segunda-feira, 30 de maio de 2022

O provedor de iniquidades Monk Eastman


OS DESTA AMÉRICA

Bem perfilados diante de um fundo de paredes azul-celeste ou do céu aberto, dois compadritos resguardados em séria roupa negra dançam com sapatos de mulher uma dança gravíssima, que é a das facas parecidas, até que de uma orelha salta um cravo porque o punhal penetrou num homem que encerra com sua morte horizontal o baile sem música. Resignado, o outro acomoda o chapéu e consagra a velhice à narração daquele duelo tão limpo. Essa é a história detalhada e completa de nossa canalha. A dos valentões de Nova York é mais vertiginosa e mais desastrada.

OS DA OUTRA

A história das gangues de Nova York (revelada em 1928 por Herbert Asbury num decoroso volume de quatrocentas páginas in-oitavo) tem a confusão e a crueldade das cosmogonias bárbaras, e muito de sua gigantesca inépcia: porões de antigas cervejarias habilitados para cortiços de negros, uma raquítica Nova York de três andares, bandos de pilantras como os Anjos do Pântano (Swamp Angels) que andavam à espreita entre labirintos de cloacas, bandos de delinquentes como os Daybreak Boys (Garotos da Alvorada) que recrutavam assassinos precoces de dez e onze anos, gigantes solitários e descarados Cartolas Ferozes (Plug Uglies) que buscavam o inverossímil riso do próximo com o firme chapéu de copa alta cheio de lã e as fraldas da camisa ondeantes no vento do subúrbio, mas com um porrete na mão direita e um pau de fogo enorme; bandos de marginais como os Coelhos Mortos (Dead Rabbits) que iam para a briga sob a insígnia de um coelho morto na ponta de um pau; homens como Johnny Dolan, o Dândi, famoso pelo topete besuntado sobre a testa, pelas bengalas com cabeça de macaco e pelo fino apetrecho de cobre que costumava usar no polegar para vazar os olhos do adversário; homens como Kit Burns, capaz de decapitar com uma única mordida um rato vivo; homens como Blind Danny Lyons, rapaz loiro de imensos olhos mortos, rufião de três rameiras que circulavam com orgulho por ele; filas de casas com lampião vermelho, como as dirigidas pelas sete irmãs da Nova Inglaterra, que destinavam os ganhos da noite de Natal à caridade; rinhas de ratos famélicos e de cães; casas de jogo chinesas; mulheres como as várias vezes viúva Red Norah, amada e ostentada por todos os varões que dirigiram a gangue dos Gophers; mulheres como Lizzie the Dove, que ficou de luto quando executaram Danny Lyons e morreu degolada por Gentle Maggie, que disputou com ela a antiga paixão do finado homem cego; motins como o de uma semana selvagem de 1863, quando foram incendiados cem edifícios e que quase tomam conta da cidade; combates de rua nos quais um homem se perdia como no mar porque o pisoteavam até a morte; ladrões e envenenadores de cavalo como Yoske Nigger — tecem aquela caótica história. Seu herói mais famoso é Edward Delaney, aliás, William Delaney, aliás, Joseph Marvin, aliás, Joseph Morris, aliás, Monk Eastman, chefe de mil e duzentos homens.

O HERÓI

Esses disfarces graduais (penosos como um jogo de máscaras em que não se sabe ao certo quem é quem) omitem seu nome verdadeiro — se é que nos atrevemos a pensar que haja tal coisa no mundo. A verdade é que no registro civil de Williamsburg, Brooklyn, o nome é Edward Ostermann, americanizado em Eastman mais tarde. Coisa estranha, aquele bandido tempestuoso era judeu. Descendia de um dono de restaurante dos que anunciam kosher, onde varões de barbas rabínicas podem assimilar sem perigo a carne dessangrada e três vezes limpa de vitelas degoladas com retidão. Aos dezenove anos, por volta de 1892, abriu com auxílio do pai uma loja de pássaros. Investigar a vida dos animais, observar suas pequenas decisões e sua inescrutável inocência, foi uma paixão que o acompanhou até o final. Em épocas de esplendor posteriores, quando recusava com desdém os charutos de folha dos sardentos sachems de Tammany ou visitava os melhores prostíbulos num coche, espécie precoce de automóvel que parecia o filho natural de uma gôndola, abriu uma segunda e falsa casa de comércio que hospedava cem gatos finos e mais de quatrocentas pombas que não estavam à venda para qualquer um. Gostava deles individualmente e costumava percorrer a pé seu território com um gato feliz no braço, e outros que o seguiam enciumados.
Era um homem em ruínas e monumental. O pescoço era curto, como de touro, o peito inexpugnável, os braços lutadores e longos, o nariz quebrado, o rosto embora marcado de cicatrizes menos importante que o corpo, as pernas arqueadas como as de ginete ou de marinheiro. Podia prescindir de camisa como também de paletó, mas não de uma cartolinha de abas curtas sobre a cabeça ciclópica. Os homens cuidam de sua memória. Fisicamente, o pistoleiro convencional dos filmes é um arremedo dele, não do ambivalente e balofo Capone. De Wolheim dizem que o empregaram em Hollywood porque seus traços aludiam diretamente ao do deplorado Monk Eastman… Este saía para percorrer seu império celerado com uma pomba de penas azuis no ombro, feito um touro com um bem-te-vi no lombo.
Por volta de 1894, eram numerosos os salões de baile público na cidade de Nova York. Eastman foi encarregado de manter a ordem num deles. Conta a lenda que o empresário não o quis receber e que Monk demonstrou sua capacidade demolindo com fragor o par de gigantes que detinham o emprego. Exerceu-o até 1899, temido e só.
Para cada arruaceiro que ele serenava, fazia com a faca uma marca no brutal porrete. Certa noite, uma calva resplandecente que se inclinava sobre um bock de cerveja chamou sua atenção, e desfaleceu-a com uma cacetada. “Me faltava uma marca para cinquenta!”, exclamou depois.

O MANDO

Desde 1899, Eastman não era apenas famoso. Era mandachuva eleitoral de uma zona importante, e recebia fortes subsídios das casas de lampião vermelho, das casas de jogo, de mulheres da rua e de ladrões daquele sórdido feudo. Os comitês consultavam-no para organizar diretórios, e também os particulares. Eis aqui seus honorários: quinze dólares por uma orelha arrancada; dezenove por uma perna quebrada; vinte e cinco por um tiro numa perna; vinte e cinco por uma punhalada; cem pelo negócio todo. Às vezes, para não perder o costume, Eastman executava pessoalmente uma encomenda.
Uma questão de limites (sutil e enfezada como as outras que o direito internacional posterga) colocou-o diante de Paul Kelly, famoso capitão de outro bando. Tiros e entreveros das patrulhas tinham determinado uma fronteira. Eastman atravessou-a num amanhecer e foi acometido por cinco homens. Com aqueles braços vertiginosos de macaco e com o porrete fez dançar três, mas lhe meteram duas balas no abdômen e abandonaram-no como morto. Eastman segurou a ferida quente com o polegar e o índice e caminhou com passos de bêbado até o hospital. A vida, a febre alta e a morte disputaram-no por várias semanas, mas seus lábios não se rebaixaram a delatar ninguém. Quando saiu, a guerra era um fato e floresceu em contínuos tiroteios até 19 de agosto de 1903.

A BATALHA DE RIVINGTON

Uns cem heróis vagamente diferentes das fotografias que esmaecerão nos prontuários, uns cem heróis saturados de fumaça de tabaco e álcool, uns cem heróis de chapéu de palha com fita colorida, uns cem heróis afetados uns mais que outros por doenças vergonhosas, cáries, males das vias respiratórias ou do rim, uns cem heróis tão insignificantes ou esplêndidos como os de Troia ou Junín, travaram esse denigrido feito de armas à sombra dos arcos do Elevated. A causa foi o tributo exigido pelos pistoleiros de Kelly ao empresário de uma casa de jogo, compadre de Monk Eastman. Um dos pistoleiros foi morto, e o tiroteio subsequente cresceu numa batalha de incontáveis revólveres. Do abrigo dos altos pilares, homens de queixo raspado atiravam em silêncio e eram o centro de um apavorado horizonte de coches de aluguel carregados de impacientes reforços, com artilharia Colt nos punhos. Que sentiram os protagonistas daquela batalha? Primeiro (creio) a brutal convicção de que o estrépito insensato segurança de que, se a descarga inicial não os derrubara, seriam invulneráveis. A verdade é que lutaram com fervor, escorados pelo parapeito do ferro e da noite. Duas vezes a polícia interveio e duas vezes foi rechaçada. Ao primeiro vislumbre do amanhecer, o combate morreu, como se fosse obsceno ou espectral. Debaixo dos grandes arcos de engenharia ficaram sete gravemente feridos, quatro cadáveres e uma pomba morta.

OS RANGIDOS

Os políticos paroquiais, a cujo serviço estava Monk Eastman, sempre desmentiram publicamente que houvesse tais gangues, ou esclareceram que se tratava de meras sociedades recreativas. A indiscreta batalha de Rivington alarmou-os. Convocaram os dois capitães para persuadi-los da necessidade de uma trégua. Kelly (bem sabendo que os políticos eram mais aptos que os revólveres Colt para arrefecer a ação da polícia) disse, ato contínuo, que sim; Eastman (com a soberba de seu corpo grande e bruto) ansiava por mais detonações e mais refregas. Começou por recusar e tiveram de ameaçá-lo com a prisão. Afinal os dois ilustres malfeitores conferenciaram num bar, cada um com seu charuto de folha na boca, a direita no revólver e a vigilante nuvem de pistoleiros ao redor. Chegaram a uma decisão muito americana: confiar a uma luta de boxe a disputa. Kelly era um boxeador habilíssimo. Realizou-se o duelo num galpão e foi extravagante. Cento e quarenta espectadores viram-no, entre compadres de cartola torta e mulheres de frágil penteado monumental. Durou duas horas e terminou numa completa exaustão. Na semana seguinte pipocaram os tiroteios. Monk foi preso, pela enésima vez. Os protetores desinteressaram-se dele com alívio; o juiz vaticinou-lhe, com toda a justiça, dez anos de cárcere.

EASTMAN CONTRA A ALEMANHA

Quando o ainda perplexo Monk saiu de Sing Sing, os mil e duzentos gângsteres sob seu comando estavam desgarrados. Não soube juntá-los e se resignou a operar por sua própria conta. No dia 8 de setembro de 1917, promoveu desordem na via pública. No dia 9, resolveu participar noutra desordem e alistou-se num regimento de infantaria.
Sabemos vários traços de sua campanha. Sabemos que desaprovou com fervor a captura de prisioneiros e que certa vez (com apenas a culatra do fuzil) impediu essa prática deplorável. Sabemos que conseguiu evadir-se do hospital para voltar às trincheiras. Sabemos que se distinguiu nos combates perto de Montfaucon. Sabemos que depois opinou que muitos bailinhos do Bowery eram mais brutos que a guerra europeia.

MISTERIOSO, LÓGICO FIM

No dia 25 de dezembro de 1920, o corpo de Monk Eastman amanheceu numa das ruas centrais de Nova York. Recebera cinco balaços. Desconhecedor feliz da morte, um gato dos mais ordinários rondava-o com certa perplexidade.

Jorge Luis Borges, in História universal da infâmia

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