quarta-feira, 25 de maio de 2022

O canário da goiabeira

Imagem: A. D.

Ainda neste ano o casal de canários fez o ninho na goiabeira. É um ninho pequeno, circular, mas raso e confortável. Teceram-no com hastes de capim do caixote onde Dondon se hospedou, fios fofos de algodão em rama e alguns barbantes trazidos não sei de onde. Marido e mulher estão azafamados, irrequietos em missões pesquisadoras e carregando no bico materiais e construção. Forraram com as penas mais delicadas do próprio peito. A tarefa apaixona-os sobremodo e, nos intervalos das caçadas aos insetos, estão procurando melhorar artisticamente o pequenino lar, catando farripas de pano e pedacinhos de gravetos finos. É um dos ninhos que resistem mais tempo depois de abandonados. Ocupam-no então, quase sempre e numa notável falta de cerimônia, formigas arbóreas, mal-educadas e mordedeiras.
Na época da incubação a fêmea está constantemente preocupada cuidando dos dois a três ovos que mereciam figurar em coleção pelo acabamento, lustro e forma airosa. O canário concorda comigo porque fica minutos seguidos embevecido na contemplação como já vendo a revoada dos filhos, felizes e fartos.
É bem um canário-da-terra, Sicalis flaveola, de Lineu, que Muller ainda entendeu aumentar com um “flava” indispensável. Pertencia à espécie do tentilhão romano mas também o nome permite traduzir-se por “gaguejante”, o que tropeça nas palavras. Cantaria o canário inicialmente entrecortado, em gorjeio breve, e só depois lançou o solto e livre canto, de notas longas, de limpidez impressionante, “açoitando”, como dizem os amadores que o prendem, pelo crime de saber cantar.
Matutino e não madrugador, o canário gosta de aquecer-se um pouco e sai depois do sol fora do horizonte. Durante minutos esvoaça como experimentando a potência ou estudando as áreas de caça. Com a luz solar os mosquitos incontáveis, as moscas teimosas, moscardos lentos e pequenas borboletas iniciam a vida comum. Os canários atravessam o ar como dois projéteis e sobem numa curva ascendente para os cimos das árvores, tomando distância que dá um falso sossego às peças de caça que ficam zumbindo e zunindo na claridade matinal. Depois vêm nos voos verticais e oblíquos, apanhando a caça no ar, engolindo sem diminuir de velocidade os seres vivos que constituem o primeiro almoço.
O volteio gracioso esconde na elegância radiosa a própria força do instinto agressivo. Lembra mais um delicado desenho riscado no alto sob modelo invisível. As duas bolas de ouro traçam labirintos imprevistos, linhas quebradas descendentes, arabescos de decoração muçulmana, leve, contínua, vibrante teia que parece pairar, sutil e linda, aos olhos claros da manhã. Não se atina que seja uma manobra caçadora, implacável e feroz, que dura o dia inteiro.
É um bonito par, laranja e amarelado quase brilhante. É a família Fringilídea que se orgulha de membros populares e prestigiosos na tradição cantadora, veludinho, caboclinho, papa-capim, pintassilgo, galo-de-campina, todos de doce voz sedutora, inocentes candidatos à perpetuidade das gaiolas e à abjeção mecânica das folhas de alface e alpistes cotidianos, tristes sucedâneos à livre movimentação para o encontro da comida que voa. Quando os portugueses chegaram no Brasil, o canário chamava-se Guirá-nhengatu, o pássaro que canta, que fala bem. Creio que nos começos do século XVIII é que importaram das ilhas Canárias o canário-do-reino, canário verdadeiro, Frigilla canariensis, já engaiolado na Europa nas casas ricas trezentos anos antes. Como a família era a mesma o Guirá-nhengatu foi perdendo o nome tupi e apelidado canário-da-terra e, com o passar do tempo, ninguém mais o conhece com o doce chamamento de outrora.
Ainda em 1728 Nuno Marques Pereira, no seu sonolento e ótimo Compêndio Narrativo do Peregrino da América, incluía-o no seu rol e simpatias ornitológicas:

O mazombinho canário
Realengo em sua cor,
Deu tais passou de garganta
Que a todos os admirou.

Mazombinho porque nascera no Brasil. Este mazombinho canário terminava seu ninho no quintal que o velho muro domina com silêncio e sombra. Não tem, como o xexéu, o bem-te-vi, a lavadeira, os apreciados voos curtos em descida, captando insetos, amando antes caçadas raseiras ao solo. O canário é amigo dos voos retos, impetuosos, arremessando-se como para decidir questão de vida e morte, tudo por causa de um besouro negro, zumbidor. O casal está junto e é raro não voar a parelha. São bem casados e esta fidelidade conjugal parece ser vigiada por ambos, l’amour suivi d’un attachement sans partage, como dizia Buffon, numa boa intenção generalizadora que as observações posteriores desmentiram lamentavelmente.
Os canários ainda são, na maioria dos casos, de conduta exemplar. Os meus, da goiabeira, realizam procedimento digno de louvor. Desengano-me em querê-los iguais. Na mesma espécie há exceções estridentes e canários com a bossa do poligamismo excessivamente desenvolvida, abundam. A fidelidade maior é na época do choco. O macho disputa prêmios de canto com as famílias ilustres e sua garganta ondula e freme na vibração emissora das notas moduladas, gorjeios de ternura comunicativa, árias marcadas pela estridência de fermatas de impressionante claridade, temas que se repetem, encadeados numa solução melódica de imprevista beleza canora.
Não posso crer que este canto, longo, expressivo, consciente, seja destituído de intenção e toda esta gama harmoniosa de inflexões nada transmita, significando apenas um escapamento de sopros através do aparelho regulador da garganta. As afeições interiores não possuirão neste canto nupcial e poderoso de vitalidade canora uma manifestação jubilosa de vitória, alegria da posse, o amor da espécie que se anuncia no estado da fêmea que ouve, passiva e serena, a homenagem à sua missão prolongadora a vida? Afirmar-se que não há relação entre o canto e o visível sentimento da ave tenora, e que canta mecânica, maquinal, insensivelmente, não me foi possível aceitar e compreender, resignado às conclusões dos laboratórios experimentais ou pesquisas de campo.
Estou cada ano sendo tomado pela certeza, ainda indecisa mas envolvente, da comunicabilidade animal através dos sinais sonoros. O canário será, de futuro, um dos índices, com o bem-te-vi, o xexéu ou japim, para alguém que inicie o trabalho de dedicar-lhes a vida para a constatação. Dentro de um galpão de laboratório, presos seja em um ambiente cientificamente imitado e perfeito ao original, todos os animais modificam a mentalidade. Parece que fui longe falando em mentalidade. O mais terrível é que estou certo de não haver animais “irracionais”, isto é, desprovidos de raciocínios, e espero que existam homens e mulheres neste mundo que participem desta convicção.
Fui criador de aves em gaiolas e minha opinião atrevida é que só devem ser estudadas em liberdade. Liberdade do campo e não liberdade condicionada em um cenário construído, imutável, sem a intervenção da voz misteriosa da terra e dos ventos livres, vindos do mar e da montanha, trazendo eflúvios e recados que as aves entendem e cumprem.
Na gaiola, espaçada, arejada, higiênica, amorosamente tratada, os canários vão mudando de vida pela simples presença humana. Acresce ainda que não mais procuram alimentos, não constroem ninho, não lutam e acima de tudo têm a fêmea ao lado, constantemente, todas as horas, sem as preocupações de mantê-la fiel e ajudá-la a viver. Só o fato de não mais lutar pelo alimento é um elemento profundamente modificador para qualquer animal habituado a procurá-lo e pelejar por sua conquista.
Os canários da goiabeira, depois de minutos ao derredor do muro, desaparecem. Vão buscar alimentos mais longe. Aqui encontrariam bastante. Questão de paciência. Lá fora há o espaço descampado, as várias técnicas aplicáveis conforme o terreno, capinzal baixo ou alto, árvores frondosas, reunidas em bosques ou isoladas, mato esparso, proximidade humana, frutos, outras aves disputadoras, enfim uma série de provocações para ação pronta, imediata, eficiente. E também as lufadas dos alísios cheirando a salsugem oceânica e as coisas distantes e soberbas que vivem na montanha fechando o remoto horizonte.
Os dois canários terão materialmente gasto energia, improvisação e manhas em proporção mais ampla que se ficassem bicorando os insetos do quintal na sombra do muro. Esta jornada dará uma contribuição mais intensa e rejuvenescedora aos seus músculos e experiência. Canário de gaiola não mais sente esta poesia. Está sendo domesticado e domesticação é sinônimo de cativeiro.
Um antigo dogma de seleção sexual, tão complexa como uma queda de câmbio, afirmava a poligamia ser regime normal nas espécies de acentuado dimorfismo (formas dessemelhantes entre macho e fêmea) e monogamia nas espécies marcadas de homomorfismo (semelhança física entre as figuras do casal). Ora, as exceções foram tão numerosas para ambas as regras que estas só existem por uma questão de hábito citador. Mas no caso dos canários da goiabeira o ditame está certo. O homomorfismo indica a monogamia.
O macho canta sempre, exceto quando está na fase cruel da “muda”. Aí adoece, fraco, vacilante, voando pouco, desarmado de suas virtudes físicas. Felizmente é verão e a temperatura mantém-lhe o ritmo orgânico equilibrado. Come pouco e as reservas interiores esgotam-se rapidamente. É um tributo caro pago às leis da provocação sexual porque a nova plumagem atrairá nova fêmea ou conservará a que possui.
Fora deste ciclo renovador, o canário canta e trina, entusiasmado e vibrante. Canta voando e pousado no ninho. Tem tonalidades, nuanças, interrogações, respostas, flexões especiais, de uma pureza, extensão e sonoridade incomparáveis.
Vence de muito o rouxinol clássico. Este tenor contratado para todas as citações encomiásticas do mundo, inarredável de romances e poemas velhos, é um grande interesseiro, um simulador glorioso, feiticeiro na magia de curta duração. Naturalmente (sabe-se disto há quase dois séculos) a época da procriação está intimamente ligada ao desenvolvimento do seu órgão vocal. Ambos atingem o meio-dia maravilhoso quando a fêmea, já fecundada, prepara-se para pôr os ovos no ninho. Na fabricação da casa, trazendo alimentos, olhando a companheira, o rouxinol executa o mais brilhante, intensivo, apaixonado e arrebatador programa de amor dramático em evocação e melocomentário de que há registro na face da terra sublunar. Quando a senhora rouxinol termina a incubação, o marido silencia. Silencia de vez. Fica mudo. Mudo ou dando um pio que mais parece coaxo de sapo que som de uma garganta privilegiada. Dois a três meses durou a temporada lírica. Com o canário não há disto. Canta sempre, clareando a vida com sua alegria palpitante de ternura. O rouxinol é que goza os benefícios de uma propaganda intensiva, cobertura jornalística e radiofônica financiada pela tradição.
Desaforo nos domínios da nidificação dizer-se que o canário faz ninho quando o comum e sabido é ele aproveitar os existentes e deixados ou ir-se aos ocos de pau, pondo alguma palha por especial favor. Que farei olhando para este ninho redondo e não raso que o casal fez, quase aos meus olhos, no cruzamento dos galhos da goiabeira? Negá-lo? Jamais on ne déterminera la nature d’un être par un seul caractère ou par une seule habitude naturelle, aconselhava o senhor de Buffon há duzentos anos. O canário às vezes entende dar-se ao luxo de uma exceção menos pela alegria da novidade do que pela atrapalhação aos devotos da generalidade dogmática.
É uma das raras aves que canta o ano inteiro.
Estou me convencendo (o “convencimento” nos autodidatas é uma moléstia natural como diarreia infantil ou pigarro nos velhos) que o maior mistério ornitológico é o canto.
Todos estão de acordo de que o canto das aves não é exclusivamente processo de atração sexual. Fora deste sentido, útil e claro, fica-se sem atinar por que um pássaro canta. Por que e para quê. Não atrai a caça. Não conquista aliança. Não atemoriza concorrentes.
A “siringe”, órgão vocal, onde a traqueia se bifurca nos dois brônquios, possui disposições para modular, gorjear, silvar, dando ao artista o aproveitamento do aparelho potente e delicado para o manejo total, obtendo variações e inflexões surpreendentes. Algumas aves, o canário inclusive, cantando solitárias, embriagam-se visivelmente com a melodia produzida. Nenhum tenor deste mundo é capaz desta exibição maravilhosa sem auditório.
Nenhum biologista me desencanta com a explicação utilitária do canto. Permanecerá com um aspecto obscuro e sugestivo, possibilitando interpretação lírica em sua expressão indecifrável no quadro diário e presencial.
O canto independe da função de alimentar-se, caçar, voar, combater. Não é possível articular-se a mecânica da siringe ao complexo de qualquer uma destas funções. São atos perfeitamente autônomos, desligados, independentes. O mistério da coexistência, da presença, do exercício normal estabelece a dualidade dos planos, as duas faces vivas, indispensáveis e prestantes na mesma entidade orgânica.
Com sua curiosidade iluminada e terebrante o sábio via materializando, nivelando, monotonizando todas as coisas organizadas e palpitantes de sangue e seiva. Provou que as flores são simples e vistosas armadilhas vegetais para a dispersão do pólen. Tentou ensinar que as cores ostensivas dos animais eram meras fórmulas fixas de conquistar fêmeas. Como este processo de atração não podia, biologicamente, se constituir permanente, porque o impulso sexual nas espécies está condicionado a prazos relativamente curtos e a roupagem flamante de aves e insetos ser-lhes-ia muito mais prejudicial que benéfica, estimulando a perseguição de inimigos e denunciando-lhes os esconderijos. A sentença transformou-se em dilação probatória. Mas o canto sem interesse imediato ou deduzível, o canto por si só, alto e teimoso, está repondo a ave no seu nível poderoso de intenção melódica.
Identicamente verificou-se com o Homem. Por que e para que cantaria o Homem nas tardes do Pleistoceno? Que impulso o forçou a elevar a voz, possível oitava acima do normal, e dar-lhe acentuação musical, dividindo-a com o ritmo da respiração? Seria bem depois da era de Neanderthal e já erecto e de mãos nobres, livres de auxiliar a marcha, começara a gravar globo do sol, círculo da lua, mamutes pesados e renas leves nas grutas abrigadoras de Espanha, há duzentos e cinquenta séculos. E furou sementes secas, conchas e ossinhos de animais abatidos para fazer pulseiras e colares, trabalho novo na história da terra velha e da raça nova. Já não é possível diminuir o encanto do Homem de Cro-Magnon fabricando os seus primeiros objetos de arte, arte sem utilidade prática, mágica ou simples, lógica, deliciosamente ornamental...
Mas um dia, talvez numa tarde em que a noite acorda os fantasmas dos deuses apavorantes, o Homem cantou. Pelo mecanismo funcional da voz só pode ser ato voluntário, intencional, dirigido. Até hoje a atitude de cantar é uma afirmativa imediata, suprema, irrespondível, de elevação. É um ludus no nível divinizador do impulso sonoro, comunicação com as forças confusas, abstratas, envolvedoras da inspiração, irreduzível a esquema diagramático.
Por que o canário canta sem fome, sem amor, sem aparente motivo? Se digo que ele canta porque quer ouvir-se; que a clara e vibrante melodia, de impossível fixação no pentagrama, é um elemento complementar ou essencial ao segredo, ao equilíbrio de sua fisiologia, fisiologia sem dependência de órgãos, satisfação total a um apelo cenestético, será uma opinião, ou melhor, um “convencimento”.
A origem do canto humano, se lhe arrancamos sua intenção inicial e divina, continuará, no domínio físico-químico, tão escura e perdida quanto a justificação funcional para o canário, o meu pequeno canário, gorjeador e livre, no galho da goiabeira à sombra do canto de muro.
La raison ne peut que parler; c’est l’amour qui chante, afirmava Joseph de Maistre, e o Homem, que não atrofiara seu órgão ascensional de louvor a Deus, libertou-se da tragédia dos limites e ergueu o canto intencional que era uma projeção, alada e musical, de toda sua personalidade.
Todos conhecem as famosas brigas de canários, com apostas sérias e criadores das espécies mais belicosas, com catálogos e datas especiais para os encontros denominados “bulhas”. Não são comumente os canários-da-terra que se arrolam nas inscrições com apostas de 500 a 1.000 cruzeiros. Os tipos estimados e comuns para as “bulhas” sensacionais são os canários-belgas, os “verdadeiros”, com ascendência e descendência memoralizadas nas notas que valem como pedigrees autênticos.
Conheci um destes valentes que dera ao proprietário quase tanto quanto um cavalo de corridas no Derby e possuía o espantoso nome de Senador Timochenko. Chamava-se anteriormente Senador e o dono o rebatizara para Timochenko mas os apostadores costumavam reunir os dois nomes ilustres pelas façanhas.
O canário-da-terra também luta e luta bem. É menos hábil e sua técnica revela a honestidade bruta do instinto. Arranca de vez, bico aberto para fisgar o pescoço do adversário e torcer-lhe a pele num beliscão interminável e atroz. Os outros, profissionais, trocam bicadas como golpes de sabre, bico a bico, lembrando as brigas de galo que apaixonam e viciam como aspirar cocaína ou fumar maconha.
Nunca presenciei briga de canários livres.
Agora, ao entardecer, o casal revoa a goiabeira doméstica. Os filhos novos já estão alimentados com vermes brancos e fragmentos de insetos nas gargantas escancaradas, animadas por viva orquestração piante e faminta. Antes que a luz desapareça e a penumbra vista de escuro o quintal familiar, o canário o atravessa, voando do muro para o ninho, levando na pequenina figura o derradeiro raio do sol…

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro

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