quinta-feira, 10 de março de 2022

O álbum branco | 12

Certos distúrbios orgânicos do sistema nervoso central são caracterizados por remissões periódicas, pela aparente recuperação completa dos nervos afetados. Parece que é isso que acontece: à medida que a camada que reveste um nervo inflama e endurece como tecido cicatrizado, bloqueando a passagem dos impulsos neurais, o sistema nervoso muda aos poucos o circuito dele e busca outros nervos não afetados para carregar a mesma mensagem. Durante os anos em que achei necessário revisar meu circuito mental, descobri que não estava mais interessada em saber se a mulher no beiral da janela do décimo sexto andar pulou ou não pulou, nem em saber por quê. Só estava interessada na imagem dela na mente: o cabelo incandescente sob os holofotes, os dedos curvados na pedra do beiral.
Sob essa luz, toda narrativa era sentimental. Sob essa luz, todas as conexões eram tão significativas quanto sem sentido. Veja só: na manhã da morte de John Kennedy, em 1963, eu estava na Ransohoff’s comprando um vestido de seda curto para me casar. Alguns anos depois, esse vestido foi arruinado quando, em um jantar em Bel-Air, Roman Polanski derramou uma taça de vinho tinto nele por acidente. Sharon Tate também era uma convidada do jantar, embora Polanski e ela ainda não tivessem se casado. Em 27 julho de 1970, fui à Magnin-Hi Shop no terceiro andar da I. Magnin, em Beverly Hills, e escolhi, a pedido de Linda Kasabian, o vestido com o qual ela deu início ao testemunho sobre os assassinatos na casa de Sharon Tate Polanski em Cielo Drive.
Tamanho 40 pequeno”, foi o que ela pediu. “Curto, mas não curto demais. Se possível, de veludo. Verde-esmeralda ou dourado. Ou um vestido estilo camponesa mexicana, franzido ou bordado.” Ela precisava de um vestido naquela manhã porque Vincent Bugliosi, o promotor público, manifestara dúvidas em relação ao vestido que ela planejava usar, um tubinho longo e branco simples.
Longo é para a noite”, ele aconselhara Linda. Longo era para a noite e branco para as noivas. No próprio casamento, em 1965, Linda Kasabian usara um traje de brocado branco. Os tempos passaram, os tempos mudaram. Tudo nos ensinava alguma coisa. Às 11h20 daquela manhã de julho de 1970, entreguei o vestido no qual ela ia testemunhar para Gary Fleischman, que estava esperando na frente do escritório dele em Rodeo Drive em Beverly Hills. Ele usava o chapéu pork pie e estava parado ao lado do segundo marido de Linda, Bob Kasabian, e do amigo deles, Charlie Melton, ambos usando túnicas brancas longas. Longo era para Bob e Charlie, o vestido na caixa da I. Magnin era para Linda. Os três pegaram a caixa da I. Magnin e entraram no Cadillac conversível com a capota abaixada de Gary Fleischman. Partiram em direção à autoestrada no centro da cidade, acenando para mim. Acredito que essa seja uma autêntica cadeia de correspondências sem sentido, mas na manhã tilintante daquele verão, aquilo fez tanto sentido quanto qualquer outra coisa.

Joan Didion, in O álbum branco

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