domingo, 10 de abril de 2022

O bom soldado Švejk na chefatura de polícia

O atentado de Sarajevo povoou a chefatura de polícia com muitas vítimas. Chegavam uma atrás da outra. O velho funcionário da recepção dizia com voz bondosa:
Esse Ferdinand vai lhes custar caro!
Švejk foi levado a uma das inúmeras celas do primeiro andar, onde se viu ao lado de seis homens; cinco sentados em volta de uma mesa e, em um canto, como se quisesse ficar afastado do grupo, um homem de meia-idade em cima de um catre.
Švejk começou a perguntar de um em um os motivos de sua prisão. A resposta dos cinco que estavam em volta da mesa foi praticamente a mesma:
Por causa de Sarajevo.
Por causa de Ferdinand.
Por causa do assassinato do senhor arquiduque em Sarajevo.
Por Ferdinand.
Porque despacharam o arquiduque em Sarajevo.
O sexto, aquele que se afastara, disse que não queria ter nenhuma relação com os outros para evitar que as autoridades suspeitassem dele; se estava ali, era apenas porque tentara assaltar e assassinar um senhorzinho de Holic.
Švejk se sentou à mesa da comunidade de conspiradores, que estavam contando pela décima vez como haviam se metido naquela confusão.
Todos haviam sido detidos em um bar, em uma cervejaria ou em um café. A única exceção era um senhor muito gordo, de óculos. Seus olhos estavam avermelhados de tanto chorar. Havia sido preso em casa, em seu próprio quarto, porque, dois dias antes do atentado de Sarajevo, pagara, na taverna U Brejska, a conta de dois estudantes sérvios do ensino técnico e depois fora surpreendido pelo detetive Brix em sua companhia, bêbado, na taverna Montmartre da rua Řetězová, onde também se responsabilizara por suas despesas, como registrara o policial em um boletim de ocorrência assinado por ele.
Durante o interrogatório preliminar, respondera a todas as perguntas gemendo de maneira estereotipada:
Tenho uma papelaria!
E recebera uma resposta também estereotipada:
Isso não o isenta de culpa.
Um senhor baixinho que fora preso numa taverna era professor de história e quando foi detido estava relatando ao taverneiro as circunstâncias de vários atentados históricos. Prenderam-no no exato momento em que concluía uma análise psicológica de cada um dos atentados com as seguintes palavras:
A ideia de um atentado é tão simples como a do ovo de Colombo.
E da mesma maneira simples o senhor será levado a Pankrác — disse o comissário de polícia depois do interrogatório, completando a frase do professor.
O terceiro conspirador presidia a Associação Beneficente Amigos de Hodkovičky. No dia do atentado, a Associação estava promovendo uma festa que incluía um concerto ao ar livre. Um sargento da polícia interrompeu a celebração, ordenando que se dispersassem porque a Áustria estava de luto; então o presidente da entidade lhe pediu, bondosamente:
Um pouco de paciência, por favor. Permita que a orquestra acabe de tocar Ei, eslavos!.
Agora estava sentado com a cabeça baixa e chorava:
Em agosto teremos novas eleições presidenciais e se até lá eu não voltar para casa é provável que não me reelejam. Estou no meu décimo mandato. Não sobreviverei a tamanha vergonha.
Estranhamente, o falecido Ferdinand também pregara uma peça no quarto detido, um homem de caráter puro e conduta impecável. Evitara ao longo de dois dias qualquer conversa sobre Ferdinand, até que uma noite, quando estava jogando, em um café, uma partida de mariáš,9 disse, matando o rei de folhas com um sete de diamantes:
Sete balas, como em Sarajevo.
O quinto homem, o mesmo que fora detido “por causa do assassinato do senhor arquiduque em Sarajevo”, estava com os cabelos e a barba eriçados de medo, de maneira que sua cabeça recordava um pinscher.
Esse homem não dissera nenhuma palavra no restaurante onde fora detido e nem lera as notícias dos jornais sobre o assassinato de Ferdinand. Estava sozinho em uma mesa quando um senhor se aproximou, sentou-se diante dele e disse depressa:
O senhor já leu?
Não li.
Está sabendo?
Não sei de nada.
Não sabe do que se trata?
Não sei, não me preocupo com isso.
Mas isso deveria interessá-lo.
Não sei por que deveria me interessar. Eu fumo um charuto, bebo algumas canecas de cerveja, janto e não leio jornais. Os jornais mentem. Por que vou me aborrecer?
Então não lhe interessa o assassinato de Sarajevo?
Nenhum assassinato me interessa, quer aconteça em Praga, em Viena, em Sarajevo ou em Londres. Para isso existem as autoridades, os tribunais e a polícia. Se um dia qualquer em algum lugar alguém é morto, bem feito para ele, porque foi burro e imprudente e permitiu que o matassem.
Estas foram suas últimas palavras naquela conversa. A partir de então, limitou-se a repetir a cada cinco minutos:
Sou inocente, sou inocente!
Gritou estas palavras na porta da chefatura de polícia, repetiu estas palavras ao ser levado ao Tribunal Penal de Praga e com estas palavras entrou na cela do presídio.
Depois de ter ouvido aquelas terríveis histórias de conspirações, Švejk achou oportuno dizer aos presentes que estavam em uma situação absolutamente desesperadora.
A nossa situação é péssima — começou assim seu discurso tranquilizador. — Não é verdade, como estão dizendo, que não pode acontecer nada com vocês, que não pode acontecer nada com nenhum de nós. Para que serve a polícia, se não for para nos castigar pelo que sai de nossas bocas? Nesses tempos extremamente perigosos, quando até arquiduques são fuzilados, ninguém deveria achar estranho o fato de ser levado à chefatura de polícia. Tudo é feito em nome do espetáculo. Querem divulgar o nome de Ferdinand antes do seu enterro. Quanto mais gente estiver aqui, melhor para nós, porque nos divertiremos mais. Quando eu estava fazendo o serviço militar, às vezes trancafiavam metade da companhia. E a quantidade de pessoas inocentes que foram condenadas! Não apenas pelo exército, mas também pelos tribunais. Recordo que certa vez condenaram uma mulher por ter estrangulado seus filhos gêmeos recém-nascidos. Embora afirmasse que não poderia ter estrangulado gêmeos, pois só tivera uma menininha e conseguira estrangulá-la sem muitas dores, foi condenada por duplo assassinato. Ou então aquele inocente cigano de Záběhlice que, na noite de Natal, invadiu uma mercearia. Jurou que só queria se aquecer, mas não adiantou. Quando o tribunal entra na história, as coisas ficam mal. Mas o mal precisa existir. Como podemos imaginar, talvez nem todos sejam vilões; mas como é possível, nos dias de hoje, distinguir uma boa pessoa de um meliante, sobretudo agora, nesses momentos graves, em que fuzilaram o tal do Ferdinand? Quando eu estava fazendo o serviço militar em Budějovice, fuzilaram o cachorro de um capitão na floresta, atrás do campo de exercícios. Quando o oficial ficou sabendo, chamou todo mundo, mandou que entrássemos em forma e ordenou que cada décimo homem desse um passo à frente. Obviamente, eu também fui um dos décimos; e aí ficamos ali, em posição de sentido, sem nem piscar. O capitão caminhava ao nosso redor e gritava: “Patifes, sem-vergonhas, escória, hienas imundas, por causa da história do cachorro deveria enfiá-los na solitária, cortá-los em tiras como se fossem espaguetes, fuzilá-los e fritá-los como se fossem carpas azuis! Mas para que saibam que não vou poupá-los, vão ficar duas semanas presos no quartel!” Vocês estão vendo: tratava-se de um cachorro e agora se trata do senhor arquiduque. Por isso tem de reinar o terror: para que o luto seja esplendoroso.
Sou inocente, sou inocente! — repetiu o homem eriçado.
Jesus Cristo também era inocente — disse Švejk — e, no entanto, foi crucificado. Ninguém nunca se importou com os inocentes. Cale-se e continue trabalhando, como nos diziam no serviço militar. Isso é o melhor, o mais belo de tudo.
Švejk deitou-se no beliche e adormeceu tranquilamente.
Enquanto isso, trouxeram mais dois. Um deles era bósnio. Caminhava pela cela, rangia os dentes e não parava de dizer:
Jeben ti dušu!10
Estava aflito com a possibilidade de a polícia confiscar sua cesta de vendedor ambulante.
O outro novo hóspede era o taverneiro Palivec; assim que viu seu amigo Švejk, acordou-o e exclamou em tom trágico:
Também estou aqui!
Fico muito feliz, de verdade. Eu sabia que aquele senhor manteria a palavra quando disse que iriam buscá-lo. Tamanha correção deve ser vista sob uma ótica positiva.
Palivec respondeu que tamanha correção não lhe servia para merda nenhuma, e em seguida perguntou em voz baixa a Švejk se os outros presos eram ladrões, porque se fossem, ele, como comerciante, poderia ser prejudicado.
Švejk lhe explicou que, à exceção de um homem acusado de ter tentado assaltar e roubar um senhorzinho de Holic, todos estavam ali por causa do arquiduque.
Palivec se ofendeu e disse que não estava ali por causa de nenhum estúpido arquiduque e sim por causa do senhor imperador. E como os outros começaram a se interessar, contou a história das moscas que haviam cagado no senhor imperador.
Aquelas bestas me emporcalharam tudo — terminou de narrar sua aventura — e acabaram me trazendo para a prisão. Jamais perdoarei aquelas moscas! — acrescentou, em tom ameaçador.
Švejk voltou a dormir, mas não por muito tempo, porque pouco depois foram buscá-lo para ser interrogado.
E assim, subindo a escada que conduzia à Terceira Seção, onde seria interrogado, Švejk carregava sua cruz ao alto do Calvário, sem saber nada de seu martírio.
Quando viu um cartaz que dizia que era proibido cuspir no corredor, Švejk pediu ao guarda que lhe permitisse cuspir na escarradeira e, irradiando a simplicidade que lhe era própria, entrou na sala dizendo as seguintes palavras:
Senhores, desejo uma boa-tarde a todos.
Como resposta, alguém lhe deu um soco embaixo das costelas e o levou até uma mesa onde estava sentado um homem com expressão gélida de funcionário público e traços de uma crueldade tão bestial que parecia ter saído do livro O homem delinquente, de Cesare Lombroso.
Ele dirigiu a Švejk um olhar sanguinolento e disse:
Afaste essa expressão idiota do seu rosto.
Não posso fazer nada — respondeu Švejk, solenemente. — Fui dispensado do exército por idiotice e declarado oficialmente idiota por uma comissão especial. Sou um idiota oficial.
O cavalheiro com aspecto criminoso rangeu os dentes.
Aquilo de que foi acusado e tudo o que fez são provas de que está em plena posse de suas faculdades mentais.
E então enumerou o longo rol de crimes de Švejk, começando pelo de alta traição e terminando pelo de ofensa a Sua Majestade e aos membros da família imperial. No meio da lista, destacava-se a comemoração do assassinato do arquiduque Ferdinand e dali partia outro ramo de novos crimes, entre os quais o de perturbação da ordem pública, porque os fatos haviam acontecido em um local público.
O que você tem a dizer a respeito? — perguntou, triunfalmente, o homem que parecia ser muito cruel.
Muita coisa — respondeu Švejk, inocentemente.
Bem, então admite...
Admito tudo, senhor. A severidade tem de existir; sem ela não iríamos a lugar nenhum. Como quando eu estava fazendo o serviço militar...
Cale-se — gritou o policial. — E só abra a boca quando o interrogarem! Entendeu?
Entendi, senhor — acrescentou Švejk. — Digo, educadamente, que entendo e entenderei tudo o que vier a me dizer.
Com quem o senhor tem contato?
Com minha criada, excelência.
E não conhece ninguém dos círculos políticos locais?
Conheço, excelência; costumo comprar a edição vespertina do Národní Politika,11 popularmente chamada de “A cadela”.
Fora daqui! — interrompeu-o o homem com cara de besta feroz.
Antes que o retirassem da sala, Švejk disse:
Boa noite, excelência.
Quando voltou à cela, Švejk informou aos presos que o interrogatório era uma brincadeira:
Gritam um pouco com você e depois o expulsam. Antes era pior — continuou Švejk. — Li uma vez em um livro que obrigavam os acusados a caminhar sobre ferro em brasa e a beber chumbo fundido para provar que eram inocentes. Ou então lhes enfiavam as pernas em botas de tortura que chamavam de botas espanholas e, se teimassem em não confessar, eram estirados em uma escada, ou queimavam seus quadris com um archote de bombeiro, como fizeram com São João Nepomuceno.12 Dizem que gritava como se estivesse sendo apunhalado e não parou até que o atiraram da ponte de Eliščin em um saco impermeável. Houve outros casos como este. Mais tarde, chegaram a esquartejar ou a empalar acusados diante do Museu Nacional. Aqueles que eram atirados no calabouço se sentiam renascer.
Hoje ir para a prisão é engraçado”, continuou Švejk, com alegria. “Nada de esquartejamento, nada de botas espanholas... Temos beliches, temos mesa, temos bancos... Não somos obrigados a nos apertar uns contra os outros, ganharemos sopa, nos darão pão, trarão uma jarra de água, e temos uma privada diante do nariz. O progresso pode ser percebido em todos os lugares. É verdade que a sala dos interrogatórios fica um pouco longe; é preciso atravessar três corredores e subir uma escada, mas, em compensação, tudo é limpo e muito animado. Trazem um para cá, levam outro para lá, há jovens e velhos, pessoas do sexo masculino e feminino. Você fica feliz de pelo menos não estar sozinho. Cada um segue tranquilamente seu caminho e não precisa temer que lhe digam no escritório: ‘Decidimos que amanhã você será esquartejado ou queimado, de acordo com sua própria escolha.’ Imaginem como seria difícil optar por uma dessas duas penas. Eu diria, senhores, que em um momento desses muitos de nós ficariam bastante desconcertados. Sim, pode-se dizer que as circunstâncias melhoraram muito, e a nosso favor.”
Mal terminara seu discurso em defesa do moderno sistema penitenciário, quando o supervisor abriu a porta e exclamou:
Švejk, vista-se e se apresente ao interrogatório.
Vou me vestir — disse Švejk —, não tenho nada contra, mas temo que se trate de um engano, pois já fui expulso uma vez do interrogatório. E também temo que os outros senhores que estão aqui fiquem chateados comigo porque estão me levando pela segunda vez enquanto eles ainda não foram interrogados nem uma vez hoje à tarde. Poderiam ficar com inveja...
Fora! E se cale! — foi a resposta à gentil declaração de Švejk.
Švejk se viu mais uma vez diante do sujeito com aspecto criminoso que, sem nenhum tipo de preâmbulo, lhe perguntou, dura e implacavelmente:
Confessa tudo?
Švejk dirigiu seus bondosos olhos azuis ao funcionário implacável e disse com suavidade:
Se sua excelência deseja que eu confesse tudo, então confessarei. E se me disser: “Švejk, não confesse nada”, não darei nem um pio.
O homem severo escreveu alguma coisa no expediente; depois entregou a pena a Švejk e mandou que assinasse.
E Švejk assinou a denúncia de Bretschneider, com a seguinte observação:
Todas as acusações levantadas anteriormente contra mim se baseiam na verdade.
Josef Švejk

Depois de assinar, voltou-se para o homem feroz:
Tenho de assinar alguma outra coisa? Ou prefere que volte de manhã?
De manhã será levado ao tribunal — foi a resposta.
A que horas, excelência? Pelo amor de Deus, não quero perder a hora.
Fora! — vociferou uma voz pela segunda vez no dia, agora do outro lado da mesa diante da qual estava.
No caminho que levava ao seu novo lar gradeado, Švejk disse ao policial que o acompanhava:
Aqui tudo parece funcionar perfeitamente.
Assim que a porta se fechou atrás dele, os companheiros de cela o encheram de perguntas. Švejk respondeu-as com clareza:
Acabo de confessar que matei o arquiduque Ferdinand.
Os seis homens, horrorizados, se esconderam embaixo das mantas cheias de piolhos. Só o bósnio disse em sua língua:
Bem-vindo!
Ajeitando-se no beliche, Švejk exclamou:
É desagradável não ter um despertador!
Mas na manhã seguinte foi acordado sem precisar de um despertador, e, às seis em ponto, já estava sendo levado em um camburão verde ao Tribunal Penal Regional.
Deus ajuda quem madruga — disse Švejk aos seus companheiros de viagem quando a camionete atravessou o portão da chefatura de polícia.

9. Uma das variedades do pôquer, muito popular entre os tchecos, jogado com um baralho alemão de 32 cartas em tcheco chamado de mariašky, cujos naipes, ao invés de ouros, copas, paus e espadas, são “cardíaca” (ou vermelho), bolotas, folhas (ou verde) e diamantes. (N. do T.)
10. Uma imprecação obscena comum em sérvio: “Foda-se sua alma.” (N. do T.)
11. Famoso jornal conservador de Praga que parou de circular em 1945. (N. do T.)
12. Jan Nepomucký em tcheco. Segundo a lenda, era confessor da rainha da Boêmia, negou-se a revelar o segredo de suas confissões e foi torturado até a morte. Um dos santos mártires. (N. do T.)

Jaroslav Hasek, in As aventuras do bom soldado Svejk

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