Por
jeito? Com o que se deu, que eu não contava. O Hermógenes me
chamou. Aí ― as cintas e cartucheiras, mochilão, rede passada e
um cobertor por tudo cobrir ― ele estava parecendo até um homem
gordo. ― Riobaldo, Tatarana, tu vem. Lugar nosso vai ser o mais
perigoso. Careço de três homens bons, no próximo de meu cochicho.
Para que vou mentir ao senhor? Com ele me apartar assim, me
conferindo valia, um certo aprazimento me deu. Natureza da gente bebe
de águas pretas, agarra gosma. Quem sabe? Eu gostei. Mesmo com a
aversão, que digo, que foi, que forte era, como um escrúpulo. A
gente ― o que vida é ―! é para se envergonhar...
Mas,
aí, eu fiquei inteiriço. Com a dureza de querer, que espremi de
minha sustância vexada, fui sendo outro ― eu mesmo senti! eu
Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer com a minha valentia.
Riobaldo, homem, eu, sem pai, sem mãe, sem apêgo nenhum, sem
pertencências. Pesei o pé no chão, acheguei meus dentes. Eu estava
fechado, fechado na ideia, fechado no couro. A pessoa daquele monstro
Hermógenes não encostava amizade em mim. E nem ele, naquela hora,
não era. Era um nome, sem índole nem gana, só uma obrigação de
chefia. E, por cima de mim e dele, estava Joca Ramiro. Pensei em Joca
Ramiro. Eu era feito um soldado, obedecia a uma regra alta, não
obedecia àquele Hermógenes. Dentro de mim falei! ― Eu, Riobaldo,
eu! Joca Ramiro é que era ― a obrigação de chefia. Mas Joca
Ramiro parava por longe, era feito uma lei, uma lei determinada.
Pensei nele só, forte. Pensando! ― Joca Ramiro! Joca Ramiro! Joca
Ramiro!... A arga que em mim roncou era um despropósito, uma pancada
de mar. Nem precisava mais de ter ódio nem receio nenhum. E fui
desertando da cobiça de mimar o revólver e desfechar em fígados.
Refiro ao senhor! mas tudo isso no bater de ser. Só. Dessas boas
fúrias da vida.
Aí,
ele tinha que eu escolhesse os para vir juntos. Eu? Ele estava me
experimentando? E não tardei! ― O Garanço... ― eu disse. ―
...e este, aqui! ― completei, para aquele montesclarense apontando.
Bem que eu queria também o Feijó; mas deviam de ser só dois, a
conta já estava. E Diadorim? ― o senhor perguntará. Ah, por
Diadorim era que eu não dizia, o pensamento nele me repassava. O
tempozinho todo, naquele soflagrante. E estúrdio: eu principalmente
não queria Diadorim perto de mim, para as horas. Por quê? Por quê,
é o que eu mesmo não sabia. Seria que me desvalesse a presença
dele comigo, pelos perigos que eu visse virem a ele, no meio do
combate; ou seria que a lembrança de ter Diadorim junto, naquilo, me
desgostasse, por me enfraquecer, agora eu assim, duro ferro diante do
Hermógenes, leão coração? Se sei, sei. Porque era como eu estava.
E assim respondi: que então o Garanço e o Montesclarense iam com a
gente.
Como
saímos, viemos vindo, desfeitos aos dois, aos três, aos sozinhos.
Já a já, era noite. Noite da Jaíba dá de uma asada, uma pancada
só. Há-de: que se acostumar com o escuro nos olhos. Conto tudo ao
senhor. O caminhar da gente se media em silêncioso, nem o das
alpercatas não se ouvia. De tantos matos baixos, carrascal, o chio
dos bichinhos era um milhão só. Por lá a coruja grande avôa, que
sabe bem aonde vai, sabe sem barulho. A quando o vulto dela
assombrava em frente da gente no ar, eu fechava os olhos três vezes.
O Hermógenes rompia adiante, não dizia palavra. Nem o Garanço
também, nem o Montesclarense. Isso, em meu sentir, eu a eles
agradecia. Quem vai morrer e matar, pode ter conversa? Só esses
pássaros de pena mole, gerados da noite ― tantos bacuraus
insensatos: o sebastião que chamava a fêmea, com grandes risadas,
pedindo tabaco-bom. Digo ao senhor o que eu ia pensando: em nada. Só
esforçava tenção numa coisa: que era que devia de guardar tenência
simples e constância miúda, esperando a novidade de cada momento.
Minha pessoa tomava para mim um valor enorme. Aquele pássaro
mede-léguas erguia voo de pousado no meio da estrada, toda vez ia se
abaixar dez braças mais adiante, do jeito mesmo, conforme de comum
esses fazem. Bobice dele ― não via que o perigo torna a vir,
sempre?
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas
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