Gago
de medo o homem fora ao dentista que, para distraí-lo e trabalhar em
paz, enquanto lhe metia o boticão, metia-lhe também uma agulha na
popa. Que raiz funda, doutor!
— Viu
só? E exibiu-lhe o molar.
Pois
foi desta anedota ingênua que me lembrei naquela madrugada, quando
não me aguentava mais de chorar e ter medo. Haveria um caminho. Era
impossível rir daquele modo, de minha própria sorte. Decidi que
devia a algumas pessoas o comunicado da minha sina. Precisava também
pedir orações. Começando pelos parentes, fiz uma lista. Podia ter
deixado de fora a Cleonir do Januário, sempre me tratando com
acidez, sempre me desengraçando com palavras pontiagudas. Moveu-me
decerto a estupidez, disfarçando de humildade meu orgulho ferido:
olha aqui, Cleonir, você é um limão rançoso, mas venho te contar,
eu, que não sou rançosa e desde criança sou amada e festejada por
isso e por aquilo, estou com doença grave. Será o que aconteceu?
Ela só disse oh! E dias depois me mandou uma mudinha de mirra. Tudo
esquisito, por que mirra? Seu óleo precioso não é para embalsamar?
“Ela me unge para a sepultura”, ó Cristo, era de gelar, eu
transpirava medo. Admiro quem diz eu não perdoo, parece forte e sem
culpa, parece da lei mosaica, o próprio Javé vingando-se, humano
como um chefe tribal. Nasci perdoando, perdoo fácil, guardo tão bem
segredos que os esqueço. O que me impediu ter sido uma criança como
o menino Ivã do filme russo? Careço de um perfil, careço tanto,
pareço um cristão-novo, batizada, continuo querendo cortar cabeças.
Mas, ainda que mal, amo Jesus Cristo. Ainda na bruma uma ideia, um
esboço de ideia parece importante: eu também sou forte, também não
perdoo, só que a mim mesma, não me amo, não me protejo, não tenho
pena de mim. Por isso fui contar à Cleonir o que Deus me pedia, por
isso ofereci a cabeça à sanha da predadora. Tenho, sim, um perfil,
minha vida tem um roteiro, A infância de Olímpia, formo com
os terráqueos, tive câncer, descansei em minha própria fraqueza.
Adélia Prado, in Quero minha mãe
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