Domingo.
Chegaram, pai e filha, da loja de móveis meia-boca com a
escrivaninha branca que ela dizia ser a mágica solução para passar
no vestibular de Medicina.
Sentaram-se
no chão, abriram a caixa, separaram os parafusos, as peças que
pareciam ser todas iguais e um folheto que fingia explicar a
montagem.
Ele,
como bom pai, ignorava o folheto e começava a montar o móvel sem
nenhum bom senso. A menina perguntou se o tampo da mesa não deveria
ser o último. Ele percebeu que ela tinha razão e disse que só
pegou “pra olhar um negócio”.
Virou-se
para a filha e falou:
– Lu,
vai lá na lavanderia, abre a caixa de ferramentas e pega lá uma
chave de fenda pra a gente.
Ela
gostava daquele “pra a gente”. Foi. Abriu a caixa com alguma
dificuldade, pegou, voltou e se jogou no chão ao lado dele.
– Não,
filha. Isso é uma chave-inglesa. Troca lá, a chave de fenda tem o
cabo amarelo.
Deu
uma suspiradinha, foi de novo, voltou, colocou a ferramenta na frente
do pai.
– Luísa,
isso é um alicate.
– Caramba,
mas você que falou que era a do cabo amarelo.
– Caramba,
mas confundir uma chave de fenda com um alicate é que nem confundir
tremoço com salame. Troca lá.
Bufou.
Levantou e saiu andando com o vestido rendado, dando passos bravos
como só as mulheres sabem dar. Gritou da lavanderia:
– Não
tem mais nada de cabo amarelo aqui!
– Quê?
(Homens
têm cerca de 70% da capacidade auditiva reduzida quando estão
concentrados em alguma coisa.)
– Não
tem mais nada amarelo, pai, só a trena!
– Vem
cá, então!
Voltou
irritada, com a testa franzida, igualzinha à mãe, já metralhando
no caminho:
– Por
que você não levanta e vai? A culpa deve ser dessa sua barriga
imensa! A mamãe sempre fala pra você voltar pra natação, mas você
não ouve!
– Me
ouve, Luísa. Eu preciso apertar esse parafuso. Procura na caixa a
única ferramenta que tem uma ponta que se encaixa nessa fenda aqui e
que depois a gente gira para o parafuso ir afundando.
– Pai,
por que que você nunca facilita pra mim? Custava você levantar e
ir? É a mesma coisa que você faz com os vidros de palmito! Eu
sempre te peço pra abrir, e você vem com aquela conversa de “pega
uma faquinha, força a tampa e deixa o ar sair!”. Ok, funciona, mas
custa me mimar um pouco, que nem os outros pais? Custa ser um pai
normal?
Ele
fez que não ouviu.
– Vai,
filha, pega lá. Já, já começa o jogo, e hoje a gente não pode
perder de jeito nenhum, que é contra o Inter, jogo de seis pontos.
– Eu
sei. E o pior é que o Miranda tá suspenso.
Chegou
na lavanderia. Bateu o olho na caixa. Localizou a chave de fenda de
primeira. Voltou, passou-a às mãos do pai e disse:
– Isso
é laranja, não amarelo.
Montaram
a escrivaninha. Ficou quase boa. Assistiram ao jogo com pipoca,
comemoraram o gol de falta.
Passaram-se
os meses, e, de fato, ela tinha razão, era só a escrivaninha que
faltava para passar no vestibular. Foi morar no interior do estado. O
pai morria de orgulho e de saudades.
Um
dia, à noitinha, uma das amigas com quem dividia apartamento gritou
da cozinha:
– Alguma
mulher forte se habilita a abrir esse vidro de palmito?
Luísa
deu meio sorriso, levantou-se e foi. Não tinha erro: faquinha, ar,
tampa aberta. A outra menina, surpresa, disse:
– Nossa.
Nunca vi isso. Meu pai sempre me deu o vidro aberto.
E
ela pensou enquanto voltava para o quarto: “O meu me deu o vidro
fechado. O vidro fechado e asas”.
Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor
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