domingo, 10 de abril de 2022

O Quinze | 1


Depois de se benzer e de beijar duas vezes a medalhinha de São José, dona Inácia concluiu:
Dignai-vos ouvir nossas súplicas, ó castíssimo esposo da Virgem Maria, e alcançai o que rogamos. Amém.”
Vendo a avó sair do quarto do santuário, Conceição, que fazia as tranças sentada numa rede ao canto da sala, interpelou-a:
E nem chove, hein, Mãe Nácia? Já chegou o fim do mês... Nem por você fazer tanta novena...
Dona Inácia levantou para o telhado os olhos confiantes:
Tenho fé em São José que ainda chove! Tem-se visto inverno começar até em abril.
Na grande mesa de jantar onde se esticava, engomada, uma toalha de xadrez vermelho, duas xícaras e um bule, sob o abafador bordado, anunciavam a ceia:
Você não vem tomar o seu café com leite, Conceição?
A moça ultimou a trança, levantou-se e pôs-se a cear, calada, abstraída.
A velha ainda falou em alguma coisa, bebeu um gole de café e foi fumar no quarto.
A bênção, Mãe Nácia! — E Conceição, com o farol de querosene pendendo do braço, passou diante do quarto da avó e entrou no seu, ao fim do corredor.
Colocou a luz sobre uma mesinha, bem junto da cama — a velha cama de casal da fazenda — e pôs-se um tempo à janela, olhando o céu. E ao fechá-la, porque soprava um vento frio que lhe arrepiava os braços, ia dizendo:
Eh! A lua limpa, sem lagoa! Chove não!...
Foi à estante. Procurou, bocejando, um livro. Escolheu uns quatro ou cinco, que pôs na mesa, junto ao farol.
Aqueles livros — uns cem, no máximo — eram velhos companheiros que ela escolhia ao acaso, para lhes saborear um pedaço aqui, outro além, no decorrer da noite.
Deitou-se vestida, desapertando a roupa para estar à vontade.
Pegou no primeiro livro que a mão alcançou, fez um monte de travesseiros ao canto da cama, perto da luz, e, fincando o cotovelo neles, abriu à toa o volume.
Era uma velha história polaca, um romance de Sienkiewicz, contando casos de heroísmos, rebeliões e guerrilhas.
Conceição o folheou devagar, relendo trechos conhecidos, cenas amorosas, duelos, episódios de campanha. Largou-o, tomou os outros — um volume de versos, um romance francês de Coulevain.
E ao repô-los na mesa, lastimava-se:
Está muito pobre essa estante! Já sei quase tudo decorado!
Levantou-se, foi novamente ao armário. E voltou com um grosso volume encadernado que tinha na lombada, em letras de ouro, o nome de seu finado avô, livre-pensador, maçom e herói do Paraguai.
Era um tratado em francês, sobre religiões. Bocejando, começou a folheá-lo. Mas, pouco a pouco, qualquer coisa a interessou. E, deitada, à luz vermelha do farol, que ia enegrecendo o alto da manga com a fumaça preta, na calma da noite sertaneja, enquanto no quarto vizinho a avó, insone como sempre, mexia as contas do rosário, Conceição ia se embebendo nas descrições de ritos e na descritiva mística, e soletrava os ásperos nomes com que se invocava Deus, pelas terras do mundo.
Até que dona Inácia, ouvindo o cuco do relógio cantar doze horas, resmungou de lá:
Apaga a luz, menina! Já é meia-noite!

*

Todos os anos, nas férias da escola, Conceição vinha passar uns meses com a avó (que a criara desde que lhe morrera a mãe), no Logradouro, a velha fazenda da família, perto do Quixadá.
Ali tinha a moça o seu quarto, os seus livros, e, principalmente, o velho coração amigo de Mãe Nácia.
Chegava sempre cansada, emagrecida pelos dez meses de professorado; e voltava mais gorda com o leite ingerido à força, resposta de corpo e espírito graças ao carinho cuidadoso da avó.
Conceição tinha vinte e dois anos e não falava em casar. As suas poucas tentativas de namoro tinham-se ido embora com os dezoito anos e o tempo de normalista; dizia alegremente que nascera solteirona.
Ouvindo isso, a avó encolhia os ombros e sentenciava que mulher que não casa é um aleijão...
Esta menina tem umas ideias!
Estaria com razão a avó? Porque, de fato, Conceição talvez tivesse umas ideias; escrevia um livro sobre pedagogia, rabiscara dois sonetos, e às vezes lhe acontecia citar o Nordau ou o Renan da biblioteca do avô.
Chegara até a se arriscar em leituras socialistas, e justamente dessas leituras é que lhe saíam as piores das tais ideias, estranhas e absurdas à avó.
Acostumada a pensar por si, a viver isolada, criara para o seu uso ideias e preconceitos próprios, às vezes largos, às vezes ousados, e que pecavam principalmente pela excessiva marca de casa.

Raquel de Queiroz, in O Quinze

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