Faz
quanto tempo que não penso em outra coisa a não ser em você,
imbecil?, você, que se intromete nas linhas do livro que leio, na
música que escuto, dentro dos objetos que vejo. Não creio ser
possível que o revestimento do meu esqueleto seja igual ao seu.
Suspeito que você pertence a outro planeta, que seu Deus é
diferente do meu, que o anjo da guarda da sua infância não se
parecia com o meu. Como se se tratasse de alguém que eu tivesse
entrevisto na rua, acho que não nos conhecemos na infância e que
aquela época não passou de um mero sonho. Pensar, de manhã até a
noite, e da noite à manhã, nos seus olhos, seus cabelos, na sua
boca, na sua voz, nesse jeito que você tem de andar, não me deixa
trabalhar em nada. Às vezes, ao ouvir seu nome ser pronunciado, meu
coração para de bater. Imagino as frases que você diz, os lugares
que frequenta, os livros de que gosta. No meio da noite, acordo em
sobressalto, me perguntando: “Onde estará aquela besta?” ou “Com
quem estará?”. Às vezes, com meus amigos, conduzo a conversa a
temas que fatalmente atraem comentários sobre o seu modo de viver,
sobre as particularidades de sua personalidade, ou então passo pela
porta da sua casa, perdendo um tempo infinito te esperando, para ver
a que hora você sai ou que roupa está vestindo. Nenhum amante terá
pensado tanto em sua amada como eu em você. Sempre me lembro das
suas mãos levemente vermelhas, e da pele dos seus braços, mais
escura nas dobras do cotovelo e no pescoço, como areia úmida. “Será
sujeira?”, penso, esperando conseguir com um defeito novo a
destruição do seu ser tão desprezível. Eu poderia desenhar seu
rosto de olhos fechados, sem me enganar quanto a nenhuma das suas
linhas: me pouparei de fazê-lo, pois temo melhorar suas feições ou
divinizar a expressão um pouco bestial das suas bochechas
proeminentes. Pode ser mesquinho da minha parte, mas todas as minhas
mesquinharias eu devo a você. Depois da nossa infância, que
transcorreu em um colégio que foi nossa prisão, onde nos víamos
todos os dias e dormíamos no mesmo dormitório, eu poderia enumerar
alguns encontros furtivos: um dia, na plataforma de uma estação,
outro dia numa praia, outro dia no teatro, outro dia na casa de uns
amigos. Não me esquecerei daquele último encontro, tampouco me
esqueço dos outros, mas o último me parece mais significativo.
Quando notei sua presença naquela casa, perdi a consciência por uma
fração de segundo. Seus pés lascivos estavam nus. Pretender
descrever a impressão que me causaram as unhas dos seus pés seria
como pretender reconstruir o Partenon. Acho, no entanto, que na
infância tive o pressentimento de tudo o que eu ia sofrer por sua
causa. Ouvi minha mãe dizer seu nome quando entramos, pela primeira
vez, para visitar aquele colégio cujo jardim era repleto de
jacarandás em flor, e nele havia aquelas duas estátuas, segurando
globos de luz em cada um dos lados do portão.
— Alba
Cristián é filha de uma amiga minha. Vai ficar como interna aqui
também. É da sua idade — disse minha mãe, cruelmente.
Senti
um estranho mal-estar: pensei que era por culpa do colégio onde iam
me internar. Entretanto, como aqueles anéis antigos que continham
veneno sob um camafeu ou sob uma pedra, seu nome, como se também
fosse um círculo, inconscientemente me pareceu venenoso. Outro
pressentimento me avassalou naquele dia do passeio aos lagos de
Palermo, quando descemos para comer a merenda sobre o gramado e
Máxima Parisi te mostrou uns cartões-postais que ela não quis
mostrar a mim, e quando, no fim da tarde, tomando um sorvete de
framboesa, ela se recostou sobre seu ombro, no ônibus que nos levou
de volta ao colégio. Naquela intimidade que me excluía, senti a
ameaça de outras tristezas. Não pense que me esqueci da senha
misteriosa da sua mesa de cabeceira, que arrancava um sorriso de
Máxima Parisi, nem daquele maço de cigarros americanos que, sem me
convidar, vocês fumaram no alpendre dos arbustos, “corpo no chão”,
diziam vocês, “como os soldados”, naquele esconderijo que
detesto até hoje. Não pense que me esqueci daquele livro
pornográfico nem do gato que vocês batizavam com um novo nome
extravagante a cada dia, pobre coitado! Nem daquela espécie de
supositório para perfumar o banheiro com odor de rosas, que vocês
dissolviam num copo de água e passavam nos cabelos e nos braços.
Não pense que me esqueci de quando Máxima ficou doente, e você se
pendurou no meu braço o dia inteiro, me dizendo que era eu a sua
amiga predileta e que ia me convidar para ir à sua casa de campo no
verão. Não me iludi, porque, além do mais, você não me inspirava
simpatia alguma. Busquei sua amizade só para te afastar das outras.
No fundo do meu coração se retorcia uma serpente semelhante à que
fez com que Adão e Eva fossem expulsos do Paraíso.
Suspeitava
que minha vida seria uma sucessão de fracassos e de abominações.
Não há criança infeliz que depois seja feliz: quando adulta,
poderá ter lá alguma esperança em algum momento, mas é um erro
acreditar que o destino possa mudar as coisas. Pode ter vocação
para a felicidade ou para a infelicidade, para a virtude ou para a
infâmia, para o amor ou para o ódio. O homem carrega sua cruz desde
o princípio; há cruzes de madeira rústica, de alumínio, de cobre,
de prata ou de ouro, mas todas são cruzes. Você bem sabe qual é a
minha, mas talvez não saiba qual é a sua, pois nem todos os seres
são lúcidos, nem capazes de ler o destino nos signos que
diariamente surgem ao redor de si. É crueldade de minha parte te
advertir disso? Dane-se. Por você não sinto a menor pena.
Incomoda-me que alguém ainda ache que somos amigas de infância. Não
falta quem me pergunte, em um tom ao mesmo tempo meloso e
escandalizado:
— Você
não tem amigos de infância?
E
eu respondo:
— Não
nasci grudada aos amigos de infância. Se agora tenho pouco
discernimento para escolhê-los, imagine quantos erros não cometi
nos meus primeiros anos! As amizades de infância são equivocadas, e
não se pode ser fiel a um equívoco indefinidamente.
Aquele
dia, na casa dos nossos amigos, ao te ver, uma nuvem trêmula
envolveu minha nuca, meu corpo se cobriu de arrepios. Peguei um livro
que estava sobre a mesa e comecei a folheá-lo com avidez: só depois
percebi que o livro se intitulava Balancete das vendas de bovinos. A
dona da casa me ofereceu um refrigerante de laranja horrível, “de
alfinetes”, como chamávamos toda bebida gaseificada. Bebi num gole
só para disfarçar o tremor da minha mão; felizmente fazia calor e
fui para a sacada, com o pretexto de tomar uma brisa e de olhar a
vista que abarcava o rio da Prata ao longe e, em primeiro plano, o
Monumento aos Espanhóis, que, visto desse ângulo, parecia mais do
que nunca um gigantesco bolo de casamento ou de primeira comunhão.
Sorri para a sua cara de besta, você sorriu de volta. Viver assim
não era viver. Senti tonturas, náuseas. Daquele sétimo andar,
contemplei a rua, pensando em como seria minha queda, caso me
atirasse daquela altura. Uma banca de frutas, caixotes de lixo ao pé
do prédio (os lixeiros deviam estar em greve) e um parapeito alto me
atrapalhavam na hora de imaginar a cena. Para me acalmar, tentei me
concentrar nessa ideia cheia de dificuldades. Tinha o poder, que
agora não tenho, de me desdobrar: conversei com as pessoas que me
rodeavam, ri, olhei para todos os lados com os olhos cravados no
fundo daquele precipício com caixotes de lixo, com frutas e com
homens passando. Tudo era menos imundo do que a sua cara. “A
quantas músicas, a quanta gente, a quantos livros tenho que
renunciar para não compartilhar os mesmos gostos com você?”,
pensei ao olhar para dentro do apartamento através do vidro da
janela. “Quero minha solidão, a quero com mil caras impessoais.”
Olhei para você e através do reflexo do vidro sua cara de piranha
tremulou, como se estivesse no fundo da água. Pensei em todos
aqueles em que não posso pensar por sua causa e no sortilégio que
me envolvia. Você está em mim como essas figuras nos quadros que
escondem outras mais importantes. Um especialista pode apagar a
figura sobreposta, mas onde está o especialista? Preciso dar uma
explicação a respeito de meus atos. Depois de ter te cumprimentado
com uma amabilidade inusitada, te convidei a tomar chá. Você
aceitou. Eu te disse que minha casa estava sendo pintada. Por sorte
você sugeriu que seria melhor irmos à sua casa. No momento em que
você estiver preparando o chá e o deixar na mesa, fingirei um
desmaio. Você irá pegar o copo d’água que vou te pedir, então
jogarei na chaleira o veneno que trago na bolsa. Você irá servir o
chá depois de um instante. Eu não tomarei o meu, pensei, como se
delirasse enquanto você estava falando comigo.
Não
realizei meu projeto. Era infantil. Achei mais inteligente usar esse
procedimento para matar L. Descartei a ideia porque a morte não me
pareceu um castigo.
— O
que você tem? — me perguntava L.
A
conversa recaía em você. Eu dizia sobre você as piores coisas que
se pode dizer sobre um ser humano. Falei de sujeira, de mentiras, de
deslealdade, de vulgaridade, de pornografia. Inventei coisas atrozes
que acabaram sendo maravilhosas. Não suspeitei que, pela primeira
vez, L. se interessava por sua personalidade, por sua vida, por sua
maneira de sentir e que tudo tinha nascido da minha imaginação.
Durante
o tempo que me dediquei a pensar só em você, a falar das suas
roupas horríveis, da sua maldade, de como você não tinha nojo de
meter dinheiro sujo na boca e coisas que encontrava no chão,
construí para vocês, com minha cumplicidade, com minhas suspeitas,
com meu ódio, este ninho de amor tão complicado onde vivem
afastados de mim por minha culpa. Quero que saiba que você deve a
sua felicidade ao ser que mais te despreza e te detesta no mundo.
Quando desaparecer esse ser que te enfeita com sua inveja e te
embeleza com seu ódio, sua felicidade estará acabada junto com a
minha vida e o fim desta carta. Então você se internará em um
jardim semelhante ao do colégio que era nossa prisão, um jardim
ilusório, cuidado por duas estátuas, que seguram dois globos de luz
nas mãos, para iluminar a sua solidão inextinguível.
Silvina Ocampo, in A fúria
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