–E
o senhor quer me levar, distante, às cidades? Delongo. Tudo, para
mim, é viagem de volta. Em qualquer ofício, não; o que eu até
hoje tive, de que meio entendo e gosto, é ser guia de cego: esforço
destino que me praz.
E
vão me deixar ir? Em dês que o meu cego seô Tomé se passou, me
vexam, por mim puxam, desconfiam discorrendo. Terra de injustiças.
Aqui
paramos, os meses, por causa da mulher, por conta do falecido. Então,
prendam a mulher, apertem com ela, o marido rufião, aí esses
expliquem decerto o que nem se deu. A mulher, terrível. Delegado
segure a alma do meu seô Tomé cego, se for capaz! Ele amasiava
oculto com a mulher, Sa Justa, disso alguém teve ar? Eu provia e
governava.
Mas
não cismo como foi que ele no barranco se derrubou, que rendeu a
alma. Decido? Divulgo: que as coisas começam deveras é por detrás,
do que há, recurso; quando no remate acontecem, estão já
desaparecidas. Suspiros. Declaro, agora, defino. O senhor não me
perguntou nada. Só dou resposta é ao que ninguém me perguntou.
Mulheres
dôidas por ele, feito Jesus, por ter barba. Mas ele me perguntava,
antes. — “É bonita?” Eu informava que sendo. Para mim, cada
mulher vive formosa: as roxas, pardas e brancas, nas estradas. Dele
gostavam — de um cego completo — por delas nem não poder
devassar as formas nem feições? Seô Tomé se soberbava, lavava com
sabão o corpo, pedia roupas de esmola. Eu, bebia.
Deandávamos,
lugar a lugar, sem prevenir que já se estava no vir para aqui. Tenho
culpas retapadas. A gente na rua, puxando cego, concerne que nem se
avançar navegando — ao contrário de todos.
Patrão
meu, não. Eu regia — ele acompanhava: pegando cada um em ponta do
bordão, ocado com recheios de chumbo. Bebo, para impor em mim amores
dos outros? Ralhavam, que, passado já de idade de guiar cego, à mão
cuspida, mesmo eu assim, calungado, corcundado, cabeçudão. Povo
sabe as ignorâncias. Então, eu, para também não ver, hei-de
recordar o alheio? Bebo. Tomo, até me apagar, vejo outras coisas.
Ele carecia de esperar, quando eu me perfazia bêbedo deitado. Me
dava conselhos. Cego suplica de ver mais do que quem vê.
Tinha
inveja de mim: não via que eu era defeituoso feioso. Tinha ódio,
porque só eu podia ver essas inteiras mulheres, que dele gostavam!
Puxar cego é feito tirar um condenado, o de nenhum poder, mas que
adivinha mais do que a gente? Amigos. O roto só pode mesmo rir é do
esfarrapado. Me dava vontade de leve nele montar, sem freio, sem
espora...
A
gente cá chegou, pois é. A mulher viu o cego, com modos de
não-digas, com toda a força guardada. Essa era a diversa, muito
fulana: feia, feia apesar dos poderes de Deus. Mas queria, fatal.
Ajoelhou para me pedir, para eu ao meu Seô Cego mentir. Procedi. —
“Esta é bonita, a mais!” — a ele afirmei, meus
créditos. O cego amaciou a barba. Ele passeou mão nos braços dela,
arrojo de usos. Soprou, quente como o olho da brasa. Tive nenhum
remorso. Mas os dois respiravam, choraram, méis, airosos.
Se
encontravam, cada noite, eu arrumando para eles antes o redor, o
amodo e o acômodo, e estava de longe, tomando conta. O marido
desgostava dela, druxo homem, de estrambolias, nem vinha em casa.
Alguém maldou? Cego esconde mais que qualquer um, qualquer logro. E
quem vigia como eu? Ela me dava cachaças, comida. Ele me fiava a
féria. Me tratavam. O que podia durar, assim, às estimas fartas?
A
vida não fica quieta. Até ele se despenhar no escuro, do barranco,
mortal. Vinha de em-delícias. A mulher aqui persiste — para miar
aos cães e latir aos gatos. Que é que eu tenho com o caso... Todos
fazem questão de me chamar de ladrão. Cego não é quem morre?
Todos
tendo precisão de mim, nos intervalos. A mulher, maluca, instando
que eu a ele reproduzisse suas porvindas belezas. Seô Tomé dessas
sozinhas nossas não contrárias conversas tirando ciúme, com
porfias e más zangas. Mas eu reportava falseado leal: que os olhos
dela permitiam brilhos, um quilate dos dentes, aquelas chispas, a
suma cor das faces. Seô Tomé, às barbas de truz, sorvia também o
deleite de me descrever o que o amor, ele não desapaixonava. Só
sendo cego quem não deve ver? Mas o marido, imoral, esse comigo
bebia, queria mediante meus conluios pegar o dinheiro da sacola...
Eu, bêbedo e franzino, ananho, tenho de emendar a doideira e
cegueira de todos?
Deixassem
— e eu deduzia e concertava. Mas ninguém espera a esperança. Vão
ao estopim no fim, às tantas e loucas. Por mais, urjo; me entenda.
Aqui, que ele se desastrou, os outros agravam de especular e me
afrontar, que me deparo, de fecho para princípio, sem rio nem ponte.
Dia
que deu má noite. Ele se errou, beira o precipício, caindo e breu
que falecendo. Não pode ter sido só azares, cafifa? De ir solitário
bravear, ciumado, boi em bufo, resvalou... e, daí, quebrado
ensanguentado, terrível, da terra.
Ou
o marido, ardido por matar e roubar — empuxou o outro abaixo no
buracão — seu propósito? Cego corre perigo maior é em noites de
luares...
E
seô Tomé, no derradeiro, variava: falando que começava a tornar a
enxergar! Delírios, de paixão, cobiçação, por querer, demais,
avistar a mulher — os traços — aquela formosura que, nós três,
no desafeio, a gente tinha tanto inventado. Entrevendo que ela era
real de má-figura, ele não pode, desiludido em dor, ter mesmo
suicidado, em despenho? O pior cego é o que quer ver... Deu a
ossada.
Ou,
ela, visse que ele ia ver, havia de mais primeiro querer destruir o
assombroso, empurrar o qual, de pirambeira — o visionável! Caráter
de mulher é caroços e cascas. Ela, no ultimamente, já se
estremecia, de pavôres de amor, às vezes em que ele, apalpador, com
fortes ânsias, manuseava a cara dela, oitivo, dedudo. Ar que
acontece...
Se
na hora eu estava embriagado, bêbedo, quando ele se despencou, que é
que sei? Não me entendam! Deus vê. Deus atonta e mata. A gente
espera é o resto da vida.
A
mulher diz que me acusa do crime, sem avermelhação, se com ela eu
não for ousado... O marido, terrível, supliquento, diz que eu é
que fui o barregão... Terríveis, os outros, me ameaçam, às
injúrias... O senhor não diz nada. Tenho e não tenho cão, sabe?
Me prendam! Me larguem! A mulher esteja quase grávida. Me chamo
Prudencinhano. Agora o cego não enxerga mais... A culpa cai sempre é
no guiador?
Só
se inda hei outras coisas, por ter, continuadas de recomeçar; então
Deus não é mundial? Temo que eu é que seja terrível.
E
o senhor ainda quer me levar, às suas cidades, amistoso?
Decido.
Pergunto por onde ando. Aceito, bem-procedidamente, no devagar de ir
longe. Voltar, para fim de ida. Repenso, não penso. Dou de xingar o
meu falecido, quando as saudades me dão. Cidade grande, o povo lá é
infinito.
Vou,
para guia de cegos, servo de dono cego, vagavaz, habitual no
diferente, com o senhor, Seô Desconhecido.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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