segunda-feira, 4 de abril de 2022

A cozinha

A cozinha era o melhor lugar. De manhã, todos juntos, café com leite, pão e manteiga, e cada um ia fazer as coisas que tinha de fazer. Hora de uma separação boa. À noite nos encontrávamos de novo na cozinha, o que era melhor ainda. Albert Camus, nos seus Primeiros cadernos, diz o seguinte: “Se, durante o dia, o voo dos pássaros parece sempre sem destino, à noite dir-se-ia reencontrar sempre uma finalidade. Voam para alguma coisa. Assim, talvez, na noite da vida...”. Somos como os pássaros. Será que, num passado perdido, fomos dotados de asas que perdemos, por não usá-las? Queremos voltar ao destino. A cozinha era o destino. O fogo...
O fogão de lenha aceso era de altar. A gente adorava, sem saber. O fogo. Era em torno do fogo que o lar acontecia. O fogão de lenha marcava o único lugar quente da casa. Calor que todos procuravam. A lenha queimava, perfumando o ar com o cheiro das resinas que a lenha chorava através de suas gretas. E de repente voavam fagulhas estalando, pequenos fogos de artifício. O fogo avermelhava os rostos. A prosa era sempre sobre coisas de antigamente, que todos já conheciam. “Pai, conta daquela vez que, pra visitar a mamãe, você atravessou a enchente do rio num tacho do engenho de cana puxado por uma corda...” A conversa era só uma desculpa para estar juntos. A conversa era uma continuação das mãos. As palavras tinham carne. Na sala de visitas, lugar de cadeiras em ângulo reto, o silêncio criava incômodo. Não podia ser. O vazio era o nada. Silêncio seria falta de educação com as visitas. Mas na cozinha, diante do fogo, o silêncio era bem-vindo. Só contemplar o fogo já bastava. Era um silêncio carnudo, cheio de ser, tranqüilo e feliz. O fogo incendiava a imaginação. Bachelard gostava de contemplar o fogo. Gostava tanto que escreveu um livro sobre a chama de uma vela.

Toda fantasia diante de uma chama é uma fantasia admiradora. Todo sonhador inflamado está em estado de primeira fantasia. Esta primeira admiração está enraizada em nosso passado longínquo. Temos pela chama uma admiração natural, ouso mesmo dizer, uma admiração inata. A chama nos força a olhar. O sonhador vive em um passado que não é mais unicamente seu, no passado dos primeiros fogos do mundo. (A chama de uma vela, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1989, p. 11)

Os primeiros fogos do mundo! Os homens reunidos em torno do fogo. A luz do fogo, o calor do fogo. O primeiro deus. Sol doméstico. Um espaço com um fogo aceso é um espaço aconchegante. As sombras não param. Movem-se ao sabor da dança das chamas. O fogo tranquiliza a alma, espanta os medos. Faz lugar para os pensamentos vagabundos que não querem nada.
A chapa quente do fogão era lugar para uma cafeteira de ágata. Quando não o café, um chá de folha de laranjeira. Minha amiga Maria Alice, que já citei, viveu a cozinha como eu vivi. Contou-me que quando era mais jovem propunha um negócio a Deus: trocaria um ano de sua vida agora por uma única noite na cozinha de sua casa quando ela era menina. Toda noite era igual. Ela conta: “A mãe dizia: ‘Vou é lá fora apanhar umas folhas de laranjeira pra fazer um chá pra nós...’ . O pai advertia: ‘Mulher, você vai é ficar estuporada. Está com a cara quente do calor do fogo e vai sair na friagem? Vai acabar de boca torta...’ . Ela nunca seguiu a advertência do marido e nunca ficou de boca torta”.
Sobre o fogo uma panela de ferro coberta com uma tampa de lata de óleo de dezoito litros, com brasas em cima. Dentro da panela, um “bolo de panela”. É preciso dizer que é “bolo de panela” para diferenciar dos outros, que são de forno. Bolo de panela é bolo de pobre que não tem forno. As brasas na lata são para assar o topo do bolo. De fubá, com pedacinhos de queijo Minas. A tecnologia não era perfeita. Um momento de distração e a brasas queimavam a crosta. Mas esses pedaços queimados eram mais gostosos. A manteiga escorria no bolo quente. A Tofa cuidava do fogo, cuidava do café, cuidava do bolo de panela. Às vezes, em lugar de bolo de panela era pipoca. Podia ser que nos assentássemos à volta da mesa nos bancos compridos e se usasse o tempo para escolher feijão ou debulhar milho de pipoca para o dia seguinte. Nas noites de chuva os pingos das goteiras tocavam música nas panelas espalhadas pelo chão. Meu pai gostava da música das goteiras. Ele dizia que elas o faziam dormir.
Nas noites de julho, muito frio, a gente se assentava à volta de um tacho de cobre cheio de brasas e punha os pés nos pauzinhos dos tamboretes, pra quentar-se ao fogo. Apagava-se a luz e os rostos apareciam vermelhos sobre um fundo escuro. Os pintores flamengos teriam gostado de pintar uma tela Família quentando-se ao fogo.
De noite a cozinha era um lugar macio, de ficar quieto, fazendo nada, só gozando... Gozando a dança vermelha das chamas, o cheiro das resinas, o barulhinho do fogo crepitando, o gosto bom do café com bolo. Era uma festa para os sentidos tranquilos. Estávamos livres da compulsão para fazer.
De dia a cozinha era outra coisa. Virava oficina de alquimista, lugar onde se processavam grandes transformações na matéria. O fogo fazia o duro ficar mole: a mandioca, a batata, o arroz, a carne. Fazia o mole ficar duro: o ovo cozido, o pé-de-moleque, rapadura com amendoim. A rapadura mesma era um líquido que o fogo transformara em sólido. O fogo também fazia ferver a meleca das goiabas partidas até transformá-las em pastas endurecidas que se guardavam em caixas. Fazia o sólido virar gás: a lenha, as cascas de laranjas secas, penduradas num varal de arame sobre o fogão, transformavam-se em fumaça.
O fogo fazia o nojento virar sabão: aquelas muxibas e sebos de carne de vaca, ajuntados debaixo do fogão, misturadas com decoada, tudo derretido junto num tacho de cobre vermelho, virava sabão preto que, depois de pronto, era amassado em bolas do tamanho de duas conchas de mão que eram amarradas artisticamente com palha de milho. A decoada se fazia com cinzas. As cinzas eram guardadas por sua tríplice utilidade. Primeiro, por serem um adubo poderoso. Segundo, porque com elas se fazia a “barrela”, que era uma mistura de cinza e água com que se besuntava os fundos das panelas antes de levá-las ao fogo. Fazia-se isso para protegê-las da fuligem. A fuligem preta ficava na barrela. Depois era só lavar a barrela preta com água e a panela estava limpa. Terceiro, porque com ela se fazia uma química de origens desconhecidas. Ninguém sabe como aconteceu a descoberta. A cinza era colocada dentro de uma lata de óleo grande, não sem antes fazer três furinhos no fundo. A seguir a cinza era pilada até ficar dura como pedra. Colocava-se então a lata sobre três tijolos, debaixo dos furos um pires, e derramava-se água na cinza, cada dia só um pouquinho. A água era coada através da cinza e pingava no pires como um líquido cor de café. Esse líquido era a decoada que era misturada à nojeira das muxibas e sebos para produzir o delicado sabão preto, muito bom para a pele. Um químico me explicou que o segredo estava no potássio que morava na cinza. Mas lá em Minas a gente pobre que fazia sabão de cinza não sabia o que era potássio. Eles sabiam sem saber. Sabiam mais do que nós, que sabemos o nome sem conhecer o seu poder. Tudo me assombra, até ovo da galinha. Penso: Como é que foi? A coisa ficou mais complicada quando, visitando uma aldeia histórica nos Estados Unidos, perto de Salem, aquela cidadezinha que matou bruxas, descobri que era assim que os Pilgrim Fathers faziam sabão, do jeito como a gente fazia, lá em Minas.
O mundo está cheio de espantos. A alquimista-mor era a Tofa, negra modesta que não sabia que era alquimista. Fazia frango com quiabo, frango ao molho pardo, ora-pro-nóbis refogado com pedacinhos de carne de porco, pra ser comido com angu mole e feijão. Se você nunca comeu ora-pro-nóbis, vá visitar as cidades históricas de Minas. Eu prefiro Tiradentes: sopa de fubá com ora-pro-nóbis, frango com ora-pro-nóbis, ora-pro-nóbis refogado, salada de ora-pro-nóbis cru. Na literatura só encontrei duas referências ao ora-pro-nóbis: na poesia da Adélia Prado e no Fogão de lenha, de Maria Stella Libânio Christo (Petrópolis, Vozes, 1991). É um arbusto espinhento que cresce sem parar, fácil de pegar aos galhos, que dá umas folhas no formato de folhas de laranjeira. Suculentas. Macias. Pode-se comer cruas. Dizem que é rico em proteína. Perene. Não precisa replantar. Uma campanha para o plantio de ora-pro-nóbis em todas as casas pobres garantiria o sucesso do programa Fome Zero. E ainda por cima dá flores maravilhosas.
Mas houve uma vez em que a Tofa fracassou. Sua alquimia culinária não deu certo. Não por culpa dela. Mas para falar do seu fracasso devo primeiro fazer uma breve dissertação sobre os soufflés.
Soufflé quer dizer “sopro” em francês. A alma do soufflé é o ar: daí as suas qualidades pneumáticas, espirituais, pois sopro, vento e espírito, etimologicamente, são a mesma coisa. Não fosse essa mania esnobe de achar que o nome francês é mais elegante, se o soufflé tivesse sido inventado lá em Minas, é certo que o seu nome seria “assoprado”: “assoprado de chuchu”, “assoprado de camarão”, “assoprado de aspargos” etc. O que não é de causar espanto, pois, segundo o testemunho do Fogão de lenha, que registra trezentos anos de cozinha mineira, existiu outrora um doce chamado assoprinhos de moça, que se fazia com claras batidas, três libras de açúcar, uma onça de água-de-flor, um pouco de carmim em pó. Se houve os assoprinhos de moça é natural que possa haver os “assoprados” da dona da casa.
O elemento essencial na produção dos soufflés são as claras dos ovos, batidas até ficarem bem duras. Mas qual é a função das claras? É óbvia e simples: as claras são redes de pegar ar. O movimento circular-rotatório do garfo batendo as claras é igual ao movimento do pescador que joga a tarrafa para pegar o peixe. Só que, aqui, o que se quer pegar é o ar, e tanto é assim que, ao final, quando as claras estão batidas, elas, que no início tinham a consistência de goma-arábica, transformam-se em espuma: milhares de pequenas bolhas transparentes, cada uma delas com um tantinho de ar preso lá dentro.
Dessa qualidade espiritual e pneumática do soufflé vem sua característica essencial: o soufflé é fffofffo. Não é possível falar fffofffo sem soprar. O próprio Dicionário Webster define o soufflé como “a fluffy baked dish” — “prato assado fffofffinho”, sendo que o “fluffy” no inglês preserva o mesmo poder onomatopaico do fffofffo em português: quem fala fffofffo sopra.
Essa característica pneumática do soufflé, que é a sua glória, infelizmente é também a sua fraqueza. Porque tudo o que é cheio de ar, como bolas e bexigas, fica murcho e vazio tão logo apareça um minúsculo furinho. É o que acontece com o pobre soufflé. Tem de ser comido logo que sai do forno, porque sua ereção é precária. Se ele se esfriar ou tomar um sopro de vento frio, sofre uma convulsão: a princípio, um ligeiro tremor, seguido de movimentos verticais e horizontais — e a corada superfície mergulha repentinamente para o fundo da fôrma.
Haveria visitas para o jantar. A Tofa caprichou: preparou um maravilhoso soufflé. Mas, ao sair do forno, ele tomou um golpe de vento frio e murchou. A Tofa ficou desesperada. Seu jantar estava arruinado. Resolveu valer-se de recursos heroicos. Foi até o quintal e cortou um canudinho de mamoeiro que cuidadosamente enfiou no soufflé e pôs-se a soprar. O milagre parecia estar acontecendo. O soufflé encheu, subiu, parecia ressuscitado. Mas foi só tirar o canudinho para que ele voltasse a ser o que era... O fato é que não há formas de consertar soufflé que afundou. O remédio foi servi-lo murcho como se encontrava...
Eu me metia na cozinha não por interesses culinários, mas por interesses técnicos. O fogo me ajudava a fazer brinquedos. Para colar o papel de seda dos papagaios eu fazia grude, mistura de polvilho com água numa latinha vazia de massa de tomate sobre a chapa, mexendo sempre para não empelotar. Custou-me muitos experimentos para aprender a técnica de fazer grude perfeito, transparente. Esse é outro dos poderes do fogo: fazer o opaco ficar transparente, como é o caso das gelatinas. Para fazer furos numa tábua, sem arco de pua, colocava-se um espeto redondo no braseiro até ficar incandescente. Aí enfiava-se o espeto vermelho no lugar a ser furado. A madeira chiava, soltava fumaça e o espeto entrava e varava. Peso para linha de pescar se fazia derretendo-se alguns tubos de dentifrício (esse era o nome da pasta dental...), que eram de chumbo. Como já disse, o fogo tem o poder de transformar o duro em líquido. Aí derramava-se o chumbo derretido num buraquinho cônico feito num canto do rabo do fogão. Antes que o chumbo endurecesse enfiava-se nele uma varetinha fina tirada de uma vassoura de piaçava. Era através do buraco que a varetinha deixava no chumbo que o fio de pesca iria passar. Fuçador, quebrei a caneta-tinteiro do meu irmão Ismael. Tentei colar as partes com o poder do fogo. Colou, mas ficou torta.
Depois de velho, ao me lembrar das minhas experiências científicas com a cozinha, pensei que seria possível montar um programa de química a partir da culinária. Pois a química não se iniciou com a alquimia, que pretendia descobrir os segredos das transformações da matéria? E haverá lugar onde tais transformações são mais visíveis que a cozinha? Descobri, então, que um francês já havia feito isso. Seu nome é Hervé This-Benckhard. Eis o que ele escreveu no seu livro Les secrets de la casserole: “Cozinhar e fazer experiências químicas partem do mesmo princípio: misturar produtos diferentes e ver qual o resultado. As substâncias mudam de cor, de aroma, de sabor, de consistência. São duas atividades concretas, enriquecedoras e, ao contrário do que se imagina, nada difíceis” (O Estado de S. Paulo, 14 maio 1994, A-18). Acho que as crianças gostariam…

Rubem Alves, in O velho que acordou criança

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