quinta-feira, 23 de junho de 2022

Cristo

Quando a febre do meu irmãozinho começou a subir é que tudo isso teve início.
Deixei de ir à escola tantos dias que comecei a achar que nunca tinha ido, que desde que nasci tudo que eu fizera fora cuidar do meu irmão. Eu ficava em casa enquanto ela ia trabalhar e lhe dava as colheradas do xarope cor-de-rosa de hora em hora e do xarope transparente de quatro em quatro.
Ela tinha me dado um relógio de números grandes de presente de aniversário.
O bebê era levinho, levinho. Era como carregar papel de presente amassado nos braços. Não ria. Quase nunca abria os olhos.
Certa noite, um dos amigos da minha mãe fez um buraco na porta do banheiro, cansado de ouvi-lo chorar.
Faça o bebê ficar quieto — ele dizia à minha mãe. — Faça essa criatura de merda se calar. Faça esse monstro ficar quieto, ele saiu assim porque você é uma puta, mate essa coisa.
Repetia esses palavrões e dava golpes na porta.
Era melhor que batesse na porta do banheiro e não no meu irmãozinho. E não nela.
Mas ele batia um pouco nela também.
Não voltamos a ver esse amigo da minha mãe e se tornou mais difícil comprar o xarope cor-de-rosa e o xarope transparente, e ela fazia com que durasse mais misturando-lhe um pouco de água fervida.
Ela apertava as mãos enquanto esperava para tirar o termômetro do meu irmãozinho. Elas ficavam lívidas depois. E ela fazia um barulhinho depois de sacudi-lo no ar e olhá-lo debaixo de uma lâmpada. Um barulhinho com a língua e os dentes. Quando ela não fazia isso, significava que meu irmãozinho estava num dia bom.
Em alguns finais de semana, ela me mandava ficar com meus avós.
Vovô Fernando me levava primeiro ao cemitério para visitar sua mãe morta, Rosita. Depois íamos a La Palma tomar Coca-Cola com sorvete de baunilha. Uma menina com seu avô. De vestido. Sem irmãos. Filha única. Mimada. Tudo isso acabava muito rápido e logo já era segunda-feira.
Uma tarde, enquanto eu assistia ao desenho do Pica-Pau, meu irmãozinho começou a chorar. Não fui ver. Era a hora do xarope cor-de-rosa. Não fui dar. Queria ver o Pica-Pau. Inteiro. Por uma vez vê-lo inteiro, sem olhar para o relógio de números grandes, sem medir o xarope na colherinha de plástico branco, sem lutar para que ele engolisse e sujar minha roupa e ficar fedendo, como sempre, a remédio. Queria cheirar a menina que assiste ao Pica-Pau e mais nada. Eu ria até nas partes que não eram engraçadas. Muito alto, muito alto, como o Pica-Pau, para encobrir o choro do meu irmãozinho.
Depois de um tempo, o desenho acabou e começou Os Flintstones. Também assisti inteirinho.
Quando fui ver, meu irmãozinho tinha deixado de gritar. Toquei nele. Foi como encostar os dedos numa vela quente.
Chamei a vizinha, e a vizinha chamou minha mãe.
Você deu o xarope cor-de-rosa pra ele?
Fiz que sim com a cabeça.
O médico lhe mandou um xarope verde e supositórios.
Mamãe me ensinou a colocar os supositórios. Eu não queria. Meu irmãozinho gritava como aquele cachorro marrom que foi atropelado por um táxi na frente de casa e ficou ali estirado, com as tripas para fora, mas vivo. Ele gritava igualzinho, igualzinho.
Cor-de-rosa, transparente, verde e supositório.
No dia seguinte, deixamos meu irmão com meus avós e fomos ao Cristo do Consuelo, que era o bairro negro, o bairro proibido. Minha mãe e eu éramos, ali, como as bolinhas de sorvete de baunilha flutuando na Coca-Cola.
Uma senhora negra, muito gorda, com um turbante vermelho na cabeça, disse à minha mãe que tivesse fé.
Tenha fé, dona. Esse Cristo é milagroso.
Depois lhe pediu dinheiro, algumas moedas. Por que ela não pedia ao Cristo? Se era tão milagroso, devia estar cheio de moedas, não como nós que, às vezes, andávamos a pé porque não tínhamos dinheiro para o ônibus.
A senhora negra do turbante vermelho vendeu à minha mãe um menininho de brinquedo para ser pendurado nas vestes de cor púrpura do Cristo. Quando entramos na igreja, havia tantos bonequinhos iguais a ele! E coraçõezinhos e perninhas e bracinhos e cabecinhas e outras partes que não reconheci. E fotos e cartas e bilhetes e desenhos. Uma das cartas dizia “me ajude, senhor, tenho só nove anos e câncer”.
Mamãe? — perguntei. — Como Cristo vai saber qual desses é meu irmãozinho?
Porque Ele é muito inteligente.
O cheiro lá dentro era estranho. Cheirava a coisa velha, a pó, a como quando eu não lavo o cabelo há muitos dias, a abafado, a quando a luz vai embora.
Antes de sairmos, mamãe pegou uma lata de molho de tomate Los Andes e a encheu com água de uma torneira.
Água benta — disse. — Água do Cristinho, água santa.
Ela me deu um gole, mas não tinha gosto de santa, e sim de molho de tomate e um pouco de ferrugem e pensei que uma água de molho de tomate, como a que colocamos no arroz branco no final do mês, quando está acabando, não podia ser milagrosa. Tinha que ter gosto de doce de leite, de hambúrguer duplo. Não um gosto de pobre. Com aquela porcaria na boca, senti vontade de gritar para todo mundo que eles estavam equivocados, que aqui não havia mais milagre além da senhora do turbante vermelho recebendo moedas por vender pedacinhos de corpo e corpinhos inteiros para pregar no manto de um Cristo que tem gosto de molho de tomate insosso. Ali ficou meu irmãozinho, ou seja, um bonequinho tão deformado quanto ele, rodeado de centenas de outros bonequinhos igualmente horrorosos e cabeças e braços e pernas e corações, como se houvesse acontecido uma explosão.
Ele tem que ficar aí — minha mãe ficou furiosa.
E eu chorei durante todo o caminho para casa porque me dei conta de que ela também não sabia o que estava fazendo.
Em casa, mamãe deu um pouco daquela água ao meu irmãozinho e jogou-a na cabeça dele. Ele abriu os olhos e mostrou sua boca, seus dentes. Finalmente. Ele nos sorria.
Assim, com aquele sorriso, nós o colocamos na semana seguinte numa caixa branca, pequenina, que o bairro fez uma vaquinha para comprar.
Voltei à escola. Outra vez à quarta série, onde sou enorme e não tenho amigos.
Quando me perguntam se tenho irmãs ou irmãos, penso no menininho que está pendurado no manto do Cristo do Consuelo e digo que não.
Eles não iam entender.

María Fernanda Ampuero, in Rinha de galos

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