Imagem: A. D.
Ainda
neste ano o casal de canários fez o ninho na goiabeira. É um ninho
pequeno, circular, mas raso e confortável. Teceram-no com hastes de
capim do caixote onde Dondon se hospedou, fios fofos de algodão em
rama e alguns barbantes trazidos não sei de onde. Marido e mulher
estão azafamados, irrequietos em missões pesquisadoras e carregando
no bico materiais e construção. Forraram com as penas mais
delicadas do próprio peito. A tarefa apaixona-os sobremodo e, nos
intervalos das caçadas aos insetos, estão procurando melhorar
artisticamente o pequenino lar, catando farripas de pano e pedacinhos
de gravetos finos. É um dos ninhos que resistem mais tempo depois de
abandonados. Ocupam-no então, quase sempre e numa notável falta de
cerimônia, formigas arbóreas, mal-educadas e mordedeiras.
Na
época da incubação a fêmea está constantemente preocupada
cuidando dos dois a três ovos que mereciam figurar em coleção pelo
acabamento, lustro e forma airosa. O canário concorda comigo porque
fica minutos seguidos embevecido na contemplação como já vendo a
revoada dos filhos, felizes e fartos.
É
bem um canário-da-terra, Sicalis flaveola, de Lineu, que
Muller ainda entendeu aumentar com um “flava” indispensável.
Pertencia à espécie do tentilhão romano mas também o nome permite
traduzir-se por “gaguejante”, o que tropeça nas palavras.
Cantaria o canário inicialmente entrecortado, em gorjeio breve, e só
depois lançou o solto e livre canto, de notas longas, de limpidez
impressionante, “açoitando”, como dizem os amadores que o
prendem, pelo crime de saber cantar.
Matutino
e não madrugador, o canário gosta de aquecer-se um pouco e sai
depois do sol fora do horizonte. Durante minutos esvoaça como
experimentando a potência ou estudando as áreas de caça. Com a luz
solar os mosquitos incontáveis, as moscas teimosas, moscardos lentos
e pequenas borboletas iniciam a vida comum. Os canários atravessam o
ar como dois projéteis e sobem numa curva ascendente para os cimos
das árvores, tomando distância que dá um falso sossego às peças
de caça que ficam zumbindo e zunindo na claridade matinal. Depois
vêm nos voos verticais e oblíquos, apanhando a caça no ar,
engolindo sem diminuir de velocidade os seres vivos que constituem o
primeiro almoço.
O
volteio gracioso esconde na elegância radiosa a própria força do
instinto agressivo. Lembra mais um delicado desenho riscado no alto
sob modelo invisível. As duas bolas de ouro traçam labirintos
imprevistos, linhas quebradas descendentes, arabescos de decoração
muçulmana, leve, contínua, vibrante teia que parece pairar, sutil e
linda, aos olhos claros da manhã. Não se atina que seja uma manobra
caçadora, implacável e feroz, que dura o dia inteiro.
É
um bonito par, laranja e amarelado quase brilhante. É a família
Fringilídea que se orgulha de membros populares e prestigiosos na
tradição cantadora, veludinho, caboclinho, papa-capim, pintassilgo,
galo-de-campina, todos de doce voz sedutora, inocentes candidatos à
perpetuidade das gaiolas e à abjeção mecânica das folhas de
alface e alpistes cotidianos, tristes sucedâneos à livre
movimentação para o encontro da comida que voa. Quando os
portugueses chegaram no Brasil, o canário chamava-se Guirá-nhengatu,
o pássaro que canta, que fala bem. Creio que nos começos do século
XVIII é que importaram das ilhas Canárias o canário-do-reino,
canário verdadeiro, Frigilla canariensis, já engaiolado na
Europa nas casas ricas trezentos anos antes. Como a família era a
mesma o Guirá-nhengatu foi perdendo o nome tupi e apelidado
canário-da-terra e, com o passar do tempo, ninguém mais o conhece
com o doce chamamento de outrora.
Ainda
em 1728 Nuno Marques Pereira, no seu sonolento e ótimo Compêndio
Narrativo do Peregrino da América, incluía-o no seu rol e simpatias
ornitológicas:
O
mazombinho canário
Realengo
em sua cor,
Deu
tais passou de garganta
Que
a todos os admirou.
Mazombinho
porque nascera no Brasil. Este mazombinho canário terminava seu
ninho no quintal que o velho muro domina com silêncio e sombra. Não
tem, como o xexéu, o bem-te-vi, a lavadeira, os apreciados voos
curtos em descida, captando insetos, amando antes caçadas raseiras
ao solo. O canário é amigo dos voos retos, impetuosos,
arremessando-se como para decidir questão de vida e morte, tudo por
causa de um besouro negro, zumbidor. O casal está junto e é raro
não voar a parelha. São bem casados e esta fidelidade conjugal
parece ser vigiada por ambos, l’amour suivi d’un attachement
sans partage, como dizia Buffon, numa boa intenção
generalizadora que as observações posteriores desmentiram
lamentavelmente.
Os
canários ainda são, na maioria dos casos, de conduta exemplar. Os
meus, da goiabeira, realizam procedimento digno de louvor.
Desengano-me em querê-los iguais. Na mesma espécie há exceções
estridentes e canários com a bossa do poligamismo excessivamente
desenvolvida, abundam. A fidelidade maior é na época do choco. O
macho disputa prêmios de canto com as famílias ilustres e sua
garganta ondula e freme na vibração emissora das notas moduladas,
gorjeios de ternura comunicativa, árias marcadas pela estridência
de fermatas de impressionante claridade, temas que se repetem,
encadeados numa solução melódica de imprevista beleza canora.
Não
posso crer que este canto, longo, expressivo, consciente, seja
destituído de intenção e toda esta gama harmoniosa de inflexões
nada transmita, significando apenas um escapamento de sopros através
do aparelho regulador da garganta. As afeições interiores não
possuirão neste canto nupcial e poderoso de vitalidade canora uma
manifestação jubilosa de vitória, alegria da posse, o amor da
espécie que se anuncia no estado da fêmea que ouve, passiva e
serena, a homenagem à sua missão prolongadora a vida? Afirmar-se
que não há relação entre o canto e o visível sentimento da ave
tenora, e que canta mecânica, maquinal, insensivelmente, não me foi
possível aceitar e compreender, resignado às conclusões dos
laboratórios experimentais ou pesquisas de campo.
Estou
cada ano sendo tomado pela certeza, ainda indecisa mas envolvente, da
comunicabilidade animal através dos sinais sonoros. O canário será,
de futuro, um dos índices, com o bem-te-vi, o xexéu ou japim, para
alguém que inicie o trabalho de dedicar-lhes a vida para a
constatação. Dentro de um galpão de laboratório, presos seja em
um ambiente cientificamente imitado e perfeito ao original, todos os
animais modificam a mentalidade. Parece que fui longe falando em
mentalidade. O mais terrível é que estou certo de não haver
animais “irracionais”, isto é, desprovidos de raciocínios, e
espero que existam homens e mulheres neste mundo que participem desta
convicção.
Fui
criador de aves em gaiolas e minha opinião atrevida é que só devem
ser estudadas em liberdade. Liberdade do campo e não liberdade
condicionada em um cenário construído, imutável, sem a intervenção
da voz misteriosa da terra e dos ventos livres, vindos do mar e da
montanha, trazendo eflúvios e recados que as aves entendem e
cumprem.
Na
gaiola, espaçada, arejada, higiênica, amorosamente tratada, os
canários vão mudando de vida pela simples presença humana. Acresce
ainda que não mais procuram alimentos, não constroem ninho, não
lutam e acima de tudo têm a fêmea ao lado, constantemente, todas as
horas, sem as preocupações de mantê-la fiel e ajudá-la a viver.
Só o fato de não mais lutar pelo alimento é um elemento
profundamente modificador para qualquer animal habituado a procurá-lo
e pelejar por sua conquista.
Os
canários da goiabeira, depois de minutos ao derredor do muro,
desaparecem. Vão buscar alimentos mais longe. Aqui encontrariam
bastante. Questão de paciência. Lá fora há o espaço descampado,
as várias técnicas aplicáveis conforme o terreno, capinzal baixo
ou alto, árvores frondosas, reunidas em bosques ou isoladas, mato
esparso, proximidade humana, frutos, outras aves disputadoras, enfim
uma série de provocações para ação pronta, imediata, eficiente.
E também as lufadas dos alísios cheirando a salsugem oceânica e as
coisas distantes e soberbas que vivem na montanha fechando o remoto
horizonte.
Os
dois canários terão materialmente gasto energia, improvisação e
manhas em proporção mais ampla que se ficassem bicorando os insetos
do quintal na sombra do muro. Esta jornada dará uma contribuição
mais intensa e rejuvenescedora aos seus músculos e experiência.
Canário de gaiola não mais sente esta poesia. Está sendo
domesticado e domesticação é sinônimo de cativeiro.
Um
antigo dogma de seleção sexual, tão complexa como uma queda de
câmbio, afirmava a poligamia ser regime normal nas espécies de
acentuado dimorfismo (formas dessemelhantes entre macho e fêmea) e
monogamia nas espécies marcadas de homomorfismo (semelhança física
entre as figuras do casal). Ora, as exceções foram tão numerosas
para ambas as regras que estas só existem por uma questão de hábito
citador. Mas no caso dos canários da goiabeira o ditame está certo.
O homomorfismo indica a monogamia.
O
macho canta sempre, exceto quando está na fase cruel da “muda”.
Aí adoece, fraco, vacilante, voando pouco, desarmado de suas
virtudes físicas. Felizmente é verão e a temperatura mantém-lhe o
ritmo orgânico equilibrado. Come pouco e as reservas interiores
esgotam-se rapidamente. É um tributo caro pago às leis da
provocação sexual porque a nova plumagem atrairá nova fêmea ou
conservará a que possui.
Fora
deste ciclo renovador, o canário canta e trina, entusiasmado e
vibrante. Canta voando e pousado no ninho. Tem tonalidades, nuanças,
interrogações, respostas, flexões especiais, de uma pureza,
extensão e sonoridade incomparáveis.
Vence
de muito o rouxinol clássico. Este tenor contratado para todas as
citações encomiásticas do mundo, inarredável de romances e poemas
velhos, é um grande interesseiro, um simulador glorioso, feiticeiro
na magia de curta duração. Naturalmente (sabe-se disto há quase
dois séculos) a época da procriação está intimamente ligada ao
desenvolvimento do seu órgão vocal. Ambos atingem o meio-dia
maravilhoso quando a fêmea, já fecundada, prepara-se para pôr os
ovos no ninho. Na fabricação da casa, trazendo alimentos, olhando a
companheira, o rouxinol executa o mais brilhante, intensivo,
apaixonado e arrebatador programa de amor dramático em evocação e
melocomentário de que há registro na face da terra sublunar. Quando
a senhora rouxinol termina a incubação, o marido silencia. Silencia
de vez. Fica mudo. Mudo ou dando um pio que mais parece coaxo de sapo
que som de uma garganta privilegiada. Dois a três meses durou a
temporada lírica. Com o canário não há disto. Canta sempre,
clareando a vida com sua alegria palpitante de ternura. O rouxinol é
que goza os benefícios de uma propaganda intensiva, cobertura
jornalística e radiofônica financiada pela tradição.
Desaforo
nos domínios da nidificação dizer-se que o canário faz ninho
quando o comum e sabido é ele aproveitar os existentes e deixados ou
ir-se aos ocos de pau, pondo alguma palha por especial favor. Que
farei olhando para este ninho redondo e não raso que o casal fez,
quase aos meus olhos, no cruzamento dos galhos da goiabeira? Negá-lo?
Jamais on ne déterminera la nature d’un être par un seul
caractère ou par une seule habitude naturelle, aconselhava o
senhor de Buffon há duzentos anos. O canário às vezes entende
dar-se ao luxo de uma exceção menos pela alegria da novidade do que
pela atrapalhação aos devotos da generalidade dogmática.
É
uma das raras aves que canta o ano inteiro.
Estou
me convencendo (o “convencimento” nos autodidatas é uma moléstia
natural como diarreia infantil ou pigarro nos velhos) que o maior
mistério ornitológico é o canto.
Todos
estão de acordo de que o canto das aves não é exclusivamente
processo de atração sexual. Fora deste sentido, útil e claro,
fica-se sem atinar por que um pássaro canta. Por que e para quê.
Não atrai a caça. Não conquista aliança. Não atemoriza
concorrentes.
A
“siringe”, órgão vocal, onde a traqueia se bifurca nos dois
brônquios, possui disposições para modular, gorjear, silvar, dando
ao artista o aproveitamento do aparelho potente e delicado para o
manejo total, obtendo variações e inflexões surpreendentes.
Algumas aves, o canário inclusive, cantando solitárias,
embriagam-se visivelmente com a melodia produzida. Nenhum tenor deste
mundo é capaz desta exibição maravilhosa sem auditório.
Nenhum
biologista me desencanta com a explicação utilitária do canto.
Permanecerá com um aspecto obscuro e sugestivo, possibilitando
interpretação lírica em sua expressão indecifrável no quadro
diário e presencial.
O
canto independe da função de alimentar-se, caçar, voar, combater.
Não é possível articular-se a mecânica da siringe ao complexo de
qualquer uma destas funções. São atos perfeitamente autônomos,
desligados, independentes. O mistério da coexistência, da presença,
do exercício normal estabelece a dualidade dos planos, as duas faces
vivas, indispensáveis e prestantes na mesma entidade orgânica.
Com
sua curiosidade iluminada e terebrante o sábio via materializando,
nivelando, monotonizando todas as coisas organizadas e palpitantes de
sangue e seiva. Provou que as flores são simples e vistosas
armadilhas vegetais para a dispersão do pólen. Tentou ensinar que
as cores ostensivas dos animais eram meras fórmulas fixas de
conquistar fêmeas. Como este processo de atração não podia,
biologicamente, se constituir permanente, porque o impulso sexual nas
espécies está condicionado a prazos relativamente curtos e a
roupagem flamante de aves e insetos ser-lhes-ia muito mais
prejudicial que benéfica, estimulando a perseguição de inimigos e
denunciando-lhes os esconderijos. A sentença transformou-se em
dilação probatória. Mas o canto sem interesse imediato ou
deduzível, o canto por si só, alto e teimoso, está repondo a ave
no seu nível poderoso de intenção melódica.
Identicamente
verificou-se com o Homem. Por que e para que cantaria o Homem nas
tardes do Pleistoceno? Que impulso o forçou a elevar a voz, possível
oitava acima do normal, e dar-lhe acentuação musical, dividindo-a
com o ritmo da respiração? Seria bem depois da era de Neanderthal e
já erecto e de mãos nobres, livres de auxiliar a marcha, começara
a gravar globo do sol, círculo da lua, mamutes pesados e renas leves
nas grutas abrigadoras de Espanha, há duzentos e cinquenta séculos.
E furou sementes secas, conchas e ossinhos de animais abatidos para
fazer pulseiras e colares, trabalho novo na história da terra velha
e da raça nova. Já não é possível diminuir o encanto do Homem de
Cro-Magnon fabricando os seus primeiros objetos de arte, arte sem
utilidade prática, mágica ou simples, lógica, deliciosamente
ornamental...
Mas
um dia, talvez numa tarde em que a noite acorda os fantasmas dos
deuses apavorantes, o Homem cantou. Pelo mecanismo funcional da voz
só pode ser ato voluntário, intencional, dirigido. Até hoje a
atitude de cantar é uma afirmativa imediata, suprema, irrespondível,
de elevação. É um ludus no nível divinizador do impulso
sonoro, comunicação com as forças confusas, abstratas,
envolvedoras da inspiração, irreduzível a esquema diagramático.
Por
que o canário canta sem fome, sem amor, sem aparente motivo? Se digo
que ele canta porque quer ouvir-se; que a clara e vibrante melodia,
de impossível fixação no pentagrama, é um elemento complementar
ou essencial ao segredo, ao equilíbrio de sua fisiologia, fisiologia
sem dependência de órgãos, satisfação total a um apelo
cenestético, será uma opinião, ou melhor, um “convencimento”.
A
origem do canto humano, se lhe arrancamos sua intenção inicial e
divina, continuará, no domínio físico-químico, tão escura e
perdida quanto a justificação funcional para o canário, o meu
pequeno canário, gorjeador e livre, no galho da goiabeira à sombra
do canto de muro.
La
raison ne peut que parler; c’est l’amour qui chante, afirmava
Joseph de Maistre, e o Homem, que não atrofiara seu órgão
ascensional de louvor a Deus, libertou-se da tragédia dos limites e
ergueu o canto intencional que era uma projeção, alada e musical,
de toda sua personalidade.
Todos
conhecem as famosas brigas de canários, com apostas sérias e
criadores das espécies mais belicosas, com catálogos e datas
especiais para os encontros denominados “bulhas”. Não são
comumente os canários-da-terra que se arrolam nas inscrições com
apostas de 500 a 1.000 cruzeiros. Os tipos estimados e comuns para as
“bulhas” sensacionais são os canários-belgas, os “verdadeiros”,
com ascendência e descendência memoralizadas nas notas que valem
como pedigrees autênticos.
Conheci
um destes valentes que dera ao proprietário quase tanto quanto um
cavalo de corridas no Derby e possuía o espantoso nome de Senador
Timochenko. Chamava-se anteriormente Senador e o dono o rebatizara
para Timochenko mas os apostadores costumavam reunir os dois nomes
ilustres pelas façanhas.
O
canário-da-terra também luta e luta bem. É menos hábil e sua
técnica revela a honestidade bruta do instinto. Arranca de vez, bico
aberto para fisgar o pescoço do adversário e torcer-lhe a pele num
beliscão interminável e atroz. Os outros, profissionais, trocam
bicadas como golpes de sabre, bico a bico, lembrando as brigas de
galo que apaixonam e viciam como aspirar cocaína ou fumar maconha.
Nunca
presenciei briga de canários livres.
Agora,
ao entardecer, o casal revoa a goiabeira doméstica. Os filhos novos
já estão alimentados com vermes brancos e fragmentos de insetos nas
gargantas escancaradas, animadas por viva orquestração piante e
faminta. Antes que a luz desapareça e a penumbra vista de escuro o
quintal familiar, o canário o atravessa, voando
do muro para o ninho, levando na pequenina figura o derradeiro raio
do sol…
Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro
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