[…]
Logo,
em torno do mosteiro, a floresta inundou-se com os cantos dos
rouxinóis que, feitos de amor e paixão, se elevavam das folhagens
úmidas. E com eles tremia, chorava, dilatava-se o pobre coração
humano.
Pouco
a pouco, sem me dar conta, com a paixão de Cristo, com o canto do
rouxinol, entrei no sono como a alma deve entrar no paraíso.
Não
dormira nem uma hora quando acordei sobressaltando, assustado:
— Zorba
— exclamei, — você ouviu? Um tiro de pistola!
Mas
Zorba já estava sentado na cama, fumando.
— Não
se preocupe, patrão. — disse, esforçando-se para conter a raiva;
— deixe que eles ajustem as suas contas.
Ouvimos
gritos no corredor, barulhos de chinelos arrastando, portas que se
abriam e fechavam, e ao longe os gemidos de um homem ferido.
Saltei
da cama e abri a porta. Um velho sequinho surgiu diante de mim.
Estendeu o braço, como para me impedir a passagem. Trazia um barrete
branco pontudo e camisa branca que lhe batia nos joelhos.
— Quem
é você?
— O
bispo... — respondeu, e sua voz tremia.
Quase
estourei no riso. Um bispo? Onde estavam seus paramentos: casula de
ouro, mitra, báculo, pedrarias multicolores?...
Era
a primeira vez que eu via um bispo de camisola.
— Que
tiro foi esse, Monsenhor?
— Não
sei, não sei — balbuciou, levando-me delicadamente para dentro do
quarto.
Da
cama, Zorba estourou de rir:
— Está
com medo, padrezinho? — fez ele. — entre, venha, pobre velho. Nós
não somos monges, não tenha medo.
— Zorba
— disse a meia-voz, — fale com mais respeito: é o bispo.
— Meu
velho, de camisola de dormir ninguém é bispo. Entre, estou falando!
Levantou-se,
tomou-lhe o braço, fê-lo entrar e fechou a porta.
Tirou
da sacola uma garrafa de rum e encheu um cálice.
— Beba,
meu velho — disse ele, — isto vai renovar-lhe as tripas!
O
velhinho esvaziou o copo e recobrou o ânimo. Sentou-se em minha
cama, encostado à parede.
— Reverendíssimo
Padre — disse eu, — que tiro foi aquele?
— Não
sei, meu filho... trabalhei até meia-noite e tinha ido me deitar
quando ouvi, ao lado, da cela de Pater Dométios...
— Ah!
Ah! — fez Zorba, às gargalhadas. — bem que você tinha razão,
Zaharia!
O
bispo baixou a cabeça.
— Deve
ter sido algum ladrão — murmurou.
No
corredor, cessara a confusão e o mosteiro mergulhou novamente no
silêncio. Com seus bondosos olhinhos espantados, o bispo me olhou,
com ar suplicante:
— Está
com sono, meu filho? — perguntou-me.
Senti
que não queria voltar para a cela e ficar só. Estava com medo.
— Não
— respondi-lhe, — não tenho sono, fique.
Começamos
a conversar. Zorba, apoiado ao travesseiro, enrolava um cigarro.
— Você
parece um jovem culto — fez o velhinho. — aqui não há com quem
conversar. Eu tenho três teorias que me amenizam a vida.
Gostaria
de expô-las a você, meu filho.
Sem
esperar a resposta, começou:
— Minha
primeira teoria é esta: as formas das flores tem influência sobre
suas cores; as cores influem nas suas propriedades. É assim que cada
flor exerce uma ação diferente sobre o corpo do homem, e, portanto,
sobre a alma. É por isso que se deve estar alerta ao atravessar um
campo florido.
Calou-se
como se aguardasse minha opinião. Eu via o velhinho passear no campo
florido, contemplando, com um arrepio secreto, a terra, as flores,
sua forma e sua cor. O coitado devia tremer de um temor místico: na
primavera, o campo estaria povoado de anjos e demônios multicores.
— Ouça
agora a minha segunda teoria: toda ideia que possui uma influência
verdadeira possui também uma existência verdadeira.
Ela
está presente. Não circula invisível no ar. Tem um corpo
verdadeiro — olhos, boca, pés, barriga. É homem ou mulher,
persegue homens ou mulheres. Eis por que diz o evangelho: “O verbo
se fez carne...”
Olhou-me
de novo ansioso.
— Minha
terceira teoria — disse depressa, não podendo suportar o meu
silêncio — é esta: há eternidade, mesmo em nossa vida efêmera,
mas é-nos muito difícil descobri-la sozinhos. As preocupações
quotidianas nos desviam. Somente alguns, os seres de elite, conseguem
viver a eternidade, mesmo em sua vida efêmera. Como os demais se
perderiam. Deus por piedade lhes mandou a religião — e assim o
vulgo pode também viver a eternidade.
Terminara
e estava visivelmente aliviado por ter falado.
Levantou
os olhinhos sem pestanas e olhou-me sorrindo. Como se dissesse: “Eis
aí, dou-lhe tudo o que tenho, tome-o.” fiquei emocionado com esse
pobre velho que me oferecia assim, de bom grado, mal me conhecera, os
frutos de toda a sua vida.
Ele
tinha lágrimas nos olhos.
— Que
pensa de minhas teorias? — perguntou, tomando-me a mão entre as
suas e me fitando. Dir-se-ia que minha resposta iria lhe revelar se
sua vida tinha ou não servido para alguma coisa.
Eu
sabia que acima da verdade existe outro dever muito mais importante e
muito mais humano.
— Essas
teorias podem salvar muitas almas — respondi.
Iluminou-se
a fisionomia do bispo. Era a justificação de toda a sua vida.
— Obrigado,
meu filho — sussurrou ele, apertando-me ternamente a mão.
Zorba
saltou então de seu canto:
— Tenho
uma quarta teoria! — exclamou.
Olhei-o
inquieto. O bispo virou-se para ele;
— Fale,
meu filho, que sua ideia seja bendita! Qual é a teoria?
— Que
dois e dois são quatro! — fez Zorba gravemente.
O
bispo olhou para ele, pasmado.
— E
ainda uma quinta teoria, meu bom velho — prosseguiu Zorba: — que
dois e dois não são quatro. Escolha a que mais lhe convém!
— Não
compreendo — balbuciou o bispo, interrogando-me com o olhar.
— Nem
eu! — fez Zorba, rindo.
Virei-me
para o velhinho espantado e mudei de assunto:
— A
que estudos se dedica aqui no mosteiro? — perguntei-lhe.
— Copio
os velhos manuscritos do convento, meu filho, e estes dias estou
recolhendo todos os epítetos com que a nossa Igreja ornamentou a
Virgem.
Suspirou.
— Estou
velho — disse, — Nada mais posso fazer. Consolo-me inventariando
todos esses ornamentos da Virgem e esqueço as misérias do mundo.
Apoiou-se
no travesseiro, fechou os olhos e se pôs a murmurar, como se
delirasse:
“Rosa
imperecível, Terra fecunda, Vinha, Fonte, Manancial de Milagres,
Escada para o Céu, Fragata, Chave do Paraíso, Aurora, Lâmpada
Eterna, Coluna Ardente, Torre Imutável, Fortaleza Inexpugnável,
Consolação, Alegria, Luz dos Cegos, Mãe dos órfãos, Mesa,
Alimento, Paz, Serenidade, Mel e Leite...”
— Ele
delira, o coitado... — disse Zorba a meia-voz; — vou cobri-lo
para que não sinta frio...
Levantou-se,
pôs sobre ele uma coberta e ajeitou o travesseiro.
— Ouvi
dizer que há setenta e sete espécies de loucura; está é a número
setenta e oito.
Raiava
o dia. Ouviu-se a simandra. Debrucei-me à janelinha. Às primeiras
claridades da aurora, vi um monge magro, longo véu preto à cabeça,
contornar lentamente o pátio, batendo com um martelinho numa
comprida prancha de madeira espantosamente melodiosa.
Cheia
de doçura, harmonia e apelo, a voz da simandra ecoava no ar matinal.
Calara-se o rouxinol e começava nas árvores o gorjeio dos primeiros
pássaros.
Ouvia,
encantado, a doce e sugestiva melodia da simandra. Como será,
pensava eu, que um ritmo elevado de vida, mesmo na decadência, pode
conservar toda a sua forma exterior, imponente e cheia de nobreza! A
alma se evade, mas deixa intacta sua morada a qual, desde há
séculos, ela modelava, vasta, complicada, para aí se instalar à
vontade.
As
maravilhosas catedrais que encontramos nas grandes cidades
barulhentas e ateias, pensava eu, são as tais conchas vazias.
Monstros
pré-históricos de que só resta o esqueleto, roído pelas chuvas e
pelo sol.
Bateram
à porta de nossa cela. Ouvimos a voz gutural do padre hospitaleiro:
— Vamos,
irmãos, levantem-se para as matinas!
Zorba
pulou:
— Que
foi esse tiro de pistola? — exclamou fora de si.
Esperou
um pouco. Silêncio. O monge devia, entretanto, estar ainda perto da
porta, porque se ouvia sua respiração ofegante. Zorba bateu o pé:
— Que
é que foi esse tiro de pistola? — tornou a perguntar, furioso.
Ouvimos
passos se afastando rapidamente. De um salto, Zorba chegou à porta e
abriu-a:
— Cambada
de imbecis! — disse ele, cuspindo para o monge que ia fugindo. —
padres, monges, freiras, tesoureiros, sacristãos, cuspo em todos
vocês!
— Vamos
embora — disse eu, — aqui há cheiro de sangue.
— Se
fosse só de sangue! — grunhiu Zorba. — vá você às matinas se
quiser, patrão. Eu cá vou farejar por aí para ver se descubro
alguma coisa.
— Vamos
embora! — disse de novo, com repugnância, — e faça-me o favor
de não ir meter o nariz onde não foi chamado.
— Mas
é justamente onde eu quero meter o meu nariz! — gritou Zorba.
Refletiu
um segundo e sorriu, malicioso:
— O
Diabo nos presta um belo serviço! — disse. — acho que ele pôs
as coisas no devido lugar. Sabe, patrão, quanto pode custar ao
mosteiro esse tiro? Sete mil notas!
Descemos
para o pátio. Perfumes de flores, doçura matinal, felicidade
paradisíaca. Zaharia nos esperava. Correu para nós e segurou no
braço de Zorba.
— Irmão
Canavarro — cochichou trêmulo, — venha, vamos embora!
— Que
é que foi esse tiro? Mataram alguém? Vamos, monge, fale ou
estrangulo você!
O
queixo do monge tremia. Olhou em volta. O pátio deserto, as celas
fechadas; da igreja aberta escapava, em ondas, a melodia.
— Sigam-me
os dois — murmurou. — Sodoma e Gomorra!
Esgueirando-nos
ao longo das paredes, atravessamos o pátio e deixamos o jardim. A
uns cem metros do mosteiro estava o cemitério.
Entramos.
Saltamos
por cima dos túmulos. Zaharia abriu a porta da capelinha e fomos
atrás. Ao centro, sobre uma esteira, um corpo jazia, envolto num
hábito. Ardia uma vela perto da cabeça, outras aos pés.
Debrucei-me
sobre o morto.
— O
fradinho! — murmurei estremecendo. — o fradinho louro do pai
Dométios!
Na
porta do santuário brilhava o Arcanjo Miguel, de asas abertas, o
gládio desembainhado e calçado de sandálias vermelhas.
— Arcanjo
Miguel — gritou o monge, — lance fogo e chamas, queime-os todos!
Arcanjo Miguel, dê um pontapé, saia fora do seu ícone! Levante o
gládio, bata! Você não ouviu o tiro de pistola?
— Quem
matou? Quem? Dométios? Fale, seu barbudo!
O
monge escapou das mãos de Zorba, caindo em cheio aos pés do
Arcanjo. Ficou um bom momento imóvel, a cabeça levantada, a boca
fechada, como se espreitasse algo.
De
súbito, levantou-se todo alegre:
— Vou
queimá-los! — declarou num ar resoluto. — o Arcanjo se mexeu, eu
vi, ele me fez um sinal!
Aproximou-se
do ícone e colou os grossos lábios no gládio do Arcanjo.
— Deus
seja Louvado! — disse. — estou aliviado.
Zorba
pegou de novo o monge por debaixo dos braços.
— Venha
cá, Zaharia — disse ele; — vamos, você vai fazer o que eu
disser.
E
virando-se para mim:
— Me
dê dinheiro, patrão, eu mesmo vou assinar os papéis. Lá são
todos uns lobos, você é um cordeiro, eles vão comer você. Deixe
eu agir. Não se meta, que eu pego os grandes porcos. Ao meio-dia,
nós vamos embora, com a floresta no bolso. Venha, meu velho Zaharia!
Deslizaram
furtivamente para o mosteiro. Fui passear debaixo dos pinheiros.
O
sol já estava alto, o orvalho cintilava nas folhas. Um melro voou
diante de mim, pousou no galho de uma pereira selvagem, agitou a
cauda, abriu o bico, olhou-me e assobiou duas ou três vezes com ar
zombeteiro.
Através
dos pinheiros eu via no pátio os monges que saíam em fileiras,
curvados, véus negros aos ombros. O ofício terminara, iam agora
para o refeitório.
“Que
pena, pensei, que uma tal austeridade e uma tal beleza já não mais
tenham alma!”
Estava
fatigado, não dormira bem; deitei-me na relva. As violetas
selvagens, as giestas, os alecrins, as salvas recendiam.
Esfomeados,
zumbiam os insetos, introduzindo-se nas flores, como piratas, para
sugar o mel. Ao longe, brilhavam as montanhas, transparentes,
serenas, como uma neblina movediça na luz ardente do sol.
Fechei
os olhos, tranquilo. Apoderou-se de mim uma alegria discreta,
misteriosa — como se todo esse milagre verde que me envolvia fosse
o paraíso, como se todo esse frescor, esta leveza, esta sóbria
embriaguez fossem Deus. Deus a cada instante muda de face.
Feliz
aquele que pode reconhecê-lo sob cada uma de suas feições!
Ora
é um copo de água fresca, ora um filho que brinca em nossos
joelhos; é uma mulher feiticeira ou simplesmente um passeio matinal.
Pouco
a pouco, em minha volta, sem mudar de forma, tudo se tornou um sonho.
Eu era feliz. Terra e Paraíso formavam um todo.
Uma
flor do campo, com uma grande gota de mel no coração — que minha
alma, uma abelha selvagem, saqueava: assim me parecia a vida.
De
repente, vi-me brutalmente arrancado dessa beatitude. Ouvi passos e
cochichos atrás de mim. No mesmo instante, uma voz alegre:
— Patrão,
vamos embora!
Zorba
estava diante de mim e seus olhos brilhavam com um lampejo diabólico.
— Vamos
partir? — fiz eu com alívio. — tudo terminou?
— Tudo!
— disse Zorba, batendo no bolso superior do casaco, — eu tenho
aqui dentro a floresta. Que ela nos traga sorte! E aqui estão as
sete mil balas que Lola nos levou!
Tirou
do bolso interior um maço de notas.
— Tome
— disse, — pago minhas dívidas, não me envergonha mais diante
de você. Aí estão também as meias, as bolsas, os perfumes e a
sombrinha de Madame Bubulina. E também os amendoins do papagaio! E a
salva que eu lhe trouxe, ainda por cima!
— Dou-lhe
tudo de presente, Zorba — disse, — vá acender um círio do seu
tamanho à Virgem que você ofendeu.
Zorba
voltou-se. Pater Zaharia vinha vindo, com o hábito bolorento e
imundo, botas acalcanhadas. Puxava os dois animais pela rédea.
Zorba
mostrou-lhe o bolo de notas.
— Vamos
repartir, Pater José — disse ele. — você compra cem quilos de
bacalhau e come, meu pobre velho, come até rebentar a pança. Até
que vomite e se liberte! Venha, abra a mão.
O
monge pegou as notas sebentas e escondeu-as no peito.
— Vou
comprar petróleo — disse.
Zorba
baixou a voz e falou ao ouvido do monge:
— É
preciso que seja noite, que todo o mundo esteja dormindo e o vento
sopre forte — recomendou-lhe. — você vai molhar as paredes em
todos os cantos. Basta embeber de petróleo os trapos, os esfregões,
a estopa, o que você encontrar, e tocar fogo. Compreendeu?
O
monge tremia.
— Mas,
não trema assim, meu velho! O arcanjo não lhe deu a ordem? Então,
petróleo, muito petróleo... e passe bem!
Montamos.
Deitei um último olhar ao mosteiro.
— Soube
de alguma coisa Zorba? — perguntei.
— Sobre
o tiro? Não se preocupe, patrão. Zaharia bem que tem razão: Sodoma
e Gomorra! Dométios matou o belo fradinho. Pronto!
— Dométios?
Por quê?
— Não
vá remexer nisso, patrão, eu peço, é só mau cheiro e podridão.
Voltou-se
para o mosteiro. Os monges saíam do refeitório, cabeças baixas,
mãos cruzadas, e iam se fechar em suas celas.
— Vossa
maldição caia sobre mim, santos padres! — bradou ele.
Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego
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