Visgo,
feitiço ou mandinga, algo sempre atraiu o carioca para a noite e o
fez ficar até altas horas na rua. Isso desde o Rio Colonial, quando
a prática não era aconselhável. As ruas eram escuras, o
policiamento, precário, e o cidadão tinha de se precaver contra
embuçados, assassinos, salteadores, capoeiras, rufiões, ciganos,
contrabandistas, escravos fugidos, mendigos agressivos e simples
vadios, muitos com facas e punhais entre as dobras da camisa. Donde a
vida social era limitada — posto o sol, a maioria da população ia
para casa e contemplava o mundo pela treliça das janelas. Mas já
havia os intimoratos, que se aventuravam pelas ruelas e, às vezes,
pagavam o preço. Um bordejo para além da rua da Vala (depois,
Uruguaiana) ou do Campo de Santana, então limites da cidade, podia
custar a vida.
Com
a chegada da Corte portuguesa ao Rio e a abertura dos portos, em
1808, e a Independência, em 1822, tudo mudou. Iluminaram-se ruas,
hábitos se modificaram — o jantar e a ceia avançaram noite
adentro —, surgiram os primeiros jornais, as treliças foram abaixo
e homens e mulheres finalmente se olharam nos olhos. A presença da
família real e da nobreza, da numerosa burocracia civil e militar,
do corpo diplomático e dos comerciantes ingleses e franceses
estabeleceu uma nova agenda noturna, que incluía visitas aos amigos,
festas na rua das Belas Noites — em frente ao recém-inaugurado
Passeio Público —, idas à ópera, danças nos salões e escapadas
aos cafés-cantantes. Em 1840, já tínhamos os bailes de Carnaval;
em 1859, o teatro de revista; e, em 1892, o túnel e o bonde levaram
a cidade até Copacabana. A noite ficou imensa.
Nesse
mesmo ano, um homem chamado José Mourão abriu uma casa de bailes e
folias na rua do Lavradio, 49, na Lapa: o High-Life Club. A
princípio, pensou-a como uma agremiação carnavalesca, dedicada ao
“Deus Momo”. O reclame gritava: “Ao prazer! À loucura! Ao Deus
do Carnaval!”, e assim foi nos primeiros tempos. Ao fazer o
livro-caixa, no entanto, Mourão descobriria que não tinha sentido
limitar os prazeres e loucuras a uma celebração isolada, e o
High-Life se tornou um lugar onde se bebia, dançava e assistia a
espetáculos pelo ano inteiro. Mas, a exemplo do teatro de revista,
dos circos e dos cafés, era um lugar do qual o público se retirava
e a casa suspirava e morria assim que terminava a apresentação.
Em
1918, Mourão vendeu o High-Life para o ditador das diversões
públicas no Rio, o italiano Paschoal Segreto. Em seu nome ou no de
sua empresa, Segreto controlava teatros, cafés-concerto, salas de
cinema (algumas, para exibição de filmes pornográficos),
cervejarias, parques de diversões, circos, mafuás, bilhares,
faquires, casas de tavolagem e, não por último, os melhores pontos
de jogo do bicho na cidade. Seu dedo estava em tudo, desde humildes
fogueiras juninas e concertos de bandinhas em coretos até cerimônias
de formatura de acadêmicos e monumentais festas de réveillon. Não
havia ramo que lhe fosse estranho. Em 1898, seu sobrinho Affonso,
filho de seu irmão Gaetano, produzira as primeiras imagens filmadas
no Brasil: as da Guanabara, tomadas à medida que o navio que o
trazia da França, o Brésil, ia penetrando na baía. Filme esse
exibido na primeira sala brasileira de cinema a funcionar num prédio,
não numa tenda, e também deles: o salão Novidades de Paris, na rua
do Ouvidor.
Segreto
tinha grandes planos para o High-Life. Assim que o comprou,
transferiu-o da tapera em que ele funcionava, na rua do Lavradio,
para o palacete de três andares que pertencera à família do barão
do Rio Negro, na rua Santo Amaro, 26, na Glória. Não o pôs abaixo,
mas submeteu-o a uma reforma que levou um ano e resultou em
instalações à altura de suas ambições.
O
novo High-Life ocupava os três andares, com salões, saletas,
mezaninos e quartos particulares (para encontros íntimos), terraços
e alamedas a céu aberto, tudo cercado por um jardim com árvores
frutíferas. Habituado a grandes números, Segreto imaginou bailes de
Carnaval com 10 mil casais dançando por três dias e noites,
animados por dez orquestras que se revezariam — e parece ter
chegado perto disso no Carnaval de 1919, o primeiro e único que
comandou pessoalmente. Seus frequentadores, disse um cronista, usavam
“toilettes de um luxo asiático e casacas a cuja botoeira se
enfloravam camélias e gardênias”.
Mas
Segreto tinha também uma reputação difícil de carregar. No âmbito
doméstico, era um contraventor, o que lhe custava uma fortuna para
aplacar a lei. A Europa tampouco lhe dava sossego — vivia
processando-o por se apropriar de invenções recentes e registrá-las
em seu nome no Brasil (uma delas, o cinematógrafo de Lumière!).
Tentando amenizar esses estigmas e conferir alguma respeitabilidade
ao High-Life, Segreto convidou gente de teatro, jornalistas e
autoridades para participar da diretoria.
Não
ficou nisso. Ao fim dos grandes bailes, e já com o dia nascendo,
conduzia seus clientes a uma longa mesa de chás e quitutes que se
estendia pelo jardim — um café da manhã gigante, para
restaurar-lhes as forças. Quando os figurões se retiravam, ele os
acompanhava até a porta. Os mais íntimos, Segreto mandava levar em
casa num dos automóveis da empresa. Não adiantava — ninguém
ignorava que, por mais discreto que fosse, o High-Life era também o
paraíso da roleta e do carteado, do champanhe em taças debruadas de
éter e da cocaína que se aspirava de frasquinhos, vendidos pelas
demi-mondaines que o frequentavam.
Mas
Paschoal morreu em 1920, aos 51 anos, um ano depois da inauguração.
Seu irmão Gaetano também já morrera, e os filhos deste, Domingos,
Paschoal e Affonso,
encarregaram-se
de tocar o barco. O ilustrador Roberto Rodrigues (filho do jornalista
Mario Rodrigues e irmão do futuro Nelson Rodrigues) imortalizou o
impressionante interior do casarão para o jornal Crítica. Em
1929, o High-Life apresentou a maior atração mundial de seu tempo:
a bela negra americana radicada em Paris Josephine Baker, 23 anos,
famosa pela tanga de penas e quase todo o corpo de fora ao cantar
“J’ai deux amours”. Pelas décadas seguintes, no entanto, o
High-Life foi ladeira abaixo. Incapaz de sustentar uma programação
de grandes cartazes, começou a perder para as gafieiras, os dancings
e os cassinos o título de centro da noite carioca, embora ainda
conservasse o de melhor Carnaval.
A
cidade cresceu e o High-Life já não era irresistível. De 1938 a
1940, o poeta modernista Mario de Andrade, paulistano a trabalho no
Rio, morou quase defronte a ele — no número 5 da rua Santo Amaro.
Imagina-se que, da janela de seu apartamento no quarto andar, com
vista para a rua, o autor de Paulicéia desvairada ouvisse os ecos da
fuzarca e não hesitasse em trocar o robe de chambre pela fatiota e
fosse até lá para assuntar o movimento. Mas não há registro de
que Mario tenha ido sequer uma vez ao High-Life. E de que a alegre
vizinhança o sacudisse da depressão que arrastou por toda a sua
temporada carioca.
Nos
anos 50, o melhor Carnaval do Rio já se tornara, de longe, o do
Copacabana Palace, e o High-Life tinha poucos motivos para continuar
aberto. Um deles era abrigar ocasionalmente a entrega do cetro e da
coroa à Rainha do Rádio, eleita pela compra de cupons da Revista
do Rádio. Em 1956, viveu seu último momento de glória: acolheu
os ensaios do musical Orfeu da Conceição, de Antonio Carlos
Jobim e Vinicius de Moraes — a ser encenado não em seu palco, mas
no do Theatro Municipal. Nesses ensaios, no entanto, suas paredes
foram as primeiras a ouvir o mais que perfeito samba-canção “Se
todos fossem iguais a você” na voz de Haroldo Costa, que fazia
Orfeu.
Em
1957, depois de longa e lenta agonia, o High-Life alugou suas
dependências a uma repartição federal e calou-se para sempre.
Ou
não. A repartição federal seria a Supra (Superintendência da
Reforma Agrária), que, no período presidencialista de João Goulart
(1962-4), foi um dos mais furiosos centros de agitação política
que deram pretexto ao golpe militar.
Em
1902, o jornalista Edmundo Bittencourt, proprietário do
recém-lançado Correio da Manhã e comprador de terrenos em
Copacabana, alugou a uma francesa uma casa que possuía na esquina da
rua da praia com a da Igrejinha (em breve com suas denominações
definitivas: avenida Atlântica e rua Francisco Otaviano). A francesa
era Madame Louise Chabas, 57 anos, baixa, gordinha e simpática; e a
casa, a chamar-se Mère Louise, destinava-se a ser um sóbrio
restaurante de frutos do mar. E era bom que fosse sóbria — ficava
a poucos metros da igrejinha dedicada desde 1637 a Nossa Senhora de
Copacabana, uma santa boliviana cuja imagem se abrigava ali e que
dera o nome ao bairro.
Os
mais devotos poderiam discordar da decoração do estabelecimento: ao
estilo de um saloon do Oeste americano, com varanda, portas em
vaivém dando para o salão, piano, balcão, espelho e mesas, tudo em
torno de uma cadeira de balanço da qual Madame Louise controlava o
movimento. Apesar do ambiente mais propício a vaqueiros, seus
clientes eram a nata letrada e boêmia do Rio: políticos, ministros
de Estado, diplomatas, artistas e jornalistas, alguns acompanhados de
“amigas” ou admiradoras. Louise conhecia a todos pelo nome e ia
de mesa em mesa, falando com cada um. Tal intimidade tornava natural
que, em emergências, ela cedesse — pela escorchante diária de 6
mil-réis — discretos aposentos nos fundos para quem precisasse
“repousar”.
Em
1907, Louise transformou a casa num cabaré, dirigido por seu
patrício Auguste Castella, e do qual, no começo, ela foi a atração
principal, cantando tangos vestida de baiana. Foi sucedida por
músicos e cantores franceses de passagem pelo Rio, que executavam um
repertório de velhas canções maliciosas, como “Les filles de la
Rochelle” e “La femme du roulier”.
Pelos
anos seguintes, a casa foi um sucesso e já com as características
que, no futuro, seriam a marca das boates de Copacabana: lugares a
que se podia chegar a qualquer hora da noite com a certeza de que
estariam abertos, funcionando, e onde se poderia jantar, beber,
dançar, ouvir música ou encontrar amigos. No começo da madrugada,
assistia-se a shows — um deles, Vênus no Rio, uma revista
musical com 45 números de canto e dança em uma hora e meia de
espetáculo; terminado este, voltava a música de fundo. O bairro
passara a ser servido por bondes que rodavam até as duas da manhã,
o que garantia uma longa noite de loucuras para quem não quisesse
voltar cedo para casa. Em último caso, o automóvel de Madame
encarregava-se de buscar ou trazer os clientes.
Mas
Louise foi vítima de sua atitude tolerante. Os jornais viviam
registrando bafafás envolvendo seu nome, mesmo quando ela não tinha
culpa. As pessoas comiam e bebiam à farta em suas mesas e não
resistiam ao apelo do mar lá fora — atiravam-se a ele, de roupa e
tudo, sentiam-se mal e, não raro, alguém se afogava. Brigas entre
clientes eram comuns, e mais de um deles foi morto a tiros no salão,
contribuindo para a crônica policial sobre o estabelecimento. E,
para Louise, ficou impossível conciliar o requinte de seus serviços
e instalações com os calotes que os clientes mais amigos lhe
aplicavam — ceias copiosas à base de aves nobres e champanhe eram
penduradas e nunca saldadas. Tudo conduzia à falência iminente.
Em
1911, velha e doente, Louise entregou os pontos. Vendeu a casa (para
a Brahma, que a transformou numa cervejaria), pagou as dívidas e
anunciou que se recolheria ao Asilo da Velhice Desamparada. Mas,
pouco depois, meteu-se em outra aventura: o Café Bellevue, na rua
Gustavo Sampaio, 61, no Leme, sem sucesso. Por último, foi vista
gerenciando um rendez-vous de luxo no beco dos Carmelitas, números 3
e 5, na Lapa. Morreu pobre, em 1918, aos 73 anos.
Sem
ela, e sob diferentes direções, o Mère Louise ainda teve os seus
momentos de história. Por algum tempo, em 1912, passou a chamar-se
Igrejinha, o que parecia uma heresia; mas logo voltou a ser o Mère
Louise. No Carnaval de 1914, promoveu batalhas noturnas de confete e
lança-perfume das quais participavam “gentis senhoritas”. Nos
fins de tarde, um aviador francês, Louis Deneau, decolava da avenida
Atlântica com seu teco-teco Blériot, ia fazer piruetas sobre o
largo da Carioca e voltava todo iluminado para pousar em frente ao
local — sim, era possível àqueles aviõezinhos decolar e pousar
na terra batida. Num galpão ao lado do Mère Louise, Edmundo
Bittencourt começou a explorar um cinema, projetando numa telinha de
pano os faroestes de Broncho Billy e os seriados do francês
Fantômas.
Em
1916, o cabaré ganhou um possante vizinho: o Forte de Copacabana,
com o que se criou certa atmosfera vienense em torno do Mère Louise
— soldados e oficiais fardados às vezes disputavam alguma
frequentadora do estabelecimento. A igrejinha sobreviveu ao forte,
mas não sobreviveria à necessidade de se construir um quartel para
o alojamento da guarnição. O terreno foi desapropriado, a
igrejinha, demolida, e o quartel, em 1918, concluído. Com isso,
findou-se uma prática que vinha desde o começo do século: depois
de acertar suas contas com Deus nos bancos do templo, muitos cidadãos
iam beber, dançar e se esbaldar no Mère Louise — ou vice-versa.
Só lhes restava agora beber, dançar e se esbaldar.
Na
tarde do dia 5 de julho de 1922, em que dezoito oficiais e soldados
rebeldes deixaram o Forte de Copacabana para se bater até a morte
contra as forças do governo de Epitácio Pessoa — os “18 do
Forte” —, o Mère Louise não tinha por que se meter. Aliás,
tudo recomendava a neutralidade. Mas, quando os militares passaram
pela sua porta, um de seus clientes, o gaúcho Otavio Corrêa, veio
lá de dentro, chegou à calçada e lhes fez um aceno. Estava
aderindo à rebelião e queria uma arma. O tenente Newton Prado
acedeu e entregou-lhe um fuzil Mauser. Corrêa juntou-se a eles e, na
mais famosa foto que se fez da marcha, pode-se vê-lo de terno escuro
e chapéu-chile — o único civil da foto —, na primeira fila.
Talvez por isso tenha sido um dos primeiros a ser abatido, antes
mesmo que chegassem à rua Bolívar. Com isso, o Mère Louise tinha
agora um mártir.
Em
novembro de 1930, o ex-presidente Washington Luiz, já deposto e
preso no Forte de Copacabana, recusou-se a comer a boia da soldadesca
e exigiu que suas refeições lhe fossem trazidas do Mère Louise.
Fizeram-lhe a vontade e, com isso, todos os dias, o garçom espanhol
Francisco Pino ia servir-lhe o café da manhã às sete e meia, o
almoço ao meio-dia e o jantar, às sete horas. Mas nem isso foi
suficiente para salvar a face do Mère Louise, que, já então, se
reduzira a uma simples casa de prostituição. A polícia fechou-o de
vez, em 1931, como imoral.
Ruy Castro, in A noite do meu bem
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