Que
a família está em crise ninguém se atreverá a negá-lo, por muito
que a Igreja Católica tente disfarçar o desastre sob a capa de uma
retórica melíflua que já nem a ela própria engana, que muitos dos
denominados valores tradicionais de convivência familiar e social se
foram pelo cano abaixo arrastando consigo até aqueles que deveriam
ter sido defendidos dos contínuos ataques desferidos pela sociedade
altamente conflitiva em que vivemos, que a escola moderna,
continuadora da escola velha, aquela que, durante sucessivas
gerações, foi tacitamente encarregada, à falta de melhor, de
suprir as falhas educacionais dos agregados familiares, está
paralisada, acumulando contradições, erros, desorientada entre
métodos pedagógicos que em realidade não o são, e que, demasiadas
vezes, não passam de modas passageiras ou de experimentos
voluntaristas condenados ao fracasso pela própria ausência de
madurez intelectual e pela dificuldade de formular e responder à
pergunta, essencial em minha opinião: que cidadão estamos a querer
formar? O panorama não é agradável à vista. Singularmente, os
nossos mais ou menos dignos governantes não parecem preocupar-se com
estes problemas tanto quanto deveriam, talvez porque pensam que,
sendo os ditos problemas universais, a solução, quando vier a ser
encontrada, será automática, para toda a gente.
Não
estou de acordo. Vivemos numa sociedade que parece ter feito da
violência um sistema de relações. A manifestação de uma
agressividade que é inerente à espécie que somos, e que em tempos
pensámos, pela educação, haver controlado, irrompeu brutalmente
das profundidades nos últimos vinte anos em todo o espaço social,
estimulada por modalidades de ócio que viraram as costas ao já
simples hedonismo para se transformarem em agentes condicionadores da
própria mentalidade do consumidor: a televisão, em primeiro lugar,
onde imitações de sangue, cada vez mais perfeitas, saltam em jorros
a todas as horas do dia e da noite, os vídeo-jogos que são como
manuais de instruções para alcançar a perfeita intolerância e a
perfeita crueldade, e, porque tudo isto está ligado, as avalanchas
de publicidade de serviços eróticos a que os jornais, incluindo os
mais bem-pensantes, dão as boas-vindas, enquanto nas páginas sérias
(são-no algumas?) abundam hipocritamente em lições de boa conduta
à sociedade. Que estou a exagerar? Expliquem-me então como foi que
chegámos à situação de muitos pais terem medo dos filhos, desses
gentis adolescentes, esperanças do amanhã, em quem um “não” do
pai ou da mãe, cansados de exigências irracionais, instantaneamente
desencadeia uma fúria de insultos, de vexames, de agressões.
Físicas, para que não fiquem dúvidas. Muitos pais têm os seus
piores inimigos em casa: são os seus próprios filhos. Ingenuamente,
Ruben Darío escreveu aquilo da “juventud, divino tesoro”. Não o
escreveria hoje.
José Saramago, in O caderno
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