— E
esta — disse Jane Helier, completando suas apresentações — é
miss Marple!
Como
atriz, ela conseguiu atingir seu intento. Era claramente o clímax, o
gran finale triunfal! Seu tom era uma mistura de admiração
reverente e triunfo.
O
estranho é que o objeto tão orgulhosamente proclamado era apenas
uma velhota solteirona, afável, detalhista. Os olhos dos dois jovens
que haviam sido recém-apresentados a ela pelos bons ofícios de
Jane, mostraram incredulidade e um traço de desalento.
Eram
pessoas de boa aparência; a moça, Charmian Stroud, esbelta e
morena; o homem, Edward Rossiter, um jovem gigante, amável e de
cabelos loiros.
— Oh!
Estamos muito felizes de conhecê-la! — Charmian disse de um
fôlego.
Mas
havia dúvida em seus olhos. Ela lançou um olhar rápido e
inquiridor a Jane Helier.
— Querida
— disse Jane respondendo ao olhar —, ela é absolutamente
maravilhosa. Deixe tudo com ela. Eu lhe disse que a traria
aqui e trouxe — e acrescentou para miss Marple: — Você vai
resolver para eles, eu sei. Vai ser fácil para você.
Miss
Marple virou seus plácidos olhos azul-turquesa para mr. Rossiter.
— Poderia
me dizer — ela perguntou — do que se trata tudo isso?
— Jane
é uma amiga nossa — interrompeu Charmian ardendo de impaciência.
— Edward e eu estamos numa encrenca. A Jane disse que se pudéssemos
vir à sua festa, ela nos apresentaria a alguém que ia... que
iria... que poderia...
Edward
veio em seu socorro:
— A
Jane nos contou que a senhora é a fina flor dos detetives, miss
Marple!
Os
olhos da velha senhora reluziram, mas ela protestou modestamente:
— Oh,
não, não! Nada disso. Ocorre que vivendo numa cidadezinha como a
que eu vivo, a gente acaba conhecendo bem a natureza humana. Mas
vocês me deixaram realmente curiosa. Contem-me qual é o problema de
vocês.
— Temo
que seja terrivelmente banal... apenas um tesouro enterrado — disse
Edward.
— Mesmo?
Mas isso parece muito excitante!
— Eu
sei. Como A Ilha do Tesouro. Mas nosso problema não tem os toques
românticos usuais. Nenhum ponto num mapa indicado por uma caveira e
ossos cruzados, nenhuma orientação como “quatro passos para a
esquerda, oeste por norte”. É terrivelmente prosaico... indica
apenas onde nós devemos cavar.
— Vocês
já tentaram?
— Posso
dizer que cavamos cerca de oito quilômetros quadrados! O local está
pronto para virar uma horta comercial. Só estamos discutindo se
vamos plantar abobrinhas ou batatas.
Charmian
o cortou bruscamente:
— Que
acha de lhe contar logo tudo sobre o caso?
— Mas,
claro, minha querida.
— Então
vamos encontrar um lugar calmo. Venha, Edward.
Ela
abriu caminho pela sala apinhada de gente e repleta de fumaça, e
eles subiram a escada até uma saleta de estar no segundo andar.
Mal
eles se sentaram, Charmian começou intempestivamente:
— Bem,
aí vai! A história começa com o tio Mathew, tio, ou melhor,
tio-avô de nós dois. Ele era muito velho. Edward e eu éramos seus
únicos parentes. Ele gostava de nós e sempre declarou que quando
morresse deixaria seu dinheiro para nós dois. Bem, ele morreu em
março passado e deixou tudo que tinha para ser dividido igualmente
entre Edward e eu. O que acabei de dizer parece rude... não quis
dizer que foi bom que ele tenha morrido... na verdade, nós éramos
muito afeiçoados a ele, mas já fazia algum tempo que ele estava
doente.
— A
questão é que o “tudo” que ele deixou se revelou, na prática,
absolutamente nada. E isso, francamente, foi um pequeno golpe para
nós dois, não foi, Edward?
O
amável Edward concordou.
— Sabe
— ele disse —, nós contávamos um bocado com isso. Isto é,
quando a gente sabe que vai receber uma bolada de dinheiro, a
gente... bem... não se empenha para ganhar a vida por conta própria.
Eu estou no Exército e não recebo nada além do meu soldo, a
Charmian não tem um tostão. Trabalha como contrarregra num teatro
de repertório. Muito interessante, e ela gosta, mas dinheiro que é
bom, nada. Nós contávamos em nos casar, mas não estávamos
preocupados com o lado pecuniário porque sabíamos que ficaríamos
muito bem de vida algum dia.
— E
agora, como vê, não ficamos! — disse Charmian. — Além disso,
Ansteys é a propriedade da família, e Edward e eu a amamos, e
provavelmente teremos que vendê-la. E Edward e eu sentimos que não
conseguiremos suportar isso! Mas se não acharmos o dinheiro do tio
Mathew, teremos de vender.
— Sabe,
Charmian, ainda não chegamos ao ponto vital — disse Edward.
— Bem,
fale você, então.
Edward
virou-se para miss Marple.
— É
o seguinte. À medida que envelhecia, o tio Mathew foi ficando cada
vez mais cismado. Ele não confiava em ninguém.
— Muito
sábio da parte dele — disse miss Marple. — A depravação da
natureza humana é inacreditável.
— Bem,
a senhora pode ter razão. Seja como for, o tio Mathew pensava assim.
Ele tinha um amigo que perdeu todo seu dinheiro em um banco, e outro
que foi arruinado por um advogado fujão, e ele próprio perdeu algum
dinheiro numa companhia fraudulenta. Ele chegou ao ponto de
sustentar, durante muito tempo, que a única coisa segura a fazer era
converter seu dinheiro em lingotes sólidos e enterrá-lo.
— Ah
— exclamou miss Marple —, começo a entender.
— Sim.
Amigos discutiram com ele, apontaram que ele não receberia nenhum
juro dessa maneira, mas ele sustentava que isso realmente não tinha
importância. O grosso do seu dinheiro, ele dizia, deveria ser
“mantido numa caixa debaixo da cama ou enterrado no jardim”.
Essas foram suas palavras.
— E
quando ele morreu — Charmian prosseguiu —, não deixou quase nada
em ações, embora fosse muito rico. De modo que nós pensamos que
foi isso que ele deve ter feito.
— Descobrimos
que ele tinha vendido ações e sacado grandes somas de dinheiro de
tempos em tempos, e ninguém sabe o que fez com elas. Mas parece
provável que ele tenha vivido de acordo com seus princípios,
comprado ouro e o enterrado — Edward explicou.
— Ele
não disse nada antes de morrer? Deixou algum papel? Alguma carta?
— Essa
é a parte desesperadora da coisa. Não deixou. Ficou inconsciente
por alguns dias, mas se reanimou antes de morrer. Ele olhou para nós
e deu uma risadinha... uma risadinha fraca, apagada. Ele disse “Vocês
ficarão bem, meu lindo casal de pombinhos”. E aí ele deu um
tapinha no olho, seu olho direito, e piscou para nós. E logo em
seguida... morreu. Pobre tio Mathew.
— Ele
deu um tapinha no olho — disse miss Marple pensativa.
Edward
disse ansiosamente:
— Isso
faz algum sentido para a senhora? Me fez lembrar uma história de
Arsène Lupin em que havia alguma coisa oculta no olho de vidro de um
homem. Mas o tio Mathew não tinha um olho de vidro.
Miss
Marple abanou a cabeça.
— Não...
não consigo pensar em nada por enquanto.
— A
Jane nos disse que a senhora indicaria na hora onde cavar! —
Charmian disse, decepcionada.
Miss
Marple sorriu.
— Não
sou tão feiticeira, sabe. Não conheci o seu tio, ou que tipo de
homem ele era, e não conheço a casa ou o terreno.
— E
se os conhecesse? — Charmian disse.
— Bem,
deve ser bem simples, de fato, não deve? — disse miss Marple.
— Simples!
— disse Charmian. — Venha até Ansteys e veja se é simples!
É
possível que ela não tenha feito o convite a sério, mas miss
Marple disse prontamente:
— Bem,
minha querida, é muita gentileza sua. Eu sempre quis ter a chance de
procurar um tesouro escondido. E — acrescentou, olhando para eles
com um sorriso pudico radiante — com um interesse amoroso, também!
— Viu
só! — disse Charmian, gesticulando dramaticamente.
Eles
haviam terminado um grande giro por Ansteys. Haviam contornado a
horta, totalmente revirada. Haviam atravessado os pequenos bosques,
onde o entorno de cada árvore importante fora escavado, e observado
entristecidos a superfície esburacada do antes liso gramado. Haviam
subido até o sótão, onde velhos baús e arcas haviam sido pilhados
de seus conteúdos. Haviam descido aos porões, onde ladrilhos do
piso haviam sido arrancados deliberadamente de seus encaixes. Haviam
feito medições e dado pancadinhas em paredes, e haviam mostrado a
miss Marple cada peça de mobília antiga que continha ou poderia ser
suspeita de conter uma gaveta secreta.
Sobre
uma mesa na sala de desjejum havia uma pilha de papéis, todos os
papéis que o falecido Mathew Stroud havia deixado. Nenhum fora
destruído, e Charmian e Edward criaram o hábito de voltar a eles a
todo momento, vasculhando atentamente contas, convites e
correspondência comercial na esperança de topar com uma pista que
passara despercebida.
— Consegue
pensar em algum lugar que não olhamos? — perguntou Charmian,
esperançosa.
Miss
Marple abanou a cabeça.
— Parece
que vocês foram muito meticulosos, minha querida. Talvez, se posso
dizer, um tantinho meticulosos demais. Sabem, eu sempre penso
que é preciso ter um plano. É como minha amiga, mrs. Eldritch, ela
tinha uma ótima criadinha que lustrava lindamente o linóleo, mas
ela era tão meticulosa que lustrava demais o piso do banheiro, e, um
dia, quando mrs. Eldritch estava saindo do banho o capacho de cortiça
escorregou sob seus pés, e ela teve uma queda muito feia, aliás,
quebrou a perna! Muito embaraçoso, porque a porta do banheiro estava
trancada, é claro, e o jardineiro teve de pegar uma escada e entrar
pela janela... terrivelmente angustiante para mrs. Eldritch, que
sempre foi uma mulher muito recatada.
Edward
se remexia sem parar.
— Por
favor, me perdoe — miss Marple disse rapidamente. — Tenho a
mania, eu sei, de sair pela tangente. Mas uma coisa puxa outra. E às
vezes isto é útil. O que eu estava tentando dizer é que talvez se
nós tentássemos aguçar nossa sagacidade e pensar num lugar
provável...
Edward
cortou sua fala:
— Pense
em um, miss Marple. Os cérebros da Charmian e o meu agora são
lindos vazios!
— Querido,
querida. É claro... é estafante para vocês. Se não se importam,
vou dar uma espiada em tudo isso — ela apontou para os papéis
sobre a mesa. — Isto é, se não houver nada privado... não quero
parecer uma bisbilhoteira.
— Oh,
tudo bem. Mas temo que não encontrará nada.
Ela
sentou-se à mesa e examinou metodicamente o maço de documentos. Ao
recolocar cada um no lugar, ela os separava automaticamente em
montículos. Quando terminou, ficou sentada olhando para frente por
alguns minutos.
Edward
perguntou, não sem um traço de malícia:
— E
então, miss Marple?
Miss
Marple voltou a si com um pequeno sobressalto.
— Desculpe-me.
Muito proveitoso.
— Descobriu
alguma coisa relevante?
— Oh,
não, nada disso, mas acredito que sei que tipo de homem era seu tio
Mathew. Muito parecido com meu próprio tio Henry, eu creio. Gosta de
piadas bem óbvias. Um solteiro, evidentemente... me pergunto por
quê... talvez uma decepção antiga? Metódico até certo ponto, mas
não muito afeito a se amarrar... poucos solteiros são assim!
Pelas
costas de miss Marple, Charmian fez um sinal para Edward. O sinal
dizia: Ela está gagá.
Miss
Marple continuara a falar alegremente de seu falecido tio Henry.
— Gostava
muito de trocadilhos, e como. E, para algumas pessoas, trocadilhos
são uma chatice. Um mero jogo de palavras pode ser muito irritante.
Era um homem desconfiado, também. Estava sempre convencido de que a
criadagem o estava roubando. E, às vezes, é claro, ela estava, mas
não sempre. A coisa se apoderou dele, pobre homem. Perto do fim, ele
suspeitava que estivessem adulterando a sua comida, e finalmente se
recusou a comer qualquer coisa exceto ovos cozidos! Querido tio
Henry, ele foi uma alma tão alegre numa época. Gostava muito de seu
café após o jantar. Ele sempre dizia “Este café é bem
mourisco”, querendo dizer, entendem, que gostaria de um pouco mais.
Edward
sentiu que se ouvisse mais alguma coisa sobre o tio Henry ficaria
louco.
— Gostava
de pessoas jovens também — prosseguiu miss Marple —, mas tendia
a arreliá-las um pouco, se entendem o que eu digo. Costumava pôr
sacos de doces onde uma criança simplesmente não conseguiria
alcançá-los.
Deixando
a polidez de lado, Charmian disse:
— Ele
me parece horrível!
— Oh,
não, querida, apenas um velho solteirão, sabe, e pouco acostumado
com crianças. E ele não era nada estúpido, aliás. Costumava
guardar uma boa quantia de dinheiro na casa, e tinha um cofre para
colocá-lo. Fazia um estardalhaço sobre ele... sobre como ele era
seguro. De tanto ele falar, ladrões entraram uma noite e abriram um
buraco no cofre com um dispositivo químico.
— Bem
feito para ele — disse Edward.
— Oh,
mas não havia nada no cofre — disse miss Marple. — Percebem, ele
na verdade guardava o dinheiro em alguma outra parte... atrás de
alguns volumes de sermões na biblioteca, aliás. Dizia que as
pessoas jamais tiravam um livro daquele tipo da estante!
Edward
a interrompeu excitadamente:
— Eu
digo, é uma ideia e tanto. Que tal a biblioteca?
Mas
Charmian abanou a cabeça com desdém.
— Acha
que não pensei nisso? Verifiquei todos os livros na terça-feira da
semana passada, quando você foi a Portsmouth. Tirei-os para fora,
sacudi cada um. Nada ali.
Edward
suspirou. Depois, levantando-se, ele tratou de se livrar
diplomaticamente de sua decepcionante convidada.
— Foi
extrema bondade sua ter vindo como veio e tentado nos ajudar. Pena
que tenha sido tudo um fracasso. Sinto termos tomado tanto tempo seu.
Mas... vou tirar o carro, e a senhora poderá pegar o trem das três
e meia...
— Oh
— disse miss Marple —, mas nós precisamos encontrar o dinheiro,
não é? Não deve desistir, mr. Rossiter. “Se de inicio não
consegues, tenta, tenta, tenta de novo.”
— Quer
dizer que vai... continuar tentando?
— Estritamente
falando — disse miss Marple —, ainda não comecei. “Primeiro
pegue sua lebre...”, como diz mrs. Beaton em seu livro de
culinária... um livro maravilhoso, mas extremamente caro; a maioria
das receitas começa com “Pegue um quarto de creme de leite e uma
dúzia de ovos”. Deixe-me ver, onde é que eu estava? Oh, sim. Bem,
por assim dizer, nós pegamos nossa lebre, sendo a lebre, é claro,
seu tio Mathew, só nos restando decidir agora onde ele teria
escondido o dinheiro. Deve ser bem simples.
— Simples?
— perguntou Charmian.
— Oh,
sim, querida. Estou certa de que ele teria feito a coisa óbvia. Uma
gaveta secreta, esta é a minha solução.
Edward
disse secamente:
— Não
se podem pôr barras de ouro numa gaveta secreta.
— Não,
não, claro que não. Mas não há razão para acreditar que o
dinheiro esteja em barras de ouro.
— Ele
sempre costumava dizer...
— O
mesmo fazia meu tio Henry sobre o seu cofre! De modo que eu deveria
suspeitar fortemente de que isso era apenas um subterfúgio.
Diamantes... estes sim poderiam estar facilmente numa gaveta secreta.
— Mas
nós olhamos em todas as gavetas secretas. Chamamos um carpinteiro
para examinar os móveis.
— Chamaram,
querida? Foi muito inteligente da sua parte. Eu sugeriria que a
escrivaninha pessoal de seu tio seria o mais provável. Seria aquela
alta encostada lá na parede?
— Sim.
E vou lhe mostrar — Charmian foi até o móvel e abriu o tampo.
Dentro havia escaninhos e pequenas gavetas. Ela abriu então uma
portinhola no centro e tocou numa mola dentro da gaveta da esquerda.
O fundo do recesso central deu um estalo e deslizou para frente.
Charmian o puxou para fora, revelando um pequeno espaço oco embaixo.
Ele
estava vazio.
— Mas
não é uma coincidência? — exclamou miss Marple. — O tio Henry
tinha uma escrivaninha igualzinha a essa, só que a dele era de
nogueira e esta é de mogno.
— Seja
como for — disse Charmian —, não há nada ali, como pode ver.
— Imagino
— disse miss Marple — que seu carpinteiro era um jovem. Ele não
sabia tudo. As pessoas eram muito habilidosas quando faziam
esconderijos naqueles tempos. Havia como que um segredo dentro de um
segredo.
Ela
tirou um grampo de seu coque bem arrumado de cabelos grisalhos.
Endireitando-o, ela enfiou a ponta no que parecia um minúsculo
buraco de cupim em um lado do recesso secreto. Com alguma
dificuldade, ela puxou uma gavetinha. Nela havia um maço de cartas
desbotadas e um papel dobrado.
Edward
e Charmian saltaram juntos sobre o achado. Com os dedos tremendo,
Edward desdobrou o papel. Ele o deixou cair com uma exclamação de
desgosto.
— Uma
droga de receita de culinária. Presunto assado!
Charmian
estava desatando uma fita que amarrava o maço de cartas.
Ela
tirou uma e deu uma olhada. — Cartas de amor!
Miss
Marple reagiu com entusiasmo vitoriano:
— Que
coisa interessante! Talvez a razão porque seu tio nunca se casou.
Charmian
leu em voz alta:
Meu
sempre querido Mathew, devo confessar que parece que faz muito tempo
que recebi sua última carta. Tento me ocupar com as várias tarefas
que me foram conferidas, e amiúde digo a mim que sou mesmo uma
afortunada de ver tanta coisa do globo, embora tivesse pouca ideia de
que quando fosse para a América viajaria para estas ilhas distantes!
Charmian
fez uma pausa:
— De
onde ela veio? Oh! Havaí! — e prosseguiu:
Estes
nativos, coitados, ainda estão longe de ver a luz. Ainda vivem num
estado selvagem e despidos, e passam a maior parte do tempo nadando e
dançando, adornando-se com guirlandas de flores. Mr. Gray fez
algumas conversões, mas é um trabalho árduo, e ele e mrs. Gray
ficam tristemente desencorajados. Tento fazer tudo que posso para
animá-lo e encorajá-lo, mas eu também fico com frequência triste
por uma razão que você pode imaginar, querido Mathew. A ausência é
uma provação severa para um coração que ama. Seus renovados votos
e protestos de afeição me alegraram enormemente. Agora e sempre
você tem meu fiel e devotado coração, querido Mathew, e eu
continuo sendo o seu sincero amor, Betty Martin.
PS
— Endereço minha carta protegida para nossa amiga mútua, Matilda
Graves, como sempre. Espero que Deus me perdoe esse pequeno
subterfúgio.
Edward
assobiou:
— Uma
missionária! Então era esse o romance do tio Mathew. Fico tentando
imaginar por que eles nunca se casaram.
— Ela
parece ter viajado pelo mundo todo — disse Charmian, examinando as
cartas. — Ilha Maurício... toda sorte de lugares. Provavelmente
morreu de febre amarela ou algo assim.
Uma
risadinha suave os sobressaltou. Miss Marple estava aparentemente se
divertindo muito.
— Bem,
bem — disse ela. — Quem diria!
Ela
estava lendo a receita de presunto assado. Ao notar seus olhares
curiosos, ela leu em voz alta:
— Presunto
assado com espinafre. Pegue uma bonita peça de presunto, recheie-a
com cravos, e cubra com açúcar mascavo. Asse em forno baixo. Sirva
rodeado por purê de espinafre. O que acham disso, agora?
— Penso
que parece horrível — disse Edward.
— Não,
não, na verdade seria muito bom... mas o que pensam da coisa
toda?
Um
súbito raio de luz iluminou a face de Edward.
— Acha
que é um código... algum tipo de criptograma? — ele comprou a
ideia. — Sabe, Charmian, poderia ser, não é? Se não, por que
colocar uma receita de culinária numa gaveta secreta?
— Exatamente
— disse miss Marple. — Muito, muito significativo.
— Eu
sei o que pode ser — disse Charmian. — Tinta invisível! Vamos
aquecê-lo. Ligue o fogão elétrico.
Edward
assim fez, mas não surgiram sinais de escrita com o tratamento.
Miss
Marple tossiu.
— O
que eu realmente penso, sabem, é que vocês estão complicando
demais a coisa. A receita é apenas um indício, por assim dizer.
Creio que as cartas é que são mais significativas.
— As
cartas?
— Em
especial — disse miss Marple —, a assinatura.
Mas
Edward mal a ouviu e chamou cheio de excitação:
— Charmian!
Venha aqui! Ela está certa. Veja... os envelopes são velhos, isso é
fato, mas as cartas foram escritas muito depois.
— Exatamente
— disse miss Marple.
— Elas
são falsamente velhas apenas. Aposto qualquer coisa que o velho tio
Mat as falsificou pessoalmente...
— Exatamente
— disse miss Marple.
— A
coisa toda é um embuste. Nunca existiu uma missionária. Deve ser um
código.
— Minhas
caras, caras crianças... não há mesmo nenhuma necessidade de
tornar tudo tão difícil. Seu tio era de fato um homem muito
simples. Ele teve de fazer sua piadinha, apenas isso.
Pela
primeira vez eles lhe prestaram inteira atenção.
— O
que exatamente quer dizer, miss Marple? — perguntou Charmian.
— Quero
dizer, querida, que você está segurando o dinheiro em sua mão
neste minuto.
Charmian
olhou para baixo.
— A
assinatura, querida. Isso revela tudo. A receita é apenas um
indício. Retire todos os cravos, o açúcar mascavo e o resto todo.
O que ela é de fato? Ora, presunto e espinafre, é claro! Presunto e
espinafre! Significando... bobagem! Então está claro que as cartas
é que são importantes. E aí se você levar em consideração o que
seu tio fez pouco antes de morrer. Ele deu uma batidinha no olho,
você disse. Bem, aí está... isso lhe dá a pista, percebe.
— Nós
estamos loucos, ou a senhora está? — Charmian disse.
— Seguramente,
minha querida, você deve ter ouvido a expressão “por fora bela
viola, por dentro pão bolorente”, ou ela já terá caído em
desuso? Que incrível!
Edward
arquejou, seus olhos fitavam a carta em sua mão:
— Betty
Martin...
— Claro,
mr. Rossiter. Como disse agora há pouco... não havia tal pessoa. As
cartas foram escritas por seu tio, e eu imagino que ele se divertiu
um bocado ao escrevê-las! Como diz, a escrita nos envelopes é muito
mais antiga... aliás, o envelope não poderia pertencer às cartas,
de todo modo, porque o carimbo postal da que você está segurando é
de 1851 — ela fez uma pausa. E prosseguiu enfaticamente: — Mil
oitocentos e cinquenta e um. E isso explica tudo, não é?
— Não
para mim — disse Edward.
— Bem,
é claro — disse miss Marple. — Ouso dizer que não significaria
para mim não fosse meu sobrinho-neto Lionel. Um garotinho tão
querido e um apaixonado colecionador de selos. Sabe tudo sobre selos.
Foi ele que me contou sobre os selos raros e caros e que uma
maravilhosa nova descoberta fora colocada em leilão. E eu me lembro
de ele mencionar um selo — um azul de dois cents de mil oitocentos
e cinquenta e um. Ele saiu por algo em torno de vinte e cinco mil
dólares, creio. Caramba! Eu devia imaginar que os outros selos são
também raros e valiosos. Seu tio seguramente os comprou por meio de
intermediários e cuidadosamente “encobriu suas pegadas” como
dizem em histórias policiais.
Edward
gemeu e enterrou o rosto nas mãos.
— O
que foi? — perguntou Charmian.
— Nada.
Foi só o pensamento horrível de que, não fosse por miss Marple,
nós poderíamos ter queimado estas cartas por decente cavalheirismo.
— Ah
— disse miss Marple —, é precisamente isso que esses velhos
cavalheiros piadistas não percebem. O tio Henry, lembram, enviou a
sua sobrinha favorita uma nota de cinco libras de presente de Natal.
Ele a colocou num cartão de Natal, selou o cartão com goma, e
escreveu nele “Amor e boas festas. Lamento que isso seja tudo que
posso lhe dar este ano”. Ela, pobre menina, ficou aborrecida com o
que achou que fosse sovinice da parte dele e o atirou direto no fogo;
aí, é claro, ele teve de dar-lhe outra.
Os
sentimentos de Edward para com o tio Henry haviam sofrido uma brusca
e completa mudança.
— Miss
Marple — disse. — Vou buscar uma garrafa de champanhe. Beberemos
à saúde do seu tio Henry.
Agatha Christie, in Três ratos cegos e outros contos
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