quarta-feira, 9 de março de 2022

Um tiro

[…]
Logo, em torno do mosteiro, a floresta inundou-se com os cantos dos rouxinóis que, feitos de amor e paixão, se elevavam das folhagens úmidas. E com eles tremia, chorava, dilatava-se o pobre coração humano.
Pouco a pouco, sem me dar conta, com a paixão de Cristo, com o canto do rouxinol, entrei no sono como a alma deve entrar no paraíso.
Não dormira nem uma hora quando acordei sobressaltando, assustado:
Zorba — exclamei, — você ouviu? Um tiro de pistola!
Mas Zorba já estava sentado na cama, fumando.
Não se preocupe, patrão. — disse, esforçando-se para conter a raiva; — deixe que eles ajustem as suas contas.
Ouvimos gritos no corredor, barulhos de chinelos arrastando, portas que se abriam e fechavam, e ao longe os gemidos de um homem ferido.
Saltei da cama e abri a porta. Um velho sequinho surgiu diante de mim. Estendeu o braço, como para me impedir a passagem. Trazia um barrete branco pontudo e camisa branca que lhe batia nos joelhos.
Quem é você?
O bispo... — respondeu, e sua voz tremia.
Quase estourei no riso. Um bispo? Onde estavam seus paramentos: casula de ouro, mitra, báculo, pedrarias multicolores?...
Era a primeira vez que eu via um bispo de camisola.
Que tiro foi esse, Monsenhor?
Não sei, não sei — balbuciou, levando-me delicadamente para dentro do quarto.
Da cama, Zorba estourou de rir:
Está com medo, padrezinho? — fez ele. — entre, venha, pobre velho. Nós não somos monges, não tenha medo.
Zorba — disse a meia-voz, — fale com mais respeito: é o bispo.
Meu velho, de camisola de dormir ninguém é bispo. Entre, estou falando!
Levantou-se, tomou-lhe o braço, fê-lo entrar e fechou a porta.
Tirou da sacola uma garrafa de rum e encheu um cálice.
Beba, meu velho — disse ele, — isto vai renovar-lhe as tripas!
O velhinho esvaziou o copo e recobrou o ânimo. Sentou-se em minha cama, encostado à parede.
Reverendíssimo Padre — disse eu, — que tiro foi aquele?
Não sei, meu filho... trabalhei até meia-noite e tinha ido me deitar quando ouvi, ao lado, da cela de Pater Dométios...
Ah! Ah! — fez Zorba, às gargalhadas. — bem que você tinha razão, Zaharia!
O bispo baixou a cabeça.
Deve ter sido algum ladrão — murmurou.
No corredor, cessara a confusão e o mosteiro mergulhou novamente no silêncio. Com seus bondosos olhinhos espantados, o bispo me olhou, com ar suplicante:
Está com sono, meu filho? — perguntou-me.
Senti que não queria voltar para a cela e ficar só. Estava com medo.
Não — respondi-lhe, — não tenho sono, fique.
Começamos a conversar. Zorba, apoiado ao travesseiro, enrolava um cigarro.
Você parece um jovem culto — fez o velhinho. — aqui não há com quem conversar. Eu tenho três teorias que me amenizam a vida.
Gostaria de expô-las a você, meu filho.
Sem esperar a resposta, começou:
Minha primeira teoria é esta: as formas das flores tem influência sobre suas cores; as cores influem nas suas propriedades. É assim que cada flor exerce uma ação diferente sobre o corpo do homem, e, portanto, sobre a alma. É por isso que se deve estar alerta ao atravessar um campo florido.
Calou-se como se aguardasse minha opinião. Eu via o velhinho passear no campo florido, contemplando, com um arrepio secreto, a terra, as flores, sua forma e sua cor. O coitado devia tremer de um temor místico: na primavera, o campo estaria povoado de anjos e demônios multicores.
Ouça agora a minha segunda teoria: toda ideia que possui uma influência verdadeira possui também uma existência verdadeira.
Ela está presente. Não circula invisível no ar. Tem um corpo verdadeiro — olhos, boca, pés, barriga. É homem ou mulher, persegue homens ou mulheres. Eis por que diz o evangelho: “O verbo se fez carne...”
Olhou-me de novo ansioso.
Minha terceira teoria — disse depressa, não podendo suportar o meu silêncio — é esta: há eternidade, mesmo em nossa vida efêmera, mas é-nos muito difícil descobri-la sozinhos. As preocupações quotidianas nos desviam. Somente alguns, os seres de elite, conseguem viver a eternidade, mesmo em sua vida efêmera. Como os demais se perderiam. Deus por piedade lhes mandou a religião — e assim o vulgo pode também viver a eternidade.
Terminara e estava visivelmente aliviado por ter falado.
Levantou os olhinhos sem pestanas e olhou-me sorrindo. Como se dissesse: “Eis aí, dou-lhe tudo o que tenho, tome-o.” fiquei emocionado com esse pobre velho que me oferecia assim, de bom grado, mal me conhecera, os frutos de toda a sua vida.
Ele tinha lágrimas nos olhos.
Que pensa de minhas teorias? — perguntou, tomando-me a mão entre as suas e me fitando. Dir-se-ia que minha resposta iria lhe revelar se sua vida tinha ou não servido para alguma coisa.
Eu sabia que acima da verdade existe outro dever muito mais importante e muito mais humano.
Essas teorias podem salvar muitas almas — respondi.
Iluminou-se a fisionomia do bispo. Era a justificação de toda a sua vida.
Obrigado, meu filho — sussurrou ele, apertando-me ternamente a mão.
Zorba saltou então de seu canto:
Tenho uma quarta teoria! — exclamou.
Olhei-o inquieto. O bispo virou-se para ele;
Fale, meu filho, que sua ideia seja bendita! Qual é a teoria?
Que dois e dois são quatro! — fez Zorba gravemente.
O bispo olhou para ele, pasmado.
E ainda uma quinta teoria, meu bom velho — prosseguiu Zorba: — que dois e dois não são quatro. Escolha a que mais lhe convém!
Não compreendo — balbuciou o bispo, interrogando-me com o olhar.
Nem eu! — fez Zorba, rindo.
Virei-me para o velhinho espantado e mudei de assunto:
A que estudos se dedica aqui no mosteiro? — perguntei-lhe.
Copio os velhos manuscritos do convento, meu filho, e estes dias estou recolhendo todos os epítetos com que a nossa Igreja ornamentou a Virgem.
Suspirou.
Estou velho — disse, — Nada mais posso fazer. Consolo-me inventariando todos esses ornamentos da Virgem e esqueço as misérias do mundo.
Apoiou-se no travesseiro, fechou os olhos e se pôs a murmurar, como se delirasse:
Rosa imperecível, Terra fecunda, Vinha, Fonte, Manancial de Milagres, Escada para o Céu, Fragata, Chave do Paraíso, Aurora, Lâmpada Eterna, Coluna Ardente, Torre Imutável, Fortaleza Inexpugnável, Consolação, Alegria, Luz dos Cegos, Mãe dos órfãos, Mesa, Alimento, Paz, Serenidade, Mel e Leite...”
Ele delira, o coitado... — disse Zorba a meia-voz; — vou cobri-lo para que não sinta frio...
Levantou-se, pôs sobre ele uma coberta e ajeitou o travesseiro.
Ouvi dizer que há setenta e sete espécies de loucura; está é a número setenta e oito.
Raiava o dia. Ouviu-se a simandra. Debrucei-me à janelinha. Às primeiras claridades da aurora, vi um monge magro, longo véu preto à cabeça, contornar lentamente o pátio, batendo com um martelinho numa comprida prancha de madeira espantosamente melodiosa.
Cheia de doçura, harmonia e apelo, a voz da simandra ecoava no ar matinal. Calara-se o rouxinol e começava nas árvores o gorjeio dos primeiros pássaros.
Ouvia, encantado, a doce e sugestiva melodia da simandra. Como será, pensava eu, que um ritmo elevado de vida, mesmo na decadência, pode conservar toda a sua forma exterior, imponente e cheia de nobreza! A alma se evade, mas deixa intacta sua morada a qual, desde há séculos, ela modelava, vasta, complicada, para aí se instalar à vontade.
As maravilhosas catedrais que encontramos nas grandes cidades barulhentas e ateias, pensava eu, são as tais conchas vazias.
Monstros pré-históricos de que só resta o esqueleto, roído pelas chuvas e pelo sol.
Bateram à porta de nossa cela. Ouvimos a voz gutural do padre hospitaleiro:
Vamos, irmãos, levantem-se para as matinas!
Zorba pulou:
Que foi esse tiro de pistola? — exclamou fora de si.
Esperou um pouco. Silêncio. O monge devia, entretanto, estar ainda perto da porta, porque se ouvia sua respiração ofegante. Zorba bateu o pé:
Que é que foi esse tiro de pistola? — tornou a perguntar, furioso.
Ouvimos passos se afastando rapidamente. De um salto, Zorba chegou à porta e abriu-a:
Cambada de imbecis! — disse ele, cuspindo para o monge que ia fugindo. — padres, monges, freiras, tesoureiros, sacristãos, cuspo em todos vocês!
Vamos embora — disse eu, — aqui há cheiro de sangue.
Se fosse só de sangue! — grunhiu Zorba. — vá você às matinas se quiser, patrão. Eu cá vou farejar por aí para ver se descubro alguma coisa.
Vamos embora! — disse de novo, com repugnância, — e faça-me o favor de não ir meter o nariz onde não foi chamado.
Mas é justamente onde eu quero meter o meu nariz! — gritou Zorba.
Refletiu um segundo e sorriu, malicioso:
O Diabo nos presta um belo serviço! — disse. — acho que ele pôs as coisas no devido lugar. Sabe, patrão, quanto pode custar ao mosteiro esse tiro? Sete mil notas!
Descemos para o pátio. Perfumes de flores, doçura matinal, felicidade paradisíaca. Zaharia nos esperava. Correu para nós e segurou no braço de Zorba.
Irmão Canavarro — cochichou trêmulo, — venha, vamos embora!
Que é que foi esse tiro? Mataram alguém? Vamos, monge, fale ou estrangulo você!
O queixo do monge tremia. Olhou em volta. O pátio deserto, as celas fechadas; da igreja aberta escapava, em ondas, a melodia.
Sigam-me os dois — murmurou. — Sodoma e Gomorra!
Esgueirando-nos ao longo das paredes, atravessamos o pátio e deixamos o jardim. A uns cem metros do mosteiro estava o cemitério.
Entramos.
Saltamos por cima dos túmulos. Zaharia abriu a porta da capelinha e fomos atrás. Ao centro, sobre uma esteira, um corpo jazia, envolto num hábito. Ardia uma vela perto da cabeça, outras aos pés.
Debrucei-me sobre o morto.
O fradinho! — murmurei estremecendo. — o fradinho louro do pai Dométios!
Na porta do santuário brilhava o Arcanjo Miguel, de asas abertas, o gládio desembainhado e calçado de sandálias vermelhas.
Arcanjo Miguel — gritou o monge, — lance fogo e chamas, queime-os todos! Arcanjo Miguel, dê um pontapé, saia fora do seu ícone! Levante o gládio, bata! Você não ouviu o tiro de pistola?
Quem matou? Quem? Dométios? Fale, seu barbudo!
O monge escapou das mãos de Zorba, caindo em cheio aos pés do Arcanjo. Ficou um bom momento imóvel, a cabeça levantada, a boca fechada, como se espreitasse algo.
De súbito, levantou-se todo alegre:
Vou queimá-los! — declarou num ar resoluto. — o Arcanjo se mexeu, eu vi, ele me fez um sinal!
Aproximou-se do ícone e colou os grossos lábios no gládio do Arcanjo.
Deus seja Louvado! — disse. — estou aliviado.
Zorba pegou de novo o monge por debaixo dos braços.
Venha cá, Zaharia — disse ele; — vamos, você vai fazer o que eu disser.
E virando-se para mim:
Me dê dinheiro, patrão, eu mesmo vou assinar os papéis. Lá são todos uns lobos, você é um cordeiro, eles vão comer você. Deixe eu agir. Não se meta, que eu pego os grandes porcos. Ao meio-dia, nós vamos embora, com a floresta no bolso. Venha, meu velho Zaharia!
Deslizaram furtivamente para o mosteiro. Fui passear debaixo dos pinheiros.
O sol já estava alto, o orvalho cintilava nas folhas. Um melro voou diante de mim, pousou no galho de uma pereira selvagem, agitou a cauda, abriu o bico, olhou-me e assobiou duas ou três vezes com ar zombeteiro.
Através dos pinheiros eu via no pátio os monges que saíam em fileiras, curvados, véus negros aos ombros. O ofício terminara, iam agora para o refeitório.
Que pena, pensei, que uma tal austeridade e uma tal beleza já não mais tenham alma!”
Estava fatigado, não dormira bem; deitei-me na relva. As violetas selvagens, as giestas, os alecrins, as salvas recendiam.
Esfomeados, zumbiam os insetos, introduzindo-se nas flores, como piratas, para sugar o mel. Ao longe, brilhavam as montanhas, transparentes, serenas, como uma neblina movediça na luz ardente do sol.
Fechei os olhos, tranquilo. Apoderou-se de mim uma alegria discreta, misteriosa — como se todo esse milagre verde que me envolvia fosse o paraíso, como se todo esse frescor, esta leveza, esta sóbria embriaguez fossem Deus. Deus a cada instante muda de face.
Feliz aquele que pode reconhecê-lo sob cada uma de suas feições!
Ora é um copo de água fresca, ora um filho que brinca em nossos joelhos; é uma mulher feiticeira ou simplesmente um passeio matinal.
Pouco a pouco, em minha volta, sem mudar de forma, tudo se tornou um sonho. Eu era feliz. Terra e Paraíso formavam um todo.
Uma flor do campo, com uma grande gota de mel no coração — que minha alma, uma abelha selvagem, saqueava: assim me parecia a vida.
De repente, vi-me brutalmente arrancado dessa beatitude. Ouvi passos e cochichos atrás de mim. No mesmo instante, uma voz alegre:
Patrão, vamos embora!
Zorba estava diante de mim e seus olhos brilhavam com um lampejo diabólico.
Vamos partir? — fiz eu com alívio. — tudo terminou?
Tudo! — disse Zorba, batendo no bolso superior do casaco, — eu tenho aqui dentro a floresta. Que ela nos traga sorte! E aqui estão as sete mil balas que Lola nos levou!
Tirou do bolso interior um maço de notas.
Tome — disse, — pago minhas dívidas, não me envergonha mais diante de você. Aí estão também as meias, as bolsas, os perfumes e a sombrinha de Madame Bubulina. E também os amendoins do papagaio! E a salva que eu lhe trouxe, ainda por cima!
Dou-lhe tudo de presente, Zorba — disse, — vá acender um círio do seu tamanho à Virgem que você ofendeu.
Zorba voltou-se. Pater Zaharia vinha vindo, com o hábito bolorento e imundo, botas acalcanhadas. Puxava os dois animais pela rédea.
Zorba mostrou-lhe o bolo de notas.
Vamos repartir, Pater José — disse ele. — você compra cem quilos de bacalhau e come, meu pobre velho, come até rebentar a pança. Até que vomite e se liberte! Venha, abra a mão.
O monge pegou as notas sebentas e escondeu-as no peito.
Vou comprar petróleo — disse.
Zorba baixou a voz e falou ao ouvido do monge:
É preciso que seja noite, que todo o mundo esteja dormindo e o vento sopre forte — recomendou-lhe. — você vai molhar as paredes em todos os cantos. Basta embeber de petróleo os trapos, os esfregões, a estopa, o que você encontrar, e tocar fogo. Compreendeu?
O monge tremia.
Mas, não trema assim, meu velho! O arcanjo não lhe deu a ordem? Então, petróleo, muito petróleo... e passe bem!
Montamos. Deitei um último olhar ao mosteiro.
Soube de alguma coisa Zorba? — perguntei.
Sobre o tiro? Não se preocupe, patrão. Zaharia bem que tem razão: Sodoma e Gomorra! Dométios matou o belo fradinho. Pronto!
Dométios? Por quê?
Não vá remexer nisso, patrão, eu peço, é só mau cheiro e podridão.
Voltou-se para o mosteiro. Os monges saíam do refeitório, cabeças baixas, mãos cruzadas, e iam se fechar em suas celas.
Vossa maldição caia sobre mim, santos padres! — bradou ele.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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