Modesto
beneficiário do INPS, X. foi ao banco receber o benefício aumentado
de fim de ano. Junto ao guichê, o desconhecido de cara aberta
catucou-o:
— Dá-me
o prazer de aceitar uma pequenina lembrança?
(Mais
um chato querendo me impingir um brinde que não servirá para nada e
me custará cinquenta cruzeiros.)
O
homem estendeu-lhe um desses calendários de bolso, que reduzem o ano
às proporções de um dia de folhinha de desfolhar.
(Em
breve, a que se reduzirá o tempo?)
— Obrigado
— e recebeu o presente.
— Quem
agradece sou eu. Sinto verdadeira satisfação em oferecer
calendários a determinados cavalheiros.
(Esse
cara é gozado. Por que fica satisfeito com uma coisa dessas? Pensa
que está me dando um lote de ações do Banco do Brasil?)
— A
estampa é bonita — comentou, para dizer qualquer coisa.
— Não
é? Eu que bolei. A janela aberta para o céu e para o mar. Janela de
cobertura, vê-se logo. Repare que não se enxerga nem a praia nem a
rua. Só o essencial, o infinito.
(Além
do mais, com babados de literato.)
— Não
preciso chamar a atenção do amigo para os símbolos. Sei que
beliscou imediatamente a minha ideia.
(Não
precisa chamar, mas está chamando, para o que ele chama de
símbolos.)
— Perfeito.
Vejo pelo anúncio que o senhor é técnico…
— Em
restauração de persianas e venezianas, e também de gelosias, para
servi-lo. Minha especialidade.
— Pois
quando eu precisar lá em casa, sr. Teopompo, me lembrarei do senhor.
— Quero
que se lembre sempre de mim. Pode parecer que estou botando banca,
mas não é à toa que me chamo Teopompo.
(Matusquela.)
— Como
assim?
— Enviado
de Deus, sabe? Foi o professor Nascentes que me explicou. Claro que
não me atribuo tamanha importância. Mas um nome assim influi na
gente, é responsabilidade. Ele ditou minha profissão.
(É;
diagnóstico perfeito.)
— Não
sirvo para missionário, me faltam as luzes, aquele saber, mas
restaurando janelas abro um horizonte para os meus semelhantes, não
lhe parece?
— E
fecha também.
— Não
diga isso. Quando a persiana desce, está abrindo para o espaço,
como direi… interior. O mesmo que fechar os olhos. Fechar os olhos
é abri-los para o miolo da gente. É cavar um túnel dentro de nós
mesmos. De vez em quando, ou melhor, frequentemente, é ótimo fazer
isto.
(Onde
que ele quer chegar com esse papo furado?)
— Com
licença. O caixa vai me pagar.
— Toda.
Como eu dizia, os homens têm necessidade de usar uma janela, coisa
que pouco se faz hoje em dia. Quem é que chega à janela do
apartamento para ver, não digo a batida de carro na rua, mas as
nuvens, o sol rompendo ou baixando, as gaivotas, os pombos, as cores,
os reflexos? Quem vê mais a Lua? O senhor? Duvido. Não leve a mal,
mas a gente, o senhor inclusive, só espia o que está a meio metro
de distância, nem isso. Hoje tudo é televisão, é cassete, se vê
e se ouve por tabela. Troço sem graça.
(E
daí?)
— Bom,
vou me despedir.
— Se
permite, mais uma palavrinha. Cuide bem de suas janelas.
— Terei
presente.
— No
material e no moral. Pessoas de sua idade…
(Minha
idade? Que diabo ele tem com isso?)
— Como?
— É
quando se deve olhar mais em redor, reparar bem, para descobrir o que
vale a pena, o coração de cada coisa. Janeiro está estourando aí,
vamos abrir a janela para janeiro.
— Isso
todo mundo abre, queira ou não queira.
— Falo
de um modo particular de abrir. Com jeito, com mansidão. Não
escancarar logo, entende? Aos golinhos, não deixando as réguas da
persiana se embaralhar, os cordões embolar. Descobrir o ano novo
como… posso dizer?
— Não
sendo contra a segurança nacional, pode.
— Como
se despe a mulher amada, ou ela se despe pra gente. Valorizando as
coisas.
(Até
que ele tem ensino.)
— Olhe
devagar, saboreando a novidade das coisas que embaçaram com o ano
velho e voltam a ficar lustrosas no ano novo. Não gaste com o olhar,
hem? para que elas durem o ano inteiro. Se é bom, dura até mais.
Mas doze meses é prazo regular de duração. Tempo de restaurar a
janela.
(Pronto.
Entra a mensagem.)
— Restaurar
a janela é um meio de restaurar a vista e o visto. Não digo isto
para vender o meu peixe. Pergunto por perguntar: há muito tempo que
não reforma suas persianas?
— Francamente,
não me recordo.
— Então,
meu caro, elas devem estar caindo de cansadas. Neste caso…
— Agora
percebi.
— O
quê?
— O
senhor fica junto ao guichê dos aposentados porque acha que eles
devem morar em apartamentos adquiridos há mais de trinta anos,
portanto com persianas gastas. Fatalmente serão seus clientes.
— E
haverá mal nisso? Não acha que eu faço bem aos aposentados? A
reforma das persianas é um começo de reforma de vida. Vamos, comece
bem o ano! Quem lhe fala é Teopompo Cardoso, semienviado de Deus!
X.
aprendeu a lição mais simples de ano novo.
Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica
Nenhum comentário:
Postar um comentário