domingo, 15 de maio de 2022

Dona quente

Monk entrou. Ali dentro estava muito empoeirado e mais escuro que nos lugares habituais. Ele foi até a outra ponta do balcão e sentou-se junto a uma lourona que fumava um cigarillo e tomava um Hamm’s. Ela soltou um peido quando Monk se sentou.
Boa-noite – ele disse –, eu me chamo Monk.
Eu me chamo Mud – ela disse.
Quando Monk se sentou, um esqueleto levantou-se atrás do balcão, onde estivera sentado num tamborete. Aproximou-se de Monk, que pediu um uísque com gelo, e estendeu as mãos e pôs-se a servir a bebida. Derramou um bocado de uísque no balcão, mas conseguiu servir e pegar o dinheiro de Monk, colocá-lo na caixa e trazer o troco.
Que é que há? – perguntou Monk à dona. – Não conseguem arranjar empregados sindicalizados por aqui?
Ah, foda-se – disse a dona. – Esse é o truque de Billy. Não está vendo os arames? Ele opera essa coisa com arames. Acha isso muito engraçado.
Este lugar é estranho – disse Monk. – Fede à morte.
A morte não fede – disse a dona. – Só os vivos fedem, só os agonizantes fedem, só os podres fedem. A morte não fede.
Uma aranha baixou num fio invisível entre eles e girou lentamente. Era dourada na luz mortiça. Depois tornou a subir por seu fio e desapareceu.
Primeira aranha que vejo num bar – disse Monk.
Ela se alimenta das moscas de bar[1] – disse a dona. [1] Trocadilho com barfly – que é mosca de bar e bebum. (N. T.)
Nossa, este lugar está cheio de piadas grosseiras.
A dona peidou.
Um beijo pra você – disse.
Obrigado – disse Monk.
Um bêbado no outro lado do balcão pôs dinheiro na vitrola automática e o esqueleto saiu de trás do balcão, dirigiu-se à dona e fez uma mesura. A dona levantou-se e dançou com o esqueleto. Os dois rodavam e rodavam. As únicas pessoas que se via no bar eram a dona, o esqueleto, o bêbado e Monk. Era uma noite fraca. Monk acendeu um Pall Mall e atacou o seu drinque. A música acabou e a dona voltou e sentou-se ao lado de Monk.
Eu me lembro – disse a dona – quando todas as celebridades vinham aqui. Bing Crosby, Amos e Andy, os Três Patetas. Este lugar realmente tinha bossa.
Prefiro assim – disse Monk.
A vitrola recomeçou.
Quer dançar? – perguntou a dona.
Por que não? – disse Monk.
Levantaram-se e puseram-se a dançar. A dona usava alfazema e cheirava a lilases. Mas era muito gorda e tinha a pele cor de laranja e a dentadura postiça parecia mastigar silenciosamente um camundongo morto.
Este lugar me lembra Herbert Hoover – disse Monk.
Hoover foi um grande homem – disse a dona.
O diabo – disse Monk. – Se Frank D. não tivesse aparecido, nós todos teríamos morrido de fome.
Frank D. nos meteu na guerra – disse a dona.
Bem – disse Monk –, tinha de nos proteger das hordas fascistas.
Não me fale de hordas fascistas – disse a dona. – Meu irmão morreu lutando contra Franco na Espanha.
Brigada Abraham Lincoln? – perguntou Monk.
Brigada Abraham Lincoln – disse a dona.
Estavam dançando muito apertados e a dona de repente enfiou a língua na boca de Monk. Ele empurrou-a de volta com a sua. Ela tinha gosto de selos velhos e camundongo morto. A música acabou. Eles sentaram-se.
O esqueleto aproximou-se. Trazia uma vodca com laranja numa das mãos. Parou diante de Monk e jogou a vodca com laranja na cara dele, depois se afastou.
Que é que há com ele? – perguntou Monk.
É muito ciumento – disse a dona. – Me viu beijar você.
Você chama aquilo de beijo?
Já beijei alguns dos maiores homens de todos os tempos.
Imagino que sim, tipo Napoleão, Henrique VIII e César.
A dona peidou.
Um beijo pra você – disse.
Obrigado – disse Monk.
Acho que estou ficando velha – disse a dona. – Sabe, a gente fala de preconceitos, mas nunca do preconceito que todo mundo tem contra os velhos.
É... – disse Monk.
Mas eu não sou velha mesmo – disse a dona.
Não – disse Monk.
Ainda menstruo – disse a dona.
Monk fez um aceno para o esqueleto pedindo mais dois drinques. A dona passou para uísque com gelo. Os dois tomaram uísque com gelo. O esqueleto voltou e sentou-se.
Sabe – disse a dona –, eu estava lá quando o Babe errou duas rebatidas e apontou para o muro e no próximo arremesso mandou a bola por cima do muro.
Eu achava que isso era um mito – disse Monk.
Mito uma merda – disse a dona. – Eu estava lá. Eu vi.
Sabe – disse Monk –, isso é ótimo. Você sabe que são as pessoas excepcionais que fazem o mundo girar. Eles mais ou menos fazem milagres pra gente, enquanto a gente fica sentado sobre o rabo.
É... – disse a dona.
Ficaram sentados, bicando seus drinques. Ouviam lá fora o trânsito subindo e descendo o Hollywood Boulevard. O som era constante, como a maré, como as ondas, quase como um oceano, e era um oceano: tinha tubarão lá fora, e barracuda e água viva e polvo e peixe otário e baleias e moluscos e esponjas e peixe-rei e coisas assim. Do lado de dentro, parecia mais um tanque de peixes separado.
Eu estava lá – disse a dona – quando Dempsey quase assassinou Willard. Jack tinha acabado de sair dos vagões e estava mau e faminto como um tigre. Nunca vimos nada assim antes ou depois.
Você diz que ainda menstrua?
Certo – disse a dona.
Dizem que Dempsey punha cimento ou gesso nas luvas, dizem que ele as encharcava na água e deixava endurecer, por isso que estourou Willard daquele jeito – disse Monk.
Isso é uma porra duma mentira – disse a dona. – Eu estava lá, eu vi as luvas.
Eu acho que você é maluca – disse Monk.
Também achavam que Joana d’Arc era maluca – disse a dona.
Suponho que você viu Joana d’Arc ser queimada – disse Monk.
Eu estava lá – disse a dona. – Eu vi.
Cascata – disse Monk.
Ela foi queimada. Eu vi ela ser queimada. Foi tão horrível, e lindo.
Que era que tinha de lindo?
A maneira como ela foi queimada. Começou pelos pés. Era como um ninho de chamas vermelhas subindo pelas pernas dela, e depois parecia uma cortina vermelha de chamas, e ela de rosto erguido, e a gente sentia o cheiro da carne queimando e ela continuava viva mas não gritava.
Bobagem – disse Monk –, qualquer um gritaria.
Não – disse a dona –, nem todo mundo gritaria. As pessoas são diferentes.
Carne é carne, dor é dor – disse Monk.
Você subestima o espírito humano – disse a dona.
É... – disse Monk.
A dona abriu a bolsa.
Aqui, olhe, vou lhe mostrar uma coisa.
Tirou uma caixa de fósforos, acendeu um e estendeu a palma da mão. Segurou o fósforo embaixo da mão e deixou-o arder até apagar-se. Sentia-se um cheiro doce de carne assada.
Muito bem – disse Monk –, mas não é o corpo todo.
Não importa – disse a dona –, o princípio é o mesmo.
Não – disse Monk –, não é a mesma coisa.
Bolas – disse a dona.
Levantou-se e pôs um fósforo na bainha do vestido lavanda. O material era fino, tipo gaze, e as chamas começaram a arder em torno das pernas dela e depois a subir para a cintura.
Nossa mãe – disse Monk. – Que diabos você está fazendo?
Provando um princípio – disse a dona.
As chamas subiam mais. Monk saltou do banquinho e atacou a dona. Rolou-a várias vezes no chão, batendo no vestido com as mãos. Aí o fogo apagou-se. A dona voltou ao banquinho do bar e ficou lá sentada. Monk sentou-se ao lado dela, tremendo. O garçom aproximou-se. Vestia uma camisa branca limpa, colete preto, gravatinha borboleta, calças listradas azul e branco.
Desculpe, Maude – ele disse à dona –, mas você tem de ir embora. Já bebeu bastante esta noite.
Tudo bem, Billy – disse a dona, e terminou o seu drinque, levantou-se e saiu pela porta.
Antes de sair, deu boa-noite ao bêbado na outra ponta do balcão.
Deus do céu – disse Monk –, ela é exagerada demais, porra.
Ela fez o número de Joana d’Arc de novo? – perguntou o garçom.
Diabos, você viu, não viu?
Não, eu estava conversando com Louie. – Apontou o bêbado na ponta do balcão.
Eu achava que você estava lá em cima, puxando os arames.
Que arames?
Os arames do esqueleto.
Que esqueleto? – perguntou o garçom.
Ora, vamos – disse Monk –, não me venha com essa merda.
De que você está falando?
Tinha um esqueleto aqui servindo drinques. Ele até dançou com Maude.
Eu estive aqui a noite toda, cara – disse o garçom.
Eu disse: “Não me venha com essa merda!”
Eu não estou fazendo isso – disse o garçom. – Voltou-se para o bêbado na outra ponta do bar. – Escuta, Louie, você viu um esqueleto aqui dentro?
Um esqueleto? – perguntou Louie. – De que você está falando?
Diga a este homem que eu estive bem aqui atrás do balcão a noite toda – disse o garçom.
Billy esteve aqui a noite toda, cara. E nenhum de nós viu esqueleto algum.
Me dê outro uísque com gelo – disse Monk. – Depois eu me mando daqui.
O garçom trouxe o uísque on the rocks. Monk bebeu-o e depois se mandou.

Charles Bukowski, in Numa Fria

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