Depois
de se benzer e de beijar duas vezes a medalhinha de São José, dona
Inácia concluiu:
“Dignai-vos
ouvir nossas súplicas, ó castíssimo esposo da Virgem Maria, e
alcançai o que rogamos. Amém.”
Vendo
a avó sair do quarto do santuário, Conceição, que fazia as
tranças sentada numa rede ao canto da sala, interpelou-a:
— E
nem chove, hein, Mãe Nácia? Já chegou o fim do mês... Nem por
você fazer tanta novena...
Dona
Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes:
— Tenho
fé em São José que ainda chove! Tem-se visto inverno começar até
em abril.
Na
grande mesa de jantar onde se esticava, engomada, uma toalha de
xadrez vermelho, duas xícaras e um bule, sob o abafador bordado,
anunciavam a ceia:
— Você
não vem tomar o seu café com leite, Conceição?
A
moça ultimou a trança, levantou-se e pôs-se a cear, calada,
abstraída.
A
velha ainda falou em alguma coisa, bebeu um gole de café e foi fumar
no quarto.
— A
bênção, Mãe Nácia! — E Conceição, com o farol de querosene
pendendo do braço, passou diante do quarto da avó e entrou no seu,
ao fim do corredor.
Colocou
a luz sobre uma mesinha, bem junto da cama — a velha cama de casal
da fazenda — e pôs-se um tempo à janela, olhando o céu. E ao
fechá-la, porque soprava um vento frio que lhe arrepiava os braços,
ia dizendo:
— Eh!
A lua limpa, sem lagoa! Chove não!...
Foi
à estante. Procurou, bocejando, um livro. Escolheu uns quatro ou
cinco, que pôs na mesa, junto ao farol.
Aqueles
livros — uns cem, no máximo — eram velhos companheiros que ela
escolhia ao acaso, para lhes saborear um pedaço aqui, outro além,
no decorrer da noite.
Deitou-se
vestida, desapertando a roupa para estar à vontade.
Pegou
no primeiro livro que a mão alcançou, fez um monte de travesseiros
ao canto da cama, perto da luz, e, fincando o cotovelo neles, abriu à
toa o volume.
Era
uma velha história polaca, um romance de Sienkiewicz, contando casos
de heroísmos, rebeliões e guerrilhas.
Conceição
o folheou devagar, relendo trechos conhecidos, cenas amorosas,
duelos, episódios de campanha. Largou-o, tomou os outros — um
volume de versos, um romance francês de Coulevain.
E
ao repô-los na mesa, lastimava-se:
— Está
muito pobre essa estante! Já sei quase tudo decorado!
Levantou-se,
foi novamente ao armário. E voltou com um grosso volume encadernado
que tinha na lombada, em letras de ouro, o nome de seu finado avô,
livre-pensador, maçom e herói do Paraguai.
Era
um tratado em francês, sobre religiões. Bocejando, começou a
folheá-lo. Mas, pouco a pouco, qualquer coisa a interessou. E,
deitada, à luz vermelha do farol, que ia enegrecendo o alto da manga
com a fumaça preta, na calma da noite sertaneja, enquanto no quarto
vizinho a avó, insone como sempre, mexia as contas do rosário,
Conceição ia se embebendo nas descrições de ritos e na descritiva
mística, e soletrava os ásperos nomes com que se invocava Deus,
pelas terras do mundo.
Até
que dona Inácia, ouvindo o cuco do relógio cantar doze horas,
resmungou de lá:
— Apaga
a luz, menina! Já é meia-noite!
*
Todos
os anos, nas férias da escola, Conceição vinha passar uns meses
com a avó (que a criara desde que lhe morrera a mãe), no
Logradouro, a velha fazenda da família, perto do Quixadá.
Ali
tinha a moça o seu quarto, os seus livros, e, principalmente, o
velho coração amigo de Mãe Nácia.
Chegava
sempre cansada, emagrecida pelos dez meses de professorado; e voltava
mais gorda com o leite ingerido à força, resposta de corpo e
espírito graças ao carinho cuidadoso da avó.
Conceição
tinha vinte e dois anos e não falava em casar. As suas poucas
tentativas de namoro tinham-se ido embora com os dezoito anos e o
tempo de normalista; dizia alegremente que nascera solteirona.
Ouvindo
isso, a avó encolhia os ombros e sentenciava que mulher que não
casa é um aleijão...
— Esta
menina tem umas ideias!
Estaria
com razão a avó? Porque, de fato, Conceição talvez tivesse umas
ideias; escrevia um livro sobre pedagogia, rabiscara dois
sonetos, e às vezes lhe acontecia citar o Nordau ou o Renan da
biblioteca do avô.
Chegara
até a se arriscar em leituras socialistas, e justamente dessas
leituras é que lhe saíam as piores das tais ideias,
estranhas e absurdas à avó.
Acostumada
a pensar por si, a viver isolada, criara para o seu uso ideias e
preconceitos próprios, às vezes largos, às vezes ousados, e que
pecavam principalmente pela excessiva marca de casa.
Raquel de Queiroz, in O Quinze
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