanto tentava socorrer uma balsa, incendiada por um raio. Mal o céu serenou, pedimos auxílio a um balão-pesqueiro, o Paraty, na esperança, um tanto absurda, de que tivesse escapado vivo à queda.
A família Paraty pesca à linha, com rede e mergulhando. Em qualquer dos casos são forçados a descer a balsa até escassos metros das águas. Mergulham atados a cordas. Muitas espécies de peixes não sobreviveram ao aumento de temperatura e à crescente acidez dos oceanos. Entre os peixes que resistiram estão os tubarões. A população de tubarões aumentou muito. O calor é o primeiro perigo que os pescadores-mergulhadores enfrentam. À superfície da água o ar torna-se quase irrespirável. Durante o dia, o mar fica coberto por uma névoa densa. A reduzida visibilidade é, portanto, o segundo perigo. Muitos pescadores embatem, ao saltarem, contra detritos flutuantes. O terceiro perigo – evidentemente – são os tubarões.
Os pescadores sobrevoaram o mar durante vários dias e não encontraram sinais do meu pai. Em Luanda, todos se convenceram de que morrera na queda – o mais provável. E se não na queda, logo depois, afogado, ou sufocado, ou comido por tubarões.
Todos, menos eu:
O pai não morreu – disse à minha mãe. – Deixa-me ir à procura dele. O pai tem mais vidas do que um gato.
Eu conhecia a expressão, mas na verdade nunca vira um gato. Os ricos, nos dirigíveis, criam gatos e cães. Nas balsas, porém, isso é impossível. Não há comida suficiente. Despedi-me da família e dos amigos e transformei-me num navegador solitário. A Maianga é um balão com três andares, muito elegante. Na terra, o meu pai era arquiteto. Foi ele quem desenhou a nossa balsa. Júlio nasceu em São Gabriel da Cachoeira, uma pequena cidade no norte da Amazónia, mas cresceu no Rio de Janeiro. Após concluir o curso deslocou-se a Angola, para colaborar no desenho de uma nova cidade, e aí conheceu a minha mãe, Georgina, bibliotecária. Nunca mais saiu de Luanda. Ou melhor, saiu de Luanda, na terra, para a Luanda, no céu, sempre na companhia da minha mãe.
Os grandes dirigíveis evitam o mau tempo. Raramente enfrentam as quatro estações – muito menos tempestades. Flutuam plácidos e indiferentes, seguindo o sol do verão, ao longo de uma rota conhecida como a Estrada das Luzes. É um nome apropriado. O esplendor das grandes cidades chega, ao longo dessa rota, a desafiar o brilho das estrelas.
Pesquisando na Internet as rotas dos grandes dirigíveis, descobri que um deles, o Paris, se afastara da Estrada das Luzes, passando muito próximo da nossa aldeia durante a tempestade. O mais estranho é que passara não acima da tempestade, para escapar à turbulência, como é regra, mas uma centena de metros por baixo de nós.
Aimée Longuet, catorze anos, uma das minhas amigas virtuais – amiga do Facebook – vivia no Paris. Nascera lá. É uma rapariga loira, com um sorriso resplandecente e uma coleção de chapéus extravagantes, que ela própria desenha e fabrica. Entrei no Facebook e interroguei-a sobre a tempestade. Lembrava-se muito bem. Nunca vira nada assim. O dirigível sofrera uma avaria muito grave, perdera a rota e fora forçado a descer.
Apanhamos um enorme susto – contou-me Aimée. – Fazia tanto calor nas varandas que ninguém conseguia ficar lá por mais de cinco minutos. Por outro lado achei fantástico. Uma aventura.
Para os ricos, qualquer contrariedade é uma aventura. Três semanas após ter deixado Luanda, avistei ao longe, deslizando de encontro a um crepúsculo selvagem, uma imensa jamanta prateada. Era Paris, o mais belo zepelim do mundo. Alcancei-o em dois dias. Circundei-o, fascinado. Requeri autorização para atracar. Perguntei se poderia fazer uma visita. A maioria dos grandes dirigíveis cobra um visto de entrada, bastante caro, por uma permanência de poucas horas. Passageiros clandestinos são perseguidos e expulsos. Muitas vezes (é o que se diz) limitam-se a atirá-los borda fora. Tive sorte. Havia uma vaga na cozinha. Pagavam muito pouco. Em contrapartida, permitiam-me aceder, nas horas livres, a alguns dos equipamentos públicos, incluindo a piscina, de cinquenta metros, discotecas e bares. Além disso havia a comida. Iguarias de que apenas ouvira falar, em Luanda, nas longas noites de conversa, quando os mais velhos se sentavam a recordar os anos vividos na terra. Os meus amigos ricos, amigos virtuais, claro, nados e criados em zepelins dourados, gostavam de me atormentar filmando-se a si próprios enquanto jantavam pato com laranja ou saboreavam barras de chocolate produzidas com cacau legítimo. Foi no Paris que provei pela primeira vez leite, iogurte e carne de vaca.
Ah, e a fruta. Sim, os parisienses cultivam pomares: maçãs, nêsperas, cerejas. Lá fora, nas nuvens, um homem pode matar por uma maçã fresca. Cerejas, por exemplo, eu nem sabia que existiam.
Aimée foi esperar-me ao aeroporto. Ancorei a Maianga, ao lado de outras balsas, a maioria em muito mau estado. Achei a minha amiga muito alta para a idade, embora não tão alta quanto aparentava no ecrã do computador. A realidade diminui as pessoas. Nas semanas seguintes, Aimée mostrou-me tudo o que era possível visitar. O que mais me impressionou foi a piscina. Entrei na água, aterrorizado, aturdido, pois nunca vira nada semelhante. Havia o mar, lá muito em baixo, uma irrealidade paralela. O mar era o assombro, afundado em nuvens, para onde lançávamos os mortos. A piscina do Paris tem fundo transparente. Mergulhar nela é como saltar para o abismo sem a segurança de um bom cabo. Aimée ensinou-me a nadar.
Primeiro tens de te esquecer – disse-me. – O bom nadador é aquele que se esquece.
A seguir ensinou-me a nadar debaixo da água. A maioria das pessoas enche os pulmões quando mergulha. O mergulhador experiente, pelo contrário, esvazia-os. Para nadar debaixo da água é preciso deixar à superfície o ar e os pensamentos. Ambos atrapalham.
Nas cozinhas havia sempre muito que fazer. Descascava batatas, lavava pratos, varria o chão. Nunca me conseguia deitar antes das duas da manhã. Regressava exausto à velha balsa, deixava-me cair na cama e adormecia.
Fiz amizade com um dos cozinheiros, Manu Akendengue, um tipo alto, atlético, de uma agilidade surpreendente para a idade. Manu nasceu na terra, em França, numa cidade chamada Marselha. Talvez flutue ainda em algum lugar uma balsa, ou um pequeno dirigível, chamada Marselha. Os países desapareceram, mas as cidades continuam a existir. O que se passa é que agora viajam. A toponímia tornou-se móvel.
Manu Akendengue inscreveu-se para trabalhar no Paris juntamente com muitos milhares de candidatos, entre os quais alguns dos chefes mais famosos de França. Além de excelente cozinheiro, Manu toca saxofone e é um mecânico de mão cheia. Em jovem foi lutador de boxe. No Paris, todos os trabalhadores contratados na terra, incluindo o pessoal da limpeza, possuem múltiplas aptidões. Manu cozinha, toca saxofone numa das bandas mais populares do Paris, a Les Anges Jazz Band, e presta assistência na casa das máquinas. Foi ele quem me falou pela primeira vez num misterioso passageiro clandestino, que teria surgido de repente, vindo do nada, e cujo verdadeiro nome ninguém sabia. Falavam dele em voz baixa. Chamavam-lhe O Voador e mantinham-no escondido para que a polícia o não expulsasse.
Quero conhecê-lo. Onde está?
Manu debruçou-se sobre mim, num sopro:
Calma. Não sei onde está. Nem sequer sei se realmente existe. As pessoas inventam muito. Querem acreditar em alguma coisa, para além desta realidade tão difícil.
Difícil? – exaltei-me. – Difícil é a vida lá fora, nas balsas.
O cozinheiro sorriu, tentando acalmar-me:
Imagino que sim. O que quero dizer é que as pessoas têm necessidade de acreditar em profetas. Esse homem aparenta ser uma espécie de profeta. Sonha alto. Fala a dormir. As pessoas fazem-lhe perguntas enquanto ele dorme, e o homem responde. Ao que parece adivinha coisas.
Adivinha coisas? Que coisas?
O cozinheiro encolheu os vastos ombros. Voltou a atenção para o guisado de algas com queijo de cabra, um dos seus pratos mais requisitados:
Não sei ao certo, garoto. Nunca vi o homem. Dizem que adivinha coisas, como por exemplo o estado do tempo daqui a uma semana. Quem ganhará o Campeonato do Mundo. São os rumores que correm. Como te disse antes, talvez seja tudo imaginação do povo.
Passaram-se dias. Uma noite acordei de supetão. Aimée estava diante de mim, linda, com um vestido de seda muito leve, estampado com orquídeas amarelas, e ria às gargalhadas:
Vem! Quero mostrar-te uma coisa.
Arrastou-me pela mão até ao Piso Zero. A piscina do Paris encerra às 22h00. Entre muitas outras habilidades curiosas, Aimée sabe abrir fechaduras. Qualquer fechadura, eletrônica ou mecânica. Entramos. A água brilhava, iluminada pela luz do luar. Estava uma noite de verão, sem nuvens, límpida e lisa como um cristal. Estrelas brilhavam na imensidão.
Despe-te! – ordenou Aimée.
Hesitei:
O que acontece se nos encontram aqui?
A minha amiga voltou-se. Soltara o vestido. A pele, muito branca, parecia azul. Os olhos, azulíssimos, estavam quase transparentes. Sorriu trocista:
A ti expulsam-te. Talvez te atirem ao mar. Serás comido por tubarões. A mim castigam-me. Fico seis meses a trabalhar nas cozinhas.
Mergulhou e eu segui-a. Foi nesse momento que me apaixonei. Não me apercebi disso na altura, da mesma forma que um homem picado por um mosquito não se apercebe de que contraiu malária a não ser dias mais tarde, quando sente febre e frio ao mesmo tempo, e uma angústia sem fim, uma vontade de dormir e de sonhar.
Saímos da água, e Aimée voltou a vestir-se. O vestido molhado colava-se-lhe à pele, as orquídeas fazendo-se transparentes, de tal forma que me parecia mais nua com ele do que sem nada. Abracei-a. Ficamos longos minutos sentados, junto à piscina, contemplando as estrelas. Lembrei-me da história que me contara o cozinheiro:
Ouviste falar num passageiro clandestino, a quem chamam O Voador?
Os olhos de Aimée iluminaram-se. Ela gostava de mistérios, e aquele parecia-lhe muito bom:
Volta e meia surgem rumores sobre passageiros clandestinos. Pessoas estranhas que chegam aqui vindas de lugar nenhum. Lembro-me, era criança, da história de duas gêmeas contorcionistas, que teriam entrado clandestinamente na mala de um mágico voador. Também escutei muitas histórias sobre balões-fantasmas. Gosto dessas histórias, embora não acredite nelas.
E se fôssemos à procura d’ O Voador?
Aimée fitou-me atentamente. Tinha os olhos úmidos:
Achas que pode ser o teu pai?
A argúcia dela surpreendeu-me. Sim, quando Manu me falou no misterioso viajante pensei logo que poderia ser o meu pai. Como me alertara o cozinheiro, os habitantes do Paris acreditavam em milagres. Queriam acreditar. Eu não era muito diferente deles. Queria acreditar que o meu pai continuava vivo. Ao mesmo tempo, não o reconhecia na descrição de um profeta sonâmbulo:
O meu pai nunca falou a dormir. Muito menos para adivinhar o que quer que fosse. Não pode ser ele.
Aimée não desanimou:
Só saberemos se é o teu pai quando o encontrarmos. Vamos procurá-lo.
Na noite seguinte, ao sair das cozinhas, encontrei Aimée à minha espera. Vestia umas calças de ganga muito usadas e um casaco do mesmo tecido, rasgado nos cotovelos. Trazia uma pequena mochila às costas.
Vim preparada. Trouxe lanternas e material que me permite abrir qualquer porta. Também trouxe água e sanduíches de atum. Espero que gostes.
Muitos dos meus colegas dormem em casernas, nos escuros e abafados labirintos que se enrolam, como raízes teimosas, em redor da casa das máquinas. Perguntei a Leo, um rapaz calado, de espessa cabeleira negra, que costumava trabalhar comigo, a lavar pratos, se o podíamos acompanhar. Limitou-se a acenar que sim com a cabeça, indiferente. Ninguém nos prestou muita atenção. À medida que avançávamos a escuridão parecia aumentar. Vimos um casal, com dois filhos pequenos, a preparar alguma coisa para comer. Famílias são raras, ali. A maioria dos trabalhadores chegam até ao Paris numa balsa frágil, sozinhos, desesperados, dispostos a aceitar qualquer trabalho, desde que lhes assegurem um chão para dormir e uma refeição por dia. Somos escravos, sim, todos nós. Ao contrário de mim, porém, que posso partir quando quiser, pois disponho de uma balsa sólida, a maioria dos imigrantes não tem alternativa. Isso explica a apatia. Não só não protestam, não se revoltam com a sua condição, como não toleram aqueles que protestam. Uma ocasião, na cozinha, insurgi-me contra um ajudante de cozinheiro, depois de o ver esbofetear uma menina de doze ou treze anos, recém-chegada ao Paris. Para minha surpresa, a ofendida voltou-se contra mim:
Foi culpa minha – gritou. – Não preciso de que me defendas.
Contei o episódio a Aimée. Olhou-me chocada:
Nós não sabemos como vivem os pobres. Acho que preferimos não saber.
Leo levou-nos até um pequeno corredor. Havia colchões estendidos no chão. Roupas penduradas em varais.
Moro aqui. Nunca fui mais além.
O que há além?
Leo encarou-nos, irritado:
Não sei: a escuridão.
Perguntei-lhe se ouvira falar num homem a quem chamavam O Voador. Encarou-nos assustado:
Não ouvi nada. Não ouço nada. Não quero problemas com a polícia!
Nesse momento vimos emergir da sombra uma mulher magérrima, vestida com uma espécie de bubu africano, como os que a minha mãe por vezes usa, mas inteiramente negro. Reparei num pequeno sinal, ou numa tatuagem, em forma de meia-lua, ornando-lhe a testa, o qual a tornava, não sei bem porquê, um pouco mais inquietante.
O Voador?! Eu vi-o.
Leo sacudiu as mãos à frente dela, como quem enxota uma mosca:
Louca! Louca! Não acreditem no que diz.
Vi-o! – insistiu a mulher. – Um homem bonito. Tem o braço ao peito. Partiu o braço ao cair.
Senti que o meu coração parava:
Partiu o braço ao cair?
Sim. Caiu nas redes de proteção, numa asa-delta. É o que dizem.
Falaste com ele?
Falei, enquanto ele dormia. Disse-me que um dia voltarei a pisar terra.
De onde és tu?
Nasci numa cidade chamada Durban, na África do Sul.
A minha mãe também é africana! – retorqui, entusiasmado com a coincidência. – Angola ficava na África Austral.
Sei muito bem onde ficava Angola. E sei onde está hoje: debaixo d’água. Vocês, os filhos do ar, não fazem a menor ideia de como a terra era bonita.
Aimée encarou-a, aborrecida:
Vemos os filmes. Sabemos muito bem como era a vida na terra.
A mulher riu, trocista:
Os filmes! Sabes a que cheirava a savana após a chuva?! Sabes o que é correr livremente, sem nunca tropeçar em paredes? Podes dizer-me a que sabe uma manga colhida dos ramos mais altos de uma mangueira? Sabes sequer o que é uma mangueira?
Esse tempo passou.
Todos os tempos passarão. O teu também passará.
O meu tempo nasce todos os dias, sempre novo.
Pode ser. Mas eu ainda prefiro o meu tempo morto, a este teu tempo novo. Eu era livre, lá na terra, podia ir para onde quisesse. Aqui, no céu, somos todos prisioneiros, ricos e pobres.
É verdade – concordei. – Também acho que a maioria das pessoas aqui no Paris, como noutros grandes dirigíveis, vivem aprisionadas. Há exceções. Eu, por exemplo, tenho a minha balsa. Quando quiser, quando estiver farto de estar aqui, vou-me embora. O céu inteiro é meu, e o céu não tem paredes.
A mulher voltou-se para mim, subitamente alerta:
É verdade, isso? Tens uma balsa em boas condições de navegação?
Em excelentes condições.
Ela estendeu-me a mão:
Chamo-me Sibongile, mas podes chamar-me Bongi. Sou sangoma.
Sangoma?
Curandeira, se quiseres. Na terra sabia tratar algumas doenças mais comuns recorrendo apenas a ervas e raízes. Aqui não tenho ervas, muito menos raízes. Então trato doenças da alma, que, aliás, são quase todas. Também adivinho o futuro, como esse homem a quem chamam O Voador. Querem conhecê-lo?
Assenti, tentando controlar a ansiedade:
Claro. Podes levar-nos até ele?
Posso, mas com uma condição.
Que condição?
Um dia destes quero que me leves a um lugar, na tua balsa.
Que lugar?
A um lugar. Não te posso dizer agora.
Ia para retorquir que no céu não existem lugares. No céu tudo está sempre em movimento. Calei-me. Naquela altura eu teria aceitado qualquer coisa contando que Sibongile nos levasse ao Voador. Disse-lhe que sim, e voltamos a apertar as mãos. Deixamos Leo, atônito, a olhar para nós, e mergulhamos na sombra.

José Eduardo Agualusa, in A Vida no Céu

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