Em
Janeiro, ainda a casa estava em acabamento, meus cunhados María e
Javier, com a participação simbólica mas interessada de Luís e
Juan José, trouxeram-me de Arrecife um caderno de papel reciclado.
Achavam eles que eu devia escrever sobre os meus dias de Lanzarote,
ideia, aliás, que coincidia com a que já me andava na cabeça. A
oferta trazia porém uma condição: que eu não me esquecesse, de
vez em quando, de mencionar-lhes os nomes e os feitos... As primeiras
palavras que escrevo são portanto para eles. Quanto às seguintes,
terão de fazer alguma coisa por isso. O caderno fica guardado.
Comecei
a escrever o conto do capitão do porto e do director da alfândega.
A ideia andava comigo há uns cinco ou seis anos, desde o encontro de
escritores que por essa altura se realizou em Ponta Delgada, com o
Urbano, o João de Melo, o Francisco José Viegas, o Luís Coelho. De
lá estavam Emanuel Félix, Emanuel Jorge Botelho, José Martins
Garcia e Daniel de Sá. O caso parece ter sucedido mesmo (pelo menos
assim me foi dito pela Angela Almeida), e surpreende-me que ninguém,
tanto quanto sei, lhe tenha pegado, até hoje. Veremos o que serei
capaz de fazer com ele: ainda vou no primeiro parágrafo. A história
parece fácil de contar, daquelas que se despacham em duas frases,
mas a simplicidade é enganosa: não se trata de uma reflexão sobre
um eu e um outro, mas da demonstração, anedótica
neste caso, de que o outro é, afinal, o próprio. A
anedota acabará por mudar-se em tragédia, mas a tragédia será,
ela mesma, cómica.
O
José Luís Judas não dá sinal de vida. Os recados ficam no
gravador, e resposta, nenhuma. E não sei se, rematado o projecto em
nada, como prevejo, o meu sentimento final virá a ser de decepção
ou de alívio. De facto, escrever para a televisão uma história de
D. João II não foi coisa que alguma vez me tivesse entusiasmado,
mas a remuneração do trabalho, nos termos e condições que propus
e que, em princípio, foram aceites, ter-me-ia livrado de
preocupações materiais, e não apenas para os tempos mais próximos.
Depois de tudo, e perante o silêncio do Judas, receio bem que
triunfe o meu cepticismo habitual, ficando a perder aquele que o tem,
eu.
Em
Schopenhauer y los anos salvajes de la filosofia de Rüdiger
Safranski encontro uma frase que gostaria de ter escrito: “O homem
é o mais perfeito dos animais domésticos”... O autor dela (se
outro não a disse antes) foi um professor da Universidade de
Göttingen, de nome Blumenbach. Uma outra frase, magnífica, mas esta
de Schleiermacher, que eu teria posto como abertura do Evangelho, sem
mais: “O que tem religião não é o que crê numa Escritura
Sagrada, mas o que não precisa dela e seria, ele próprio, capaz de
fazê-la.” (Tradução de tradução.)
A
arte não avança, move-se.
José Saramago, in Cadernos de Lanzarote
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