A
última vez, já digo do quê, tinha sido no dia 15 de março de
1992, às onze da manhã. Eu tinha treze anos e havia comido, em
excesso, charutinhos de repolho com carne moída. A palavra “demais”
ficou para sempre tatuada na minha memória gástrica. Minha mãe,
meus avós, meu pai, um namorado, todos falando: “você comeu
demais”. Eu teria para sempre, depois daquele dia, medo do
demais. Qualquer coisa demais me daria enjoo. Eu perseguiria uma
vida de “hoje tá tudo mais ou menos e eu vou deitar pra ver TV e
acabar dormindo”. Não por vontade de que assim fossem os dias, mas
por paúra de sentir de novo o que aqueles charutinhos em excesso
haviam me causado.
Eu
tinha comido uns vinte, porque eles eram pequenos e só estavam
temperados com hortelã, e eu entrei numas de achar tudo muito leve e
comer os charutos como se fossem belisquetes despretensiosos. Quando
deram nove horas da noite, parecia que um elefante que sofria de
gigantismo tinha desistido da vida e encostado a cabeça em meu
duodeno. Naquela época eu já odiava vomitar, já tinha muito medo,
mas ainda não era uma questão de fobia, isso tudo foi antes da
negociação “aqui não se vomita” que fiz com meu corpo. Então
ficou claro para mim que seria uma noite bem ruim, mas ainda não era
uma questão de “prefiro entrar em coma a vomitar”.
Minha
mãe tinha saído, eu estava sozinha em casa, frustrada porque na TV
Bandeirantes não estava passando Sexta Sexy. Eu ficava morta de
tesão na Sexta Sexy, e a maior alegria do mundo era poder assistir a
essa sessão com o volume bem alto. Mas e se passasse Sexta Sexy
naquele dia? Eu teria conseguido ver? Nada é por acaso. Eu queria um
chá de boldo, porque lembrei que minha avó fazia esse chá para o
meu avô quando ele exagerava nas doses de “uisquinho” com
salgadinhos amanteigados antes do almoço, mas eu não tinha
permissão para mexer no fogão.
Um
elevador de bile maligna, mix de suco de laranja quente com Halls
preto, subia até minha boca com a lentidão intensa e muito presente
de um assassino perverso. A língua se comunicava por telefone sem
fio com o fígado e, não entendendo direito o que ele dizia, me
trazia informações deturpadas como “é o fim” e “de hoje você
não passa”. Eu sentia do que era feito o fígado, sua
consistência, cor, cheiro, líquidos, gases, mas não conseguia
traduzir seus desejos.
Era
como se tivessem deixado em minha casa uma criança colérica que só
falasse eslavo. O que ela quer? Ela pôs fogo na casa inteira, mas eu
realmente não sei se com leite consigo apagar tudo. Boldo? Quem sabe
essas coisas é mãe! Não sou paga para saber essas coisas. Liguei
para a minha mãe. Disse algo como “estou morrendo, venha logo”.
Ela respondeu algo como “nunca saio, nunca faço nada pra mim,
nunca me divirto, você deveria ter compaixão, vou demorar uma hora
e você não é mais um bebê”.
Lembrei
da tia Fátima, casada com meu tio Celso. Ela era só a mulher do
irmão do meu pai, não era consanguínea minha. Mas no último
Natal, junto com um daqueles presentes medonhos que ela sempre me
dava (e que eu sempre tentava trocar na loja até ver a loja e ficar
com medo de que se tratasse de um açougue clandestino), ela me
entregou um cartãozinho com o retrato de Jesus e os dizeres: “sempre
que precisar, conte comigo”. Liguei para a tia Fátima.
Ela
veio, cara de “muito puta por sair de casa numa sexta às onze da
noite”, fez o chá para mim, sem ligar a mínima para a minha longa
e detalhada explicação: “é um tipo de enjoo que deixa a boca com
gosto forte de cabo de guarda-chuva e dá muita tontura, o que me faz
pensar que é fígado, mas fígado não dói, meu professor de
biologia disse, e eu sinto dor, então é estômago?”. Ela me
entuchou chá de boldo sem dizer uma única palavra de carinho. Ela
não era falsa, só meio feia. Nada é mais transparente do que má
vontade em pessoa feia. Mas e Jesus naquele cartão de Natal? Era
tudo mentira? Natal, Jesus, tia Fátima, conte comigo, tudo
mentira.
Até
que minha mãe chegou (cheiro de cigarro com perfume adocicado demais
piorando ad infinitum meu estado de vulcão necessitado de se
livrar de lavas indolentes) e eu tive a certeza de que meu problema
estava resolvido: eu ia vomitar. Ia vomitar, e muito. Ver minha mãe
tinha me dado o maior enjoo que eu já sentira. Porque sempre era
demais ver minha mãe. Como eu amava minha mãe! Minha mãe era o
equivalente a cento e vinte charutinhos.
Da
meia-noite até as cinco da manhã do sábado, eu tentei vomitar.
Enfiei o dedo na garganta, bebi sal de fruta duas vezes, fiquei
encarando um balde azul sentada no chão do banheiro com a pressão a
quatro por dois. Nada. Eu não conseguia. Quando faltavam dez
para as seis, comecei a vomitar. E só parei às onze, hora em que
jurei, com uma seriedade que não sustentaria nem ao assinar
contratos com a Globo Filmes, que aquela seria a última vez. Eu
nunca mais passaria por aquilo de novo. Se o preço a pagar fosse
nunca mais comer, eu nunca mais comeria; se o preço a pagar fosse
uma vida de chuchu com arroz e água e nenhuma alegria gastronômica,
eu estava disposta a sofrer a esse ponto, para nunca mais sofrer
àquele ponto.
Sabe
quem era o culpado da pior madrugada da minha vida? O demais,
o exagero, o prazer, o despudorado, o sem limites, o deixa vir, a
intensidade, o agir sem pensar. Vinte charutinhos! Vinte.
Nunca mais eu comeria muito. Nunca mais comeria coisas gostosas que
me dessem vontade de repetir. Negociei isso. Fui magra, quase
anoréxica, por ao menos quinze anos a partir de então. Naquele fim
de manhã de sábado, abatida, pálida, gelada, terminei meu primeiro
namoro. Não que eu não gostasse do garoto, gostava demais. Mas era
o demais, lembra? Eu o amava o equivalente a uns setenta charutinhos.
Estava proibido agora.
Eu
tinha treze anos, e ele era lindo e ia me buscar no colégio toda
terça às cinco da tarde, depois da aula de “laboratório de
física”, e todo mundo ficava olhando porque era um daqueles casos
de “o que esse cara lindo tá fazendo com essa menina estranha?”.
E ele era engraçado e carinhoso e tarado. E dava apelidos para o
pênis, numas de me fazer ter menos medo. Chamava o pinto de Cleber.
Meio coisa de pobre, eu sei, mas a gente era pobre. Eu achava
bonitinho o pinto dele ser o Cleber. Mas continuava com medo, porque
Cleber era o nome do gerente do banco onde meu pai tinha conta.
Mas
naquele fim de manhã de sábado, depois de eu ter entendido o quanto
precisava da minha mãe porque não sabia lidar de forma leve e
prática com uma simples indisposição, eu me declarei extremamente
criança. Criança até os cinquenta e quatro anos. Nunca mais
namoraria. Nunca mais vomitaria. Nunca mais comeria charutinhos.
Nunca mais chamaria nenhum pinto de Cleber. Nunca mais sentiria nada
a não ser alívio por aquela noite ter acabado. E por aquela manhã
ter acabado. A felicidade tinha me ferrado em proporções
inimagináveis, portanto eu nunca mais seria feliz. Passaria a vida
deitada no sofá, barulho da minha mãe fazendo sopa na cozinha,
olhos fechados, pensando que acabou, pensando que minha mãe chegou.
Por favor, pelo amor de Deus, nunca mais me deixem sozinha tendo que
lidar com vinte charutinhos, com minha vontade, com o demais, com a
ânsia da minha vontade em excesso. Foi quando senti medo de ser
adulta, medo que nunca mais passou.
Aos
vinte anos larguei meu emprego na área de marketing para tentar
trabalhar em criação publicitária. Por um ano tive enjoos
terríveis, mas não vomitei. Aos vinte e sete larguei meu emprego de
redatora publicitária para tentar escrever um livro. Por cerca de
dois anos tive enjoos abaladores, mas não vomitei sequer uma vez.
Aos trinta e dois me mudei para o Rio, para tentar ser roteirista, e
por três anos tive enjoos fortíssimos, fruto de uma gastrite que só
aumentou desde o primeiro enjoo muito forte de que tenho memória:
aos quatro anos de idade, quando mudei do Jardim 1 para o Jardim 2.
Gastrite que duas endoscopias, uma aos dezessete anos, outra aos
trinta, não acusaram mas que eu sabia que estava lá enquanto “alma
de gastrite”. Eu não tinha a gastrite em si, mas uma espécie de
aura de inflamação no estômago. E no dia das endoscopias, e
durante elas, e depois delas, tive muito enjoo também, mas não
vomitei.
A
verdade é que não lembro de existir sem estar passando meio mal,
com a pressão meio baixa, hipoglicemia, o coração meio disparado,
tudo meio rodando, a estabilidade do ar sempre demorando a voltar
qualquer que fosse o movimento. E muito enjoo.
Vomitar
era algo negociado com todos os meus órgãos, com Deus, com a vida;
e o contrato era um outdoor que eu carregava no cérebro e onde
estava escrito: “não, este corpo não vomita, este corpo não
vomita nem a pau”.
Acho
que a coisa se deu mais ou menos assim: como eu poderia vomitar a
qualquer momento, estava decidido que não vomitaria nunca.
Porque, se eu fosse mesmo vomitar quando me desse vontade, vomitaria
em todas as reuniões, em todos os primeiros encontros, em todos os
últimos encontros, em todas as viagens, em todos os dias mais
importantes da vida, em todos os piores dias da vida, em todos os
dias de tédio, sempre que ficasse muito qualquer coisa (bêbada,
resfriada, feliz, nada). E praticamente teria que sair de casa com um
saquinho plástico como se ele fosse RG. Mas, se pudesse aguentar
hoje, aguentaria amanhã, e aguentaria até o fim dos tempos. O que
eu mais temia era não cumprir esse trato e desencadear um vômito
ancestral, um tsunami azedo, impetuoso e veloz. Então eu jamais
poderia vomitar. Não poderia dar free pass à besta-fera líquida
que me corroía por dentro.
Mas
tudo isso mudou no dia 25 de fevereiro de 2012, às exatas nove e
vinte da noite. Eu e um amigo “produtor de teatro” aguardávamos,
no Le Vin dos Jardins, a chegada de um “empresário investidor de
teatro” a quem tentaríamos vender minha “peça cabeça popular”
sobre neuróticos com problemas sexuais que se reúnem para fazer uma
suruba mas não conseguem porque não param de falar. Eu estava calma
para o pitching, mas nervosa com a demora da comida.
Sábio
o restaurante que logo de cara entucha azeitonas pretas nos
comensais. Pressão baixa deveria ser atenuante de pena para crimes
hediondos cometidos por pessoas famintas. Mais dez segundos de demora
e eu poderia jogar sal no pé da mesa e comer como snack. Foi quando
chegou o meu croque-madame com muito ovo e muito presunto e muito pão
e muita batata frita e muito suco ácido de tangerina e eu devorei
tudo em dois minutos. Quando num microarrotinho senti as labaredas do
inferno me abraçando a faringe, sabia que a coisa tinha saído do
controle.
E
quem era o culpado, novamente? O demais, o exagero, o prazer,
o despudorado, o sem limites, o deixa vir, a intensidade, o agir sem
pensar. Um croque-madame, com muito ovo e muito
presunto devorado em muito pouco tempo. Novamente a vida se
apresentando na sofreguidão torpe de quinhentos e sessenta e sete
charutinhos para um corpo pequeno e cheio de coisinhas. Nunca mais eu
comeria tanto e tão pesado e em tão pouco tempo. Nunca mais. Mas e
agora? Como faria uma apresentação digna a um monsenhor montado na
grana se tudo o que eu mais queria era… uma privada, minha mãe e
meu perdão?
Fazia
exatos vinte anos que eu não vomitava. Não sabia mais vomitar. Não
queria saber. Tinha feito um trato comigo. Meu corpo me obedecia. Eu
era a mestra maior dessa sinfonia chamada existência. Estava tudo
certo. Eu tomaria um ar “lá fora”, bebendo aos poucos uma água
repleta de pedras de gelo. Até as pedrinhas derreterem, eu já
estaria pronta para a sobremesa. Respirando fundo. Fazendo promessas.
Uma lagriminha querendo cair, tamanho o meu pavor de estar sozinha
naquela situação. Tenho quatro anos e minha mãe saiu. Vem um cara
mau tentar me dar dinheiro para uma peça de teatro má — e minha
mãe saiu. Meus joelhos pesam uma tonelada. A nuca foi alugada a
contragosto para um show acústico do Fat Family. As axilas expelem
toxinas azedas e tão frias quanto a vida. A face está tão
absurdamente branca, que um dos manobristas do restaurante vai atrás
de mim: “a senhora precisa de uma ambulância?”. Então vejo uma
árvore. Sento embaixo dela. Buda teria uma iluminação, eu tenho
apenas muito e muito enjoo. Demais. Penso então em salmonela do ovo.
Penso então: “como era a vida antes do asfalto?”. Penso então:
“foda-se ser uma moça”. Penso então: “é a pior coisa do
mundo e, no entanto, estou vivendo isso e não tô achando a pior
coisa do mundo”. Então um jato agressivo, um gigantesco splash
de promoção “bem-estar a nove e noventa e nove”, o vômito do
exorcista versão “rua refinada de bairro classe A”, toma conta
de mim e da pobre árvore. Verte com a mesma força da opressão que
me causei nesses vinte anos de prisão, de ditadura, de contenção.
No final, caio dura, exaurida, feliz. Sou uma requintada moça
deitada no chão, toda vomitada, na porta do Le Vin dos Jardins.
Patricetes e rapazes camisa polo desviavam de mim como se eu fosse
merda com moscas-varejeiras em cima. Era a glória. Era o fim de uma
era de pavor. Era a coroação do medo pelo medo maior tornando tudo
menos assustador. Eu havia passado pela situação mais ridícula da
minha vida e, no entanto, o mundo seguia igual. A última frase que
escuto antes de sonhar com minha mãe me dando os parabéns é a de
um motoboy que grita: “eitcha, a dona bebeu foi todas”.
Até
hoje minha peça de teatro sobre pessoas neuróticas com problemas
sexuais que se juntam para fazer uma suruba e não conseguem porque
não param de falar espera por patrocínio.
Tati Bernardi, in Depois a louca sou eu
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