Paris,
meados de junho.
Ela
caminhava fingindo pressa com suas sapatilhas cor de rato para a aula
do monsieur Jean-Baptiste Gautier (figura que oscilava entre o
peculiar e o assustador, com sua caligrafia de incrível
homogeneidade e exercícios de gramática cujas frases eram
unanimemente extraídas de Le rouge et le noir, de Stendhal).
Ao
longo do caminho, quase nada podia ocupar tanto seus olhos quanto a
permanente lembrança dos seis andares de escada que ainda a
separavam de sua tão estimada grammaire française. O mal de
estar todo dia em uma cidade linda é que “todo dia” e “linda”
nunca aprenderam a conviver na mesma frase.
Virou
no Boulevard Raspail, atravessou a Rue Delambre com passinhos
saltitados nos últimos metros, com medo do smart que vinha
apressado, conduzido pela mulher de chapeau beige com ar de
louca. Calçada. Voltou aos passos tão corridos quanto as horas em
tarde de chuva.
Suspirou,
pensando nas suas dificuldades com l’imparfait du subjonctif
e nas dificuldades do monsieur Jean-Baptiste Gautier em compreender
que nem todo mundo nascia francophone de alma.
De
repente.
De
repente.
De
repente, não havia mais langue française.
Não
existia mais barulho de smart.
Não
existia mais cheiro de Paris.
Não
existia mais escada de madeira rangendo seus minutos de atraso.
O
mundo silenciou quando ela a viu: a redonda e incrivelmente brilhante
tarte tatin.
Nada
mais existia além das gordas fatias de maçã assada. E da cor do
açúcar transformado em caramelo. E de cada uma das camadas da massa
folhada onde repousava recheio tão abençoado numa manhã de
quinta-feira.
Com
os olhos parados, imaginava o som das maçãs entre seus dentes e o
tato das migalhas da massa folhada que sobrariam nos cantos da boca
depois da primeira mordida. Mas nada era mais forte do que o cheiro
que ela sentia (não com o nariz, mas com os olhos), que não era da
maçã, nem do caramelo, nem da massa. Era cheiro de segundos lentos
dissolvidos nas papilas gustativas.
De
fato, ela não via, nem ouvia, nem percebia nada além da torta. Nem
mesmo a mão que a segurava. Mão de dedos longos, mão quase magra,
que saía de um blazer verde-escuro de linho. Nem no Ray-Ban Wayfarer
(escondendo olhos verde-escuros na pele morena) harmônico com a
barba grossa. Nem nos tênis improváveis que coroavam de
ponta-cabeça aquela imagem semidivinal.
Nada,
nada além da visão da torta e olfato e paladar e audição e tato
imaginários.
Ela
não o viu. Mas ele viu as sapatilhas cor de rato que saltitaram, as
pernas bem menos finas que seus dedos, o vestido florido de algodão,
a bolsa marrom de alça longa pendurada no ombro e o cabelo claro e
liso preso num coque apressado que desmontara em parte na tal fuga do
smart.
Mas,
mais do que tudo, ele acompanhou seus olhos, cuja cor ficava entre o
caramelo que cobria a maçã e a bolsa de carteiro que repousava em
seu ombro. Olhos esses que se fixaram em sua torta havia quase meio
minuto. Ele estava parado e ela andava quase sem avançar, até que
chegou.
Ele
não tinha opção. Fosse pelo amor repentino entre a moça e a torta
ou pelo talvez quase amor repentino entre ele e a mecha de cabelo que
balançava, batendo no ombro branco. Esticou o braço exatamente
quando ela chegou, oferecendo-lhe em silêncio a torta que, por sorte
ou azar, nem tivera tempo de provar.
Foi
quando ela voltou à Terra. Barulho dos carros, cheiros, horários,
Jean-Baptiste Gautier e… ele. Caos. A torta, o braço esticado, a
cara certamente linda por trás dos óculos. No segundo seguinte,
percebeu o constrangimento de ter, sem querer, desejado tanto a torta
a ponto de o próprio dono saber que ela a merecia mais do que ele.
Baixou
os olhos. Riu devagar. Ele já ria fazia tempo. Ela agradeceu,
fazendo sinal de que não. Ele insistiu. Ela se manteve firme. Ele
perguntou “peut être la prochaine?” ou, no idioma dela,
“talvez a próxima?”. Ela “peut être… peut être”.
Sorriu e foi ao encontro do subjuntivo nas linhas de Stendhal, sem
torta nas mãos, mas com algo a mais nos olhos. Virou a cabeça para
trás, e ele ainda estava lá. Talvez estivesse também na próxima
quinta. De preferência, com duas tortas dessa vez.
Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor
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