Raimundo
Gaudêncio de Freitas, traço incerto, arredio ao toque do papel.
Lápis danado, domado, e ele escrevia o nome completo pela primeira
vez. Setenta e um anos e essa invenção, como ele diz, de aprender a
ler e escrever depois de velho. Raimundo não foi difícil.
Complicado era Gaudêncio, denso de saudade, as cinco vogais e
acentuado. Freitas era feito de sangue.
A
vontade, tinha sim, desde menino, mas o pai lhe dizia que a letra era
para menino que não precisava encher o próprio prato. Raimundo foi
cedo para a lida. De noite, o braço ritmado no golpe da foice pedia
descanso, que no outro dia tinha mais. O intento de aprender se
rendeu à precisão. O futuro estava escrito na frente dele, era o
presente do pai, pai de família, dono de um pedaço de chão,
assinando com o dedo quando a palavra falada não bastasse. O que não
podia ser falado, ficasse palavra muda, pensamento. Raimundo não
virou pai de família nem dono de sítio. Se arrancou as raízes,
levando no bolso da camisa a carta.
Uma
carta inteira. Uma palavra seguindo a outra, quantas palavras? Mandar
carta para uma pessoa que não sabia ler, só sendo. A ponta do lápis
pairou acima da linha. O próximo nome tinha escrito a carta
cinquenta e dois anos antes. Ao lado do caderno, o envelope encruado,
sempre fechado. Raimundo não deixou ninguém ler e envelheceu com o
desejo de saber o que ela diz crescendo dentro dele. Feto idoso,
rebento tardio. A carta guardava uma vida inteira.
Stênio Gardel, in A palavra que resta
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