A
cozinha era o melhor lugar. De manhã, todos juntos, café com leite,
pão e manteiga, e cada um ia fazer as coisas que tinha de fazer.
Hora de uma separação boa. À noite nos encontrávamos de novo na
cozinha, o que era melhor ainda. Albert Camus, nos seus Primeiros
cadernos, diz o seguinte: “Se, durante o dia, o voo
dos pássaros parece sempre sem destino, à noite dir-se-ia
reencontrar sempre uma finalidade. Voam para alguma coisa. Assim,
talvez, na noite da vida...”. Somos como os pássaros. Será
que, num passado perdido, fomos dotados de asas que perdemos, por não
usá-las? Queremos voltar ao destino. A cozinha era o destino. O
fogo...
O
fogão de lenha aceso era de altar. A gente adorava, sem saber. O
fogo. Era em torno do fogo que o lar acontecia. O fogão de lenha
marcava o único lugar quente da casa. Calor que todos procuravam. A
lenha queimava, perfumando o ar com o cheiro das resinas que a lenha
chorava através de suas gretas. E de repente voavam fagulhas
estalando, pequenos fogos de artifício. O fogo avermelhava os
rostos. A prosa era sempre sobre coisas de antigamente, que todos já
conheciam. “Pai, conta daquela vez que, pra visitar a mamãe, você
atravessou a enchente do rio num tacho do engenho de cana puxado por
uma corda...” A conversa era só uma desculpa para estar juntos. A
conversa era uma continuação das mãos. As palavras tinham carne.
Na sala de visitas, lugar de cadeiras em ângulo reto, o silêncio
criava incômodo. Não podia ser. O vazio era o nada. Silêncio seria
falta de educação com as visitas. Mas na cozinha, diante do fogo, o
silêncio era bem-vindo. Só contemplar o fogo já bastava. Era um
silêncio carnudo, cheio de ser, tranqüilo e feliz. O fogo
incendiava a imaginação. Bachelard gostava de contemplar o fogo.
Gostava tanto que escreveu um livro sobre a chama de uma vela.
Toda
fantasia diante de uma chama é uma fantasia admiradora. Todo
sonhador inflamado está em estado de primeira fantasia. Esta
primeira admiração está enraizada em nosso passado longínquo.
Temos pela chama uma admiração natural, ouso mesmo dizer, uma
admiração inata. A chama nos força a olhar. O sonhador vive em um
passado que não é mais unicamente seu, no passado dos primeiros
fogos do mundo. (A chama de uma vela, Rio de Janeiro, Bertrand
Brasil, 1989, p. 11)
Os
primeiros fogos do mundo! Os homens reunidos em torno do fogo. A luz
do fogo, o calor do fogo. O primeiro deus. Sol doméstico. Um espaço
com um fogo aceso é um espaço aconchegante. As sombras não param.
Movem-se ao sabor da dança das chamas. O fogo tranquiliza a alma,
espanta os medos. Faz lugar para os pensamentos vagabundos que não
querem nada.
A
chapa quente do fogão era lugar para uma cafeteira de ágata. Quando
não o café, um chá de folha de laranjeira. Minha amiga Maria
Alice, que já citei, viveu a cozinha como eu vivi. Contou-me que
quando era mais jovem propunha um negócio a Deus: trocaria um ano de
sua vida agora por uma única noite na cozinha de sua casa quando ela
era menina. Toda noite era igual. Ela conta: “A mãe dizia: ‘Vou
é lá fora apanhar umas folhas de laranjeira pra fazer um chá pra
nós...’ . O pai advertia: ‘Mulher, você vai é ficar
estuporada. Está com a cara quente do calor do fogo e vai sair na
friagem? Vai acabar de boca torta...’ . Ela nunca seguiu a
advertência do marido e nunca ficou de boca torta”.
Sobre
o fogo uma panela de ferro coberta com uma tampa de lata de óleo de
dezoito litros, com brasas em cima. Dentro da panela, um “bolo de
panela”. É preciso dizer que é “bolo de panela” para
diferenciar dos outros, que são de forno. Bolo de panela é bolo de
pobre que não tem forno. As brasas na lata são para assar o topo do
bolo. De fubá, com pedacinhos de queijo Minas. A tecnologia não era
perfeita. Um momento de distração e a brasas queimavam a crosta.
Mas esses pedaços queimados eram mais gostosos. A manteiga escorria
no bolo quente. A Tofa cuidava do fogo, cuidava do café, cuidava do
bolo de panela. Às vezes, em lugar de bolo de panela era pipoca.
Podia ser que nos assentássemos à volta da mesa nos bancos
compridos e se usasse o tempo para escolher feijão ou debulhar milho
de pipoca para o dia seguinte. Nas noites de chuva os pingos das
goteiras tocavam música nas panelas espalhadas pelo chão. Meu pai
gostava da música das goteiras. Ele dizia que elas o faziam dormir.
Nas
noites de julho, muito frio, a gente se assentava à volta de um
tacho de cobre cheio de brasas e punha os pés nos pauzinhos dos
tamboretes, pra quentar-se ao fogo. Apagava-se a luz e os rostos
apareciam vermelhos sobre um fundo escuro. Os pintores flamengos
teriam gostado de pintar uma tela Família quentando-se ao fogo.
De
noite a cozinha era um lugar macio, de ficar quieto, fazendo nada, só
gozando... Gozando a dança vermelha das chamas, o cheiro das
resinas, o barulhinho do fogo crepitando, o gosto bom do café com
bolo. Era uma festa para os sentidos tranquilos. Estávamos livres da
compulsão para fazer.
De
dia a cozinha era outra coisa. Virava oficina de alquimista, lugar
onde se processavam grandes transformações na matéria. O fogo
fazia o duro ficar mole: a mandioca, a batata, o arroz, a carne.
Fazia o mole ficar duro: o ovo cozido, o pé-de-moleque, rapadura com
amendoim. A rapadura mesma era um líquido que o fogo transformara em
sólido. O fogo também fazia ferver a meleca das goiabas partidas
até transformá-las em pastas endurecidas que se guardavam em
caixas. Fazia o sólido virar gás: a lenha, as cascas de laranjas
secas, penduradas num varal de arame sobre o fogão, transformavam-se
em fumaça.
O
fogo fazia o nojento virar sabão: aquelas muxibas e sebos de carne
de vaca, ajuntados debaixo do fogão, misturadas com decoada, tudo
derretido junto num tacho de cobre vermelho, virava sabão preto que,
depois de pronto, era amassado em bolas do tamanho de duas conchas de
mão que eram amarradas artisticamente com palha de milho. A decoada
se fazia com cinzas. As cinzas eram guardadas por sua tríplice
utilidade. Primeiro, por serem um adubo poderoso. Segundo, porque com
elas se fazia a “barrela”, que era uma mistura de cinza e água
com que se besuntava os fundos das panelas antes de levá-las ao
fogo. Fazia-se isso para protegê-las da fuligem. A fuligem preta
ficava na barrela. Depois era só lavar a barrela preta com água e a
panela estava limpa. Terceiro, porque com ela se fazia uma química
de origens desconhecidas. Ninguém sabe como aconteceu a descoberta.
A cinza era colocada dentro de uma lata de óleo grande, não sem
antes fazer três furinhos no fundo. A seguir a cinza era pilada até
ficar dura como pedra. Colocava-se então a lata sobre três tijolos,
debaixo dos furos um pires, e derramava-se água na cinza, cada dia
só um pouquinho. A água era coada através da cinza e pingava no
pires como um líquido cor de café. Esse líquido era a decoada que
era misturada à nojeira das muxibas e sebos para produzir o delicado
sabão preto, muito bom para a pele. Um químico me explicou que o
segredo estava no potássio que morava na cinza. Mas lá em Minas a
gente pobre que fazia sabão de cinza não sabia o que era potássio.
Eles sabiam sem saber. Sabiam mais do que nós, que sabemos o nome
sem conhecer o seu poder. Tudo me assombra, até ovo da galinha.
Penso: Como é que foi? A coisa ficou mais complicada quando,
visitando uma aldeia histórica nos Estados Unidos, perto de Salem,
aquela cidadezinha que matou bruxas, descobri que era assim que os
Pilgrim Fathers faziam sabão, do jeito como a gente fazia, lá em
Minas.
O
mundo está cheio de espantos. A alquimista-mor era a Tofa, negra
modesta que não sabia que era alquimista. Fazia frango com quiabo,
frango ao molho pardo, ora-pro-nóbis refogado com pedacinhos de
carne de porco, pra ser comido com angu mole e feijão. Se você
nunca comeu ora-pro-nóbis, vá visitar as cidades históricas de
Minas. Eu prefiro Tiradentes: sopa de fubá com ora-pro-nóbis,
frango com ora-pro-nóbis, ora-pro-nóbis refogado, salada de
ora-pro-nóbis cru. Na literatura só encontrei duas referências ao
ora-pro-nóbis: na poesia da Adélia Prado e no Fogão de lenha,
de Maria Stella Libânio Christo (Petrópolis, Vozes, 1991). É um
arbusto espinhento que cresce sem parar, fácil de pegar aos galhos,
que dá umas folhas no formato de folhas de laranjeira. Suculentas.
Macias. Pode-se comer cruas. Dizem que é rico em proteína. Perene.
Não precisa replantar. Uma campanha para o plantio de ora-pro-nóbis
em todas as casas pobres garantiria o sucesso do programa Fome Zero.
E ainda por cima dá flores maravilhosas.
Mas
houve uma vez em que a Tofa fracassou. Sua alquimia culinária não
deu certo. Não por culpa dela. Mas para falar do seu fracasso devo
primeiro fazer uma breve dissertação sobre os soufflés.
Soufflé
quer dizer “sopro” em francês. A alma do soufflé é o
ar: daí as suas qualidades pneumáticas, espirituais, pois sopro,
vento e espírito, etimologicamente, são a mesma coisa. Não fosse
essa mania esnobe de achar que o nome francês é mais elegante, se o
soufflé tivesse sido inventado lá em Minas, é certo que o
seu nome seria “assoprado”: “assoprado de chuchu”, “assoprado
de camarão”, “assoprado de aspargos” etc. O que não é de
causar espanto, pois, segundo o testemunho do Fogão de lenha,
que registra trezentos anos de cozinha mineira, existiu outrora um
doce chamado assoprinhos de moça, que se fazia com claras
batidas, três libras de açúcar, uma onça de água-de-flor, um
pouco de carmim em pó. Se houve os assoprinhos de moça é natural
que possa haver os “assoprados” da dona da casa.
O
elemento essencial na produção dos soufflés são as claras
dos ovos, batidas até ficarem bem duras. Mas qual é a função das
claras? É óbvia e simples: as claras são redes de pegar ar. O
movimento circular-rotatório do garfo batendo as claras é igual ao
movimento do pescador que joga a tarrafa para pegar o peixe. Só que,
aqui, o que se quer pegar é o ar, e tanto é assim que, ao final,
quando as claras estão batidas, elas, que no início tinham a
consistência de goma-arábica, transformam-se em espuma: milhares de
pequenas bolhas transparentes, cada uma delas com um tantinho de ar
preso lá dentro.
Dessa
qualidade espiritual e pneumática do soufflé vem sua característica
essencial: o soufflé é fffofffo. Não é possível falar
fffofffo sem soprar. O próprio Dicionário Webster define o
soufflé como “a fluffy baked dish” — “prato assado
fffofffinho”, sendo que o “fluffy” no inglês preserva o mesmo
poder onomatopaico do fffofffo em português: quem fala fffofffo
sopra.
Essa
característica pneumática do soufflé, que é a sua glória,
infelizmente é também a sua fraqueza. Porque tudo o que é cheio de
ar, como bolas e bexigas, fica murcho e vazio tão logo apareça um
minúsculo furinho. É o que acontece com o pobre soufflé.
Tem de ser comido logo que sai do forno, porque sua ereção é
precária. Se ele se esfriar ou tomar um sopro de vento frio, sofre
uma convulsão: a princípio, um ligeiro tremor, seguido de
movimentos verticais e horizontais — e a corada superfície
mergulha repentinamente para o fundo da fôrma.
Haveria
visitas para o jantar. A Tofa caprichou: preparou um maravilhoso
soufflé. Mas, ao sair do forno, ele tomou um golpe de vento
frio e murchou. A Tofa ficou desesperada. Seu jantar estava
arruinado. Resolveu valer-se de recursos heroicos. Foi até o quintal
e cortou um canudinho de mamoeiro que cuidadosamente enfiou no
soufflé e pôs-se a soprar. O milagre parecia estar
acontecendo. O soufflé encheu, subiu, parecia ressuscitado.
Mas foi só tirar o canudinho para que ele voltasse a ser o que
era... O fato é que não há formas de consertar soufflé que
afundou. O remédio foi servi-lo murcho como se encontrava...
Eu
me metia na cozinha não por interesses culinários, mas por
interesses técnicos. O fogo me ajudava a fazer brinquedos. Para
colar o papel de seda dos papagaios eu fazia grude, mistura de
polvilho com água numa latinha vazia de massa de tomate sobre a
chapa, mexendo sempre para não empelotar. Custou-me muitos
experimentos para aprender a técnica de fazer grude perfeito,
transparente. Esse é outro dos poderes do fogo: fazer o opaco ficar
transparente, como é o caso das gelatinas. Para fazer furos numa
tábua, sem arco de pua, colocava-se um espeto redondo no braseiro
até ficar incandescente. Aí enfiava-se o espeto vermelho no lugar a
ser furado. A madeira chiava, soltava fumaça e o espeto entrava e
varava. Peso para linha de pescar se fazia derretendo-se alguns tubos
de dentifrício (esse era o nome da pasta dental...), que eram de
chumbo. Como já disse, o fogo tem o poder de transformar o duro em
líquido. Aí derramava-se o chumbo derretido num buraquinho cônico
feito num canto do rabo do fogão. Antes que o chumbo endurecesse
enfiava-se nele uma varetinha fina tirada de uma vassoura de piaçava.
Era através do buraco que a varetinha deixava no chumbo que o fio de
pesca iria passar. Fuçador, quebrei a caneta-tinteiro do meu irmão
Ismael. Tentei colar as partes com o poder do fogo. Colou, mas ficou
torta.
Depois
de velho, ao me lembrar das minhas experiências científicas com a
cozinha, pensei que seria possível montar um programa de química a
partir da culinária. Pois a química não se iniciou com a alquimia,
que pretendia descobrir os segredos das transformações da matéria?
E haverá lugar onde tais transformações são mais visíveis que a
cozinha? Descobri, então, que um francês já havia feito isso. Seu
nome é Hervé This-Benckhard. Eis o que ele escreveu no seu livro
Les secrets de la casserole: “Cozinhar e fazer experiências
químicas partem do mesmo princípio: misturar produtos diferentes e
ver qual o resultado. As substâncias mudam de cor, de aroma, de
sabor, de consistência. São duas atividades concretas,
enriquecedoras e, ao contrário do que se imagina, nada difíceis”
(O Estado de S. Paulo, 14 maio 1994, A-18). Acho que as crianças
gostariam…
Rubem Alves, in O velho que acordou criança
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