quinta-feira, 10 de março de 2022

Tarte tatin à Paris

Paris, meados de junho.
Ela caminhava fingindo pressa com suas sapatilhas cor de rato para a aula do monsieur Jean-Baptiste Gautier (figura que oscilava entre o peculiar e o assustador, com sua caligrafia de incrível homogeneidade e exercícios de gramática cujas frases eram unanimemente extraídas de Le rouge et le noir, de Stendhal).
Ao longo do caminho, quase nada podia ocupar tanto seus olhos quanto a permanente lembrança dos seis andares de escada que ainda a separavam de sua tão estimada grammaire française. O mal de estar todo dia em uma cidade linda é que “todo dia” e “linda” nunca aprenderam a conviver na mesma frase.
Virou no Boulevard Raspail, atravessou a Rue Delambre com passinhos saltitados nos últimos metros, com medo do smart que vinha apressado, conduzido pela mulher de chapeau beige com ar de louca. Calçada. Voltou aos passos tão corridos quanto as horas em tarde de chuva.
Suspirou, pensando nas suas dificuldades com l’imparfait du subjonctif e nas dificuldades do monsieur Jean-Baptiste Gautier em compreender que nem todo mundo nascia francophone de alma.
De repente.
De repente.
De repente, não havia mais langue française.
Não existia mais barulho de smart.
Não existia mais cheiro de Paris.
Não existia mais escada de madeira rangendo seus minutos de atraso.
O mundo silenciou quando ela a viu: a redonda e incrivelmente brilhante tarte tatin.
Nada mais existia além das gordas fatias de maçã assada. E da cor do açúcar transformado em caramelo. E de cada uma das camadas da massa folhada onde repousava recheio tão abençoado numa manhã de quinta-feira.
Com os olhos parados, imaginava o som das maçãs entre seus dentes e o tato das migalhas da massa folhada que sobrariam nos cantos da boca depois da primeira mordida. Mas nada era mais forte do que o cheiro que ela sentia (não com o nariz, mas com os olhos), que não era da maçã, nem do caramelo, nem da massa. Era cheiro de segundos lentos dissolvidos nas papilas gustativas.
De fato, ela não via, nem ouvia, nem percebia nada além da torta. Nem mesmo a mão que a segurava. Mão de dedos longos, mão quase magra, que saía de um blazer verde-escuro de linho. Nem no Ray-Ban Wayfarer (escondendo olhos verde-escuros na pele morena) harmônico com a barba grossa. Nem nos tênis improváveis que coroavam de ponta-cabeça aquela imagem semidivinal.
Nada, nada além da visão da torta e olfato e paladar e audição e tato imaginários.
Ela não o viu. Mas ele viu as sapatilhas cor de rato que saltitaram, as pernas bem menos finas que seus dedos, o vestido florido de algodão, a bolsa marrom de alça longa pendurada no ombro e o cabelo claro e liso preso num coque apressado que desmontara em parte na tal fuga do smart.
Mas, mais do que tudo, ele acompanhou seus olhos, cuja cor ficava entre o caramelo que cobria a maçã e a bolsa de carteiro que repousava em seu ombro. Olhos esses que se fixaram em sua torta havia quase meio minuto. Ele estava parado e ela andava quase sem avançar, até que chegou.
Ele não tinha opção. Fosse pelo amor repentino entre a moça e a torta ou pelo talvez quase amor repentino entre ele e a mecha de cabelo que balançava, batendo no ombro branco. Esticou o braço exatamente quando ela chegou, oferecendo-lhe em silêncio a torta que, por sorte ou azar, nem tivera tempo de provar.
Foi quando ela voltou à Terra. Barulho dos carros, cheiros, horários, Jean-Baptiste Gautier e… ele. Caos. A torta, o braço esticado, a cara certamente linda por trás dos óculos. No segundo seguinte, percebeu o constrangimento de ter, sem querer, desejado tanto a torta a ponto de o próprio dono saber que ela a merecia mais do que ele.
Baixou os olhos. Riu devagar. Ele já ria fazia tempo. Ela agradeceu, fazendo sinal de que não. Ele insistiu. Ela se manteve firme. Ele perguntou “peut être la prochaine?” ou, no idioma dela, “talvez a próxima?”. Ela “peut être… peut être”. Sorriu e foi ao encontro do subjuntivo nas linhas de Stendhal, sem torta nas mãos, mas com algo a mais nos olhos. Virou a cabeça para trás, e ele ainda estava lá. Talvez estivesse também na próxima quinta. De preferência, com duas tortas dessa vez.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

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