Irmãos,
volvamos para a Natureza!
Civilizados,
para trás! Voltemos...
Humberto
de Campos
Trepadeiras
listam de verde úmido o velho muro cinzento, abrindo nos pequeninos
cachos vermelhos e brancos uma leve alegria visual. Esta trepadeira é
chamada Romeu e Julieta porque no mesmo molho estão as flores de
duas cores, confusas e juntas. Uma outra, de folhas miúdas, sustenta
campânulas minúsculas e rubras que abrem as bocas escarlates para
os besouros escuros, redondos e sonoros.
No
canto de muro, tijolos quebrados, cobertos pelos cacos de telha
ruiva, aprumam-se numa breve pirâmide de que restos de papel, pano e
palha disfarçam as entradas negras da habitação coletiva desde o
térreo, domínio dual de Titius, o escorpião, e de Licosa, aranha
orgulhosa, até o último andar onde mora um grilo solitário e
tenor.
Perto
há, tão curvo quanto o pescoço de um cisne, um cano de onde pende
enferrujada torneira. Duas vezes por dia escorre, lento e claro, um
fio de água trêmula e cintilante na sua cantiga rápida no tanque
raso de bordas o nível do chão. Uma folha sempre verde passeia
devagar na face arrepiada, e Dica, a aranha-d’água, corre pela
superfície de prata sem molhar as seis patas finíssimas.
Na
margem há duas pedras, dois tijolos sujos debaixo dos quais reside
um sapo negro e ouro, orgulhoso, atrevido e covarde na classe musical
dos barítonos. Chama-se Fu.
Água
do tanque sobe duas vezes cada dia, vagarosa, sacudida pelos círculos
concêntricos que sustentam a existência do reservatório, bebedouro
do bem-te-vi, lavadeira de casaca preta, xexéus do bairro
residencial próprio e permite o abastecimento regular de aves no
tipo das vizinhas toleradas e dos visitantes dispensáveis e
teimosos.
No
meio do quintal, a mangueira estende a galharia robusta, derramando
sombra e agasalho. É uma árvore bem velha, alta e copada, mas de
frutos azedos e reduzidos.
Aquela
imponência ornamental basta para justificar a presença poderosa. Os
frutos carecem de importância para ela. Não deseja reproduzir a
dinastia de porte lindo ou demasiado confia na solidariedade famélica
dos pássaros e dos morcegos. Bem no centro há um oco, janelão
ogival, que é a porta nobre de Sofia, a coruja noturna, misteriosa e
venerada.
Há
do lado um sapotizeiro denso e baixo onde ainda resiste ao redor do
tronco um círculo carcomido de folha de flandres, posto ali há
muitos anos, impedindo as subidas vorazes de Musi, proprietária de
uma família de ratos insaciáveis.
Depois
do sapotizeiro, há uma goiabeira esquelética e que teima, como
fêmea obstinada na fecundação, em cobrir-se de goiabas amarelas de
polpa rubra e doce.
No
fim, hirto, senhorial, importante, o mamoeiro sacode o estirado caule
bem alto, com uma coroa de folhas imóveis, guardando o bando de
mamões compridos e desejados pela lonjura.
Mamoeiro,
sapotizeiro e goiabeira estão registrados nos livros graves como
Carica papaya, L., mas o fruto lembrando uma grande mama conservou o
aumentativo. Achras sapota, L., e Psidium guayava, Raddi, fecham a
relação sisuda e definitiva.
Ao
pé do sapotizeiro há um montezinho de pedras e aí instalou seu
escritório o cavalo do cão que ainda não tomou conhecimento de
pertencer aos Himenópteros pompilídeos, raça guerreira e milenar.
De
três galhos da mangueira, os mais distantes do solo, justamente na
extremidade, penduram-se as bolsas cinzento-claras dos ninhos dos
xexéus, guardados em posição alcoviteira, constante e tenaz por um
regimento de tapiucabas, vassalas espontâneas e dedicadas até o
sacrifício individual.
Nas
brechas do muro que as trepadeiras enfeitam e remoçam cada manhã e
tarde vivem as lagartixas, chefiadas por Vênia, anciã gorda e
vagarosa, de couro áspero, lixento e rugoso. As lagartixas são
muito bem educadas e balançam as cabecinhas triangulares concordando
com tudo.
No
ramo mais grosso do sapotizeiro há uma casa redonda e chata,
defendida pela fama agressiva de seus moradores para as
circunjacências habitadas. É o concílio do marimbondo-caboclo, rei
dos marimbondos-chapéu, por causa da forma residencial. Invencíveis,
são o melhor agrupamento de combate, caça e patrulha das
redondezas.
Junto
à pirâmide está uma telha intacta e semienterrada, custodiando a
família inteira da rainha Blata com sua corte de baratas
avermelhadas e profissionalmente famintas.
Próximo
às árvores ergue-se o que resta da antiga cozinha. Dos portais
apodrecidos caiu a porta inferior, coberta de caliça e monturo. Uma
ponta em elevação permite torná-la abrigo e aí, vez por outra,
veraneia Raca, a jararaca temida, Bothrops jararaca, vinda dos
arredores, entrando pela brecha do muro num espreguiçamento
indolente, reluzindo suas escamas verde-oliva onde as manchas escuras
e triangulares, orladas de amarelo-baço, vestem-na de certo luxo.
Permanece alguns dias descansando e vigiando a família de Musi que
se aboletou no frio e abandonado fogão de chapa, podendo criar os
frutos dos amores sucessivos com relativa segurança e possível
fartura. Brinco, o gato, aparece por fruta naquela região. Raca sabe
desta simpatia de Musi e procura a cozinha como a um farnel de
reserva. Musi naturalmente desenvolve técnicas defensivas para
livrar a espécie do paladar de Raca.
Do
teto negro de fuligem, inúteis teias de aranha decoram como festões,
penduram-se durante o dia, dormindo, a falange dos morcegos de Quiró,
enrolados nas asas membranosas, com a mania do sono de cabeça para
baixo, conforme recomendação dos especialistas quirópteros. Tanto
Sofia como Raca são apaixonadas apreciadoras da carne tenra dos
morcegos que não se resolvem a ser fornecedores passivos e dóceis
desta iguaria difícil.
Esta
é a multidão regular e permanente da terra silenciosa que o canto
de muro denomina.
Há,
naturalmente, outras multidões flutuantes de adventícios,
visitantes, turistas aproveitadores da sazão das frutas, miriápodes,
planárias quase imóveis, deixando brilhante rastro de baba viscosa,
bando de aves atrevidas, ondas rumorejantes de besouros de todas as
cores e feitios. Há fregueses matutinos e vespertinos que visitam as
flores pacientes na espera indispensável à propagação.
Como
um clarão policolor, iluminando a penumbra das trepadeiras humildes,
o beija-flor paira no ar, asas invisíveis pela miraculosa vibração
que o sustém como a um deus mantido pela própria essência
propulsora contra a lei da gravidade, vencedor do peso e da
velocidade, mergulhando o fino e longo bico nas corolas e
desaparecendo como um pequenino fantasma rutilante.
Também
estão presentes as aranhas incontáveis, as formigas negras e as
saúvas vitoriosas. Ao escurecer, os vaga-lumes desenham hieróglifos
de luz azul e fria.
O
fio de água canta no tanque desencalhando a folha verde que voga em
círculos. Dica inspeciona numa viagem impetuosa os limites de sua
jurisdição. A nódoa da umidade avança na areia enegrecida e fofa
detendo-se, conforme prévio ajuste entre as altas partes
contratantes, na orla do pequeno formigueiro das “negras” que não
podem aspirar à importância administrativa das saúvas mas têm
direito à vida e à perpetuidade. Xexéus, bem-te-vis, lavadeiras
vêm molhar o bico. Dão carreiras esportivas com bruscas paradas,
experimentando os freios naturais, rodando em voos perigosamente
baixos à borda cimentada, pousando numa suprema elegância como se
fossem aplaudidos pelas galerias repletas de admiradores. Vez e vez o
voo inesperado e ponteiro abate um inseto confiado. Regressam ainda
deglutindo. O bem-te-vi demora as abluções e os passeios não têm
a alegria muscular das lavadeiras que mantêm o protocolo, vestindo
casaca negra sobre o imaculado branco do peito e das perninhas ágeis.
Numa
e noutra ocasião acontece vir beber o canário amarelo, pequeno e
vivo como uma bola de ouro, o sabiá-cinzento de bico negro, o
concliz esplendoroso, sangue e ébano, como um Grande de Espanha,
deslumbrante.
Os
xexéus possuem três ninhos e julgam propriedade quanto seus olhos
alcancem mas não dirão o pensamento em canto alto temendo a
contrariedade do bem-te-vi, tão bonito quanto arrebatado e brigão.
As
flores das trepadeiras atraem besouros maravilhosos, de bronze
dourado, raiados de vermelho, brilhantes de um negro palpitante,
róseos, amarelos, com todas as gradações do arco-íris. E vespas
fulminantes, zumbindo como se anunciassem a hierarquia que está
honrando o canto de muro com sua presença augustal, deixando quase
um rastro de cintilações no aéreo caminho percorrido.
Tardinha,
quando os pássaros e as aves bebem ou se invertem ao derredor do
tanque, sente-se o respeito interior, inveja e veneração, das
outras espécies sem asas e sem cantos, sem aquelas plumagens, sem
aqueles élitros vistosos, derramando seduções para os dois olhos
de Vênia e os oito das aranhas.
Junto
ao mamoeiro escancara-se a porta de um reino de Ata com saídas de
emergência noutros pontos. Possivelmente a sede é no lado do muro e
apenas aqui estão as aberturas dos canais de acesso para o domínio
subterrâneo. De todas as espécies é a única que não goza das
licenças legais e férias remuneradas. Não há leis de trabalho
regulando o esforço perpétuo das saúvas, vassalas de Ata. Qualquer
hora o sol tem reparado na linha processional e lépida das formigas
vermelhas carregando pétalas, folhas verdes, vermes, insetos
inteiros ou despedaçados, mortos ou ainda vivos, debatendo-se no
alto do grupo que os leva, palpitante, para o fundo da terra, numa
inútil e derradeira batalha.
Mesmo
à noite as estrelas deram fé da missão noturna das saúvas.
Continuam trabalhando. Dizem que é medo do inverno mas aqui não há
inverno justificador de tanta dedicação esfomeada. Têm o instinto
da luta vital ou cumprem, como as danaides, penitência sem fim.
Também
as borboletas esvoaçam, espalhando a sedução da cor e graça dos
gestos delicados. E os gafanhotos escuros ou verdes, a esperança, um
locustídeo que tendo a boca esverdeada dá felicidade e a tendo
negra é anúncio de azar, surge aos saltos ou voo raseiro.
Uma
visita dispensável é a do põe-mesa, piedoso louva-a-deus, o mais
feroz animal da criação, erguendo as patinhas hipócritas para um
arremedo de oração sempre interrompida pelo assalto e pela agressão
irresistível. Licosa é a única que abandona sua sesta tardia e
vem, mansa e sutil, no rastro do louva-a-deus, julgando-o
indispensável como aperitivo fórmico para o jantar. O põe-mesa
pressente-a e abre as lindas asas, suspendendo-se num arranco
ciciante para outra paragem mais tranquila.
Agora
o sol se põe e Vênia recolhe o seu povo às gretas do muro
acolhedor. As aves subiram para os ninhos e apenas o bem-te-vi e
alguma lavadeira retardatária apressam o regresso aos saltos
diagonais. Titius aparece um instante à porta da mansão, com as
pinças cruzadas e o anzol da cauda erguido em popa de gôndola,
inspecionando o campo da futura expedição. Os xexéus terminam seu
canto sincopado, imitando a declinação do qui-quae-quod. As
tapiucabas voltavam aos quartéis. Licosa anda, rápida, ao redor do
edifício, preparando-se para a caçada perigosa e noturna. Já se
ouve o guincho agudo e repetido dos morcegos que despertaram. Na
treva hesitante, que a folhagem da mangueira adensa e aveluda,
brilham os olhos de esmeralda de Sofia.
O
chiado confuso de Musi anuncia apetite em toda a tribo alertada. As
estrelas estão se acendendo na altura do céu escuro.
A
cigarra da mangueira estridulou longamente seu aviso amoroso às
fêmeas longínquas no zio-zio-zio excitador.
Do
cimo da pirâmide de tijolos subiu a cantiga alta e viva do grilo
tenor, anunciando a presença do seu desejo, canto ansioso de
chamamento à noiva, distante e surda. Espalhava o convite insistente
e anônimo do amor obscuro, impaciente e fiel. Detinha-se num
compasso de espera como aguardando a réplica que tardava. Depois
retomava, incansável, a fricção raivosa dos élitros, dando um
frêmito angustiado que parecia ressoar nas coisas mudas e tranquilas
que o rodeavam.
Sobem
agora rumores imprecisos, cantigas distantes, diluídas e vagas na
difusa musicalidade do anoitecer. É o quiriri, a voz esparsa que
enche a treva, música sem nome e sem contorno das horas sem sol.
Do
cimo da mangueira um corpo mergulha em queda quase perpendicular. Som
forte de asas que se abrem como pano rompido e uma breve sombra passa
nodoando a face imóvel do tanque. Sofia saiu para caçar...
O
grilo retomou seu cântico nupcial estridente, desafiante, sacudindo
a solidão povoada de notas indecisas e de quietações momentâneas.
Parecia sozinho resumir o amor coletivo dos seres que se batiam
naquele momento pela conservação da vida e da espécie.
O
esquadrão dos morcegos num voo baixo obliquou pelo sapotizeiro e,
guiado pelas ondas sonoras que feriam o radar personalíssimo,
desapareceu no escuro.
O
sapo do tanque deixou os tijolos e desenvolveu um bailado de pulos.
Parava para coaxar, rouco, rascante, rachado. Uma estrela ficou
olhando a lâmina de água quieta.
O
grilo cantou mais alto.
A
noite começava…
Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro
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