segunda-feira, 16 de maio de 2022

“Não quero o fim...”

Ela lhe deu o livro e disse:
É uma estória de amor muito bonita. Mas não quero o fim para nós...
Na capa do livro estava escrito As pontes de Madison.
Madison era o nome de uma daquelas cidadezinhas pacatas do interior norte-americano, lugar de criadores de gado. Novidades não havia, todas as noites era a mesma coisa: os homens se reuniam nos bares para beber cerveja e falar sobre touros e vacas, ou jogavam boliche com suas mulheres, que durante o dia cuidavam da casa e cozinhavam. Aos domingos a família ia à igreja e cumprimentava o pastor na saída pelo bom sermão. Todos conheciam todos, todos sabiam de tudo, vida privada não havia, nem segredos, e como gado manso ninguém se atrevia a pular a cerca, porque todos ficariam sabendo.
A cidade era vazia de atrativos além do gado, a não ser algumas pontes cobertas sobre um rio às quais os moradores não atribuíam nenhuma importância. Eram cobertas como proteção contra as nevascas de inverno, que poderiam interditá-las, bloqueando o tráfego dos veículos. Só uns poucos turistas que paravam no lugar as julgavam dignas de ser fotografadas.
A família, pacata como todas as outras, era composta de marido, mulher e dois filhos. Tinham cabeça de criadores de gado, cheiro de criadores de gado, olhos de criadores de gado e sensibilidade de criadores de gado. A esposa era uma mulher bonita e discreta, de sorriso e olhos tristes. Mas o marido não a via, lotado que estava com touros e vacas.
Sua rotina de vida era igual à rotina de todas as outras mulheres. Essa era a sorte comum de todas, que, em Madison, haviam se esquecido da arte de sonhar. A porta das gaiolas podia ficar aberta, mas suas asas tinham desaprendido a arte do voo.
Marido e filhos tratavam a casa como uma extensão dos currais, e havia na cozinha aquela porta de molas que batia no batente, produzindo um ruído seco como o de uma porteira, sempre que entravam. A mulher já lhes havia pedido vezes sem conta que segurassem a porta para que ela fechasse de mansinho. Mas o pai e os filhos, acostumados à música da porteira, não prestavam atenção. Com o passar do tempo ela compreendeu que era inútil. A batida seca da porta passou a ser o sinal de que marido e filhos haviam chegado.
Aquele era um dia diferente. Havia excitação na cidade. Os homens se preparavam para levar seus animais a uma exposição de gado numa cidade próxima. As mulheres ficariam sozinhas. Na cidadezinha amiga estariam protegidas.
E assim aconteceu com ela naquele dia em que a porta não bateu…
Era uma tarde parada e calorenta. Nem uma vivalma até onde a vista alcançava. Ela, sozinha na casa.
Rompendo a mesmice de todos os dias, passou pela estrada de terra um estranho guiando um jipe. Estava perdido – enganara-se sobre as estradas, que não tinham indicações, e procurava alguém que pudesse ajudá-lo a encontrar aquilo que procurava. Era um fotógrafo que procurava as pontes cobertas, para escrever um artigo para a National Geographic Magazine.
Vendo a mulher que da varanda o observava interrogativa – quem seria? –, ele parou defronte da casa. Surpreendido que uma mulher tão bonita estivesse sozinha naquele fim de mundo, ele se aproxima e é convidado a subir até a varanda. Que mal poderia haver nesse gesto de cortesia? Ele estava suado. Que mal haveria em tomarem juntos uma limonada gelada? Quanto tempo fazia que ela não conversava assim com um homem estranho, sozinha?
Foi então que aconteceu. E os dois disseram em silêncio: “Quando te vi amei-te já muito antes...”. E assim a noite passou, com um amor manso, delicado e apaixonado, que nem ela nem ele jamais haviam experimentado.
Mas o tempo da felicidade passa rápido. A madrugada chegou. A vida real em breve entraria pela porta: filhos, marido e o barulho seco da porta. Hora da despedida, hora do “nunca mais”.
Mas a paixão não aceita separações. Ela deseja a eternidade: Que seja eterno embora chama e infinito para todo o sempre... Eles tomam, então, a decisão de partir juntos. Ele a esperaria numa determinada esquina. Para ele seria fácil – solteiro, livre, nada o prendia. Difícil para ela, presa ao marido e aos filhos. E ela pensava na humilhação que sofreriam na tagarelice dos bares e da igreja.
Chovia forte. Ela e o marido se aproximam da esquina combinada, o marido sem suspeitar do sofrimento de paixão assentado ao seu lado. Sinal vermelho. O carro para. Ele a espera na esquina, a chuva lhe escorrendo pelo rosto e pelas roupas. Seus olhares se encontram. Ele, decidido, esperando. Ela, partida pela dor. A decisão ainda não está feita. Sua mão está crispada sobre a maçaneta. Bastaria um movimento da mão, não mais que cinco centímetros. A porta se abriria, ela sairia sob a chuva e iria abraçar aquele que amava. A luz verde do semáforo se acende. A porta não se abre. O carro segue rumo ao “nunca mais”...
E esse é o fim da estória no livro (e no filme) e na vida…

Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado

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