sábado, 9 de abril de 2022

Os escorpiões

A gente convivia com os escorpiões. Houve dia em que apareceram onze dentro de casa. Tanto assim não era comum. Acontecia quando as formigas, por razões desconhecidas, formavam corredeiras e se punham a marchar em filas intermináveis pelos cantos da casa, saindo de uma fresta do assoalho e desaparecendo em outra. As formigas não temiam os terríveis aracnídeos. Metiam-se em suas tocas e os pobrezinhos, indefesos, tinham de sair do abrigo acolhedor do seu lar para se expor ao perigo de se movimentar a descoberto. A população de escorpiões aumentava sempre quando o Zé Ripá trazia lenha no seu caminhão arruinado. Aí eles se punham a andar pelo quintal, e não era incomum ver uma galinha idiota ou um pato espantado tentando comer um escorpião de rabo levantado, sem saber do perigo que morava naquele bicho esquisito. Mas logo eles desapareciam. O monte de lenha era uma espécie de favela provisória para os recém-chegados. Mas eles, sem terra, logo invadiam propriedade alheia, descobriam que o porão escuro era lugar muito mais adequado para fixarem residência definitiva.
Sobre os escorpiões se contavam muitas estórias, sendo a mais famosa delas que os bichos, cercados por um braseiro, sabendo que não tinham saída, cometiam suicídio como samurais japoneses, enterrando o ferrão venenoso na própria nuca. De fato, basta um pouco de imaginação para perceber intenções suicidas nos bichinhos, que andam, normalmente, com o rabo curvado e apontando para o pescoço. Pelo menos era isso que haveríamos de pensar de um policial que andasse pela rua com o revólver apontado para a própria cabeça. Mas como nós meninos tínhamos mentalidade científica e não estávamos dispostos a acreditar em boatos, resolvemos tirar a questão a limpo com um escorpião capturado. Fizemos uma rodinha, agachados à sua volta, enquanto um correu à cozinha para pegar uma pá de brasas no fogão de lenha. Logo o pobre escorpião se encontrou em situação idêntica à de Joana D’Arc. E ficamos ali na expectativa, à espera do gesto humano que o aproximaria de nós. Mas nada. O bicho se recusou a cometer suicídio e morreu mesmo foi torrado pelas brasas.
Todo escorpião que se pegava ia para dentro de um vidro com álcool. É que suco de escorpião, suas tripas esmagadas, tem o poder de curar a dor da picada. Pelo menos era isso que todos diziam enquanto relatavam curas milagrosas. Se isso era verdade no caso de cobra, por que não ser verdade no caso de escorpião? Pois soro contra mordida de cobra não se faz mesmo não é com o veneno da dita? O vidro ficava no porta-bibelôs, bem à vista das visitas, e se por acaso faltasse assunto, escorpião em conserva virava escorpião em conversa.
Minha mãe foi picada por escorpião. Por via das dúvidas, achamos melhor não acreditar no valor curativo das tripas do aracnídeo e mandamos chamar o farmacêutico, que deu uma injeção. Eu quase fui picado quando enfiei o pé descalço debaixo da bola de borracha encostada no canto da parede, e atrás dela estava um escorpião de rabo em pé. E o meu pai, quase também. Só que a estória dele poderia ter tido um desfecho trágico. Só não o foi por proteção de algum santo ou espírito de luz. Tudo se deveu ao seu curioso costume de ir fazer suas necessidades no banheiro com a luz apagada. As razões para isso, que são sempre discutidas quando se conta este caso, nunca puderam ser esclarecidas. Alguns dizem que era para economizar eletricidade. Outros, que ele considerava aquele momento um momento próprio para a meditação, o que é bem verdadeiro. Muitos relatos religiosos contam de experiências de iluminação acontecidas quando a pessoa se encontrava assentada no trono, como é o caso da famosa Türm Erlebnis, de Lutero. Outros invocam a questão do pudor: como se aquilo fosse coisa vergonhosa que devesse acontecer ao abrigo da escuridão. Mas esta é uma questão que não interessa à substancialidade do acontecido que passo a narrar. Como de costume, ele se preparava para se assentar no lugar devido, luz apagada, quando, por alguma estranha inspiração, interrompeu o movimento descendente que já se iniciara, a fim de fazer algo que nunca fazia: acender a luz. Pois não é que, sobre a tampa quadrada da privada, ferrão armado, encontrava-se o escorpião? Meu pai livrou-se não só de uma ferroada, como também do embaraço de ter de explicar a situação constrangedora em que o acidente teria se dado.
Dona Mazinha abrigava em sua casa um filho, a nora e um neto, menino de uns sete anos, molenga e choroso, que vivia brincando com a gente no pastinho. Pois aconteceu que um dia ele enfiou a mão dentro de um buraco no barranco, morada de um escorpião. A gritaria foi infernal; o menino carregado nos braços, lânguido, para dentro da casa, para comoção de toda a redondeza. A casa de dona Mazinha tornou-se o centro da curiosidade de toda a vizinhança, que começou a fazer romaria para ver como estava passando o menino. Nós, que temíamos aquela língua desenfreada, tratávamos de nos manter sempre a respeitosa distância. Mas naquele dia não teve jeito. Tínhamos de fazer uma visita. Se não o fizéssemos era sinal de orgulho e garantia de mau-olhado. Lá pelas quatro da tarde fomos em nossa peregrinação visitar o menino ferido. E qual não foi a nossa surpresa: era uma cena de presépio. Os adoradores em volta, num semicírculo, e no lugar de honra, para a contemplação piedosa de todos, a criança assentada no chão, pernas cruzadas. No meio das pernas um penico, cheio de urina, nunca soubemos quem havia sido o doador, ou doadores, medicina mais potente para a cura de picada de escorpião que o próprio veneno de escorpião. O menino-jesus tinha a sua mão direita mansamente mergulhada no mágico líquido amarelo.
Dona Mazinha, certamente perseguida pelo medo de que a julgássemos pobre, apressou-se a explicar aquela cena nunca vista:
O penico é novo. Foi comprado hoje...”

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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