domingo, 1 de maio de 2022

O deslizamento da paixão

Sua vida afetiva seguia o ritmo das rotinas do dia a dia, sem altos e baixos, cada dia igual ao outro, uma monotonia tranquila; a paixão dos inícios havia muito já se extinguira, já não se olhavam nos olhos, já não se diziam “eu te amo”. Corria a relação empurrada pela inércia.
Sua companheira era separada. Ele vivia na casa dele, ela na casa dela, e de vez em quando se encontravam – um arranjo que tem a vantagem de evitar as irritações que inevitavelmente acontecem quando os dois moram na mesma casa.
De vez em quando ele se perguntava sobre as razões para continuarem juntos, e a única resposta que obtinha era: preguiça – separar dá muito trabalho. É preciso razões muito fortes para haver separações. Uma delas é a relação haver apodrecido, ou pelas brigas ou pela indiferença. A outra é quando um deles se apaixona por um terceiro.
Nos meus tempos de psicanalista, quando algum paciente me comunicava que iria se separar, eu fazia a pergunta:
Por que você vai se separar? — E explicava: — Se é porque a relação está podre, vá em frente. Relação podre, não há terapia de casal que a conserte. Mas, se é porque está possuído por um surto de paixão, é melhor não se separar. Porque corre-se o risco de se separar para descobrir, depois de poucas semanas, que tudo está igual. O apaixonado não consegue desembarcar de si mesmo. Vem então o desencanto. E com ele a saudade do lar antigo. E a memória, tocada pelo desencanto, começa a fazer das suas. Ela se esquece de tudo que de ruim havia e só se lembra das coisas bonitas... E vem o desejo de voltar...
Aconteceu, entretanto, que, nos caminhos acidentais da vida, aquele homem encontrou uma mulher pela qual se apaixonou. Ficou decidido a deixar a companheira. Mas não queria magoá-la. Queria safar-se da relação sem sentimentos de culpa. Imaginou então uma mentira. Chegaria para ela e lhe diria:
Meu bem, nossa relação não tem sido boa, especialmente para você. Tenho sido um mau companheiro. E tenho estado a observá-la, por vezes um olhar perdido... Por onde andará a sua alma? E me vem a ideia de que talvez você tenha saudades do seu marido e queira voltar... Não seria sábio a gente dar um tempo para a nossa relação?
E foi isso que ele fez. Porém, dita a mentira, foi isto que a sua mulher lhe respondeu:
Mas como você é sensível! Como é que percebeu?
Ah, que felicidade! Ela estava mesmo planejando abandoná-lo para voltar para o marido! Podia então entregar-se à nova paixão sem sentimentos de culpa!
Isso seria o lógico. Mas não foi isso que aconteceu. Ao ouvir as palavras da companheira, ele instantaneamente se esqueceu da nova paixão e ficou dilacerado de amor pela mulher que o deixava.
Isso eu não consigo entender, que a paixão possa deslizar com tanta rapidez de um objeto para outro. Como explicar essa transformação absurda e imediata?
A única explicação que me vem é aquela de Milan Kundera, ao explicar o súbito amor que Tomas sentiu por Tereza. Ele já estivera com uma infinidade de mulheres. Todas lhe deram prazer. Nenhuma o fizera sentir amor. Nas suas fantasias, elas eram caças que ele perseguia em sua corrida pelo prazer. Mas com Tereza algo diferente aconteceu. Essa imagem, sempre igual, foi perturbada. Algo se insinuou nessa trama que a fez ser diferente de todas as demais. Ela chegara à casa dele doente, febril. Ajoelhado à sua cabeceira, “ocorrera-lhe a ideia de que ela viera para ele numa cesta sobre as águas”. O seu amor por Tereza tinha a ver com essa imagem. Ele amou Tereza porque amou a criança na cesta sobre as águas.
Amamos os símbolos que vemos escritos em alguma parte do corpo da pessoa amada. O amor pertence à ordem da poesia. Por isso Nietzsche tentava decifrar o segredo do amor de Breuer por Anna O. fazendo-lhe a pergunta: “Qual é o sentido?”. Qual é a imagem que mora no corpo de Anna O.? Como Tomas, Breuer devia estar apaixonado por uma imagem. Que imagem era? Rilke, pensando na pessoa amada, via as estrelas: “Não se origina em vós, estrelas, o prazer que o amante respira no rosto da amada? A compreensão profunda de sua face pura, não a tomou ele das constelações tranquilas?”.
Ao contar a mentira para a sua companheira, aquele homem imaginava uma cena: ele partindo de trem para a nova amada. Sua companheira ficava sozinha na plataforma. O rosto dele era alegre. O dela era triste. Mas o que a sua companheira lhe disse inverteu a cena: ela partia de volta para o marido e lhe dava adeus, da janela do trem. Ele ficava. O seu rosto estava triste. Na sua fantasia, ele era uma criança abandonada, sozinha, na plataforma vazia da estação…

Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado

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