Sua
vida afetiva seguia o ritmo das rotinas do dia a dia, sem altos e
baixos, cada dia igual ao outro, uma monotonia tranquila; a paixão
dos inícios havia muito já se extinguira, já não se olhavam nos
olhos, já não se diziam “eu te amo”. Corria a relação
empurrada pela inércia.
Sua
companheira era separada. Ele vivia na casa dele, ela na casa dela, e
de vez em quando se encontravam – um arranjo que tem a vantagem de
evitar as irritações que inevitavelmente acontecem quando os dois
moram na mesma casa.
De
vez em quando ele se perguntava sobre as razões para continuarem
juntos, e a única resposta que obtinha era: preguiça – separar dá
muito trabalho. É preciso razões muito fortes para haver
separações. Uma delas é a relação haver apodrecido, ou pelas
brigas ou pela indiferença. A outra é quando um deles se apaixona
por um terceiro.
Nos
meus tempos de psicanalista, quando algum paciente me comunicava que
iria se separar, eu fazia a pergunta:
– Por
que você vai se separar? — E explicava: — Se é porque a relação
está podre, vá em frente. Relação podre, não há terapia de
casal que a conserte. Mas, se é porque está possuído por um surto
de paixão, é melhor não se separar. Porque corre-se o risco de se
separar para descobrir, depois de poucas semanas, que tudo está
igual. O apaixonado não consegue desembarcar de si mesmo. Vem então
o desencanto. E com ele a saudade do lar antigo. E a memória, tocada
pelo desencanto, começa a fazer das suas. Ela se esquece de tudo que
de ruim havia e só se lembra das coisas bonitas... E vem o desejo de
voltar...
Aconteceu,
entretanto, que, nos caminhos acidentais da vida, aquele homem
encontrou uma mulher pela qual se apaixonou. Ficou decidido a deixar
a companheira. Mas não queria magoá-la. Queria safar-se da relação
sem sentimentos de culpa. Imaginou então uma mentira. Chegaria para
ela e lhe diria:
– Meu
bem, nossa relação não tem sido boa, especialmente para você.
Tenho sido um mau companheiro. E tenho estado a observá-la, por
vezes um olhar perdido... Por onde andará a sua alma? E me vem a
ideia de que talvez você tenha saudades do seu marido e queira
voltar... Não seria sábio a gente dar um tempo para a nossa
relação?
E
foi isso que ele fez. Porém, dita a mentira, foi isto que a sua
mulher lhe respondeu:
– Mas
como você é sensível! Como é que percebeu?
Ah,
que felicidade! Ela estava mesmo planejando abandoná-lo para voltar
para o marido! Podia então entregar-se à nova paixão sem
sentimentos de culpa!
Isso
seria o lógico. Mas não foi isso que aconteceu. Ao ouvir as
palavras da companheira, ele instantaneamente se esqueceu da nova
paixão e ficou dilacerado de amor pela mulher que o deixava.
Isso
eu não consigo entender, que a paixão possa deslizar com tanta
rapidez de um objeto para outro. Como explicar essa transformação
absurda e imediata?
A
única explicação que me vem é aquela de Milan Kundera, ao
explicar o súbito amor que Tomas sentiu por Tereza. Ele já estivera
com uma infinidade de mulheres. Todas lhe deram prazer. Nenhuma o
fizera sentir amor. Nas suas fantasias, elas eram caças que ele
perseguia em sua corrida pelo prazer. Mas com Tereza algo diferente
aconteceu. Essa imagem, sempre igual, foi perturbada. Algo se
insinuou nessa trama que a fez ser diferente de todas as demais. Ela
chegara à casa dele doente, febril. Ajoelhado à sua cabeceira,
“ocorrera-lhe a ideia de que ela viera para ele numa cesta sobre as
águas”. O seu amor por Tereza tinha a ver com essa imagem. Ele
amou Tereza porque amou a criança na cesta sobre as águas.
Amamos
os símbolos que vemos escritos em alguma parte do corpo da pessoa
amada. O amor pertence à ordem da poesia. Por isso Nietzsche tentava
decifrar o segredo do amor de Breuer por Anna O. fazendo-lhe a
pergunta: “Qual é o sentido?”. Qual é a imagem que mora no
corpo de Anna O.? Como Tomas, Breuer devia estar apaixonado por uma
imagem. Que imagem era? Rilke, pensando na pessoa amada, via as
estrelas: “Não se origina em vós, estrelas, o prazer que o amante
respira no rosto da amada? A compreensão profunda de sua face pura,
não a tomou ele das constelações tranquilas?”.
Ao
contar a mentira para a sua companheira, aquele homem imaginava uma
cena: ele partindo de trem para a nova amada. Sua companheira ficava
sozinha na plataforma. O rosto dele era alegre. O dela era triste.
Mas o que a sua companheira lhe disse inverteu a cena: ela partia de
volta para o marido e lhe dava adeus, da janela do trem. Ele ficava.
O seu rosto estava triste. Na sua fantasia, ele era uma criança
abandonada, sozinha, na plataforma vazia da estação…
Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado
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