Boa
de Espanto sentou e pediu que Altura Verde escutasse:
era
ferido no peito. Tapado com o entrançado fino, moveu brusco e pude
ver no peito um golpe mal fechado. Eu não pensei nisso mais, mas
lembro agora que senti a estranheza de ver a ferida em seu corpo e
sentir em meu. Por um instante, logo depois, e sem que eu tivesse
intenção, minha mão bateu no entrançado fino sobre o peito e
agora sinto novamente como a pele era aberta. Aqui mesmo, na palma da
mão, posso medir o separado que a pele estava. Olhou muito claro
para mim, uma cintilação quase verde, quase sem cor, e era furioso.
Sua folia não permitiu que demorasse mais do que uns suspiros. Mais
demorou a bater meu corpo para encantar. Quando fugiu, olhou e eu não
movi. Eu não podia mover, e eu queria para significar a dignidade de
também atacar. Mas eu não tinha força. Era fraca. Pensei na
inevitabilidade de morrer. Eu ia morrer e morri.
Altura
Verde respondeu:
o
teu inimigo mais abeirou. Tua lembrança abeira o inimigo. Ele vai
ser encontrado pelo nosso povo e nosso povo vai matar. Quando tombar,
o educaremos. Será inteiro na alegria abaeté. Não haverá mais
sofrimento. Entoa de novo. Entoa de novo, sagrada Boa de Espanto.
E
a feminina entoou:
ainda
sangrava um pouco porque o entrançado fino tinha humidade. A minha
mão sujou, ficou cheiro. Eu não entendi se via a sua ou a minha
ferida, porque ele feria e eu tinha dificuldade em manter a visão e
o pensamento. Eu bati no peito porque tentei golpear sobre a ferida
para ganhar vantagem de o corpo já estar aberto. Mas não pude
golpear mais porque doía em mim. Meu gesto piorava minhas feridas de
verdade. E ele entrou no meu corpo por quase nada. Não era folia.
Era fúria. Como quem permite um filho ao mundo por zanga e não por
graça. Ele zangou em meu corpo. E eu olhei muito o seu rosto. Era de
manhã. Não tinha nem olho, senão um pouco de luz de alguma cor que
nem definia. Abria o olho e dali se via, para depois da cabeça, o
céu azul sobre a cabeça, até depois das copas. Era furado. Se não
ferisse meu corpo, eu podia pensar que o animal branco era sem peso,
apenas um pedaço de som, um pouco de céu turvo. E ele mais demorou
a bater meu corpo do que ferindo um filho em mim. Bateu muito para
acertar de matar. E eu fiquei sem mover porque também acreditei ter
ficado morta. Pensei, estou morta. Chegarão os ancestrais, escutarei
a Voz Coral, serei salva. E supliquei. Quando o animal vazio me olhou
antes de fugir, eu quis encantar atacando. Pensei que meu corpo morto
moveria a mão para acenar um golpe, nem que apenas para acenar um
golpe, de jeito a ele saber que amaldiçoaria sua guerra. Mas eu não
podia mover. Por isso, fiquei quieta. Vi o corpo branco desaparecer,
escutei e considerei normal não mover mais nada, porque os mortos
moviam nada, apenas soavam ou se atendiam pela intuição de alguém.
Senti algum bicho pousar em minha perna e senti algum bicho morder um
pouco. Muito pouco. Então, pensei que sentir a perna era coisa da
vida e perguntei, no pensamento, se aninharia na Pedra que Soa. E a
Voz Coral respondeu que não. Quase senti aninhar. Convenci que era
aninhada, só faltou sentir os outros abeirados.
Altura
Verde pediu:
o
teu inimigo mais abeirou. Tua lembrança abeira o inimigo. Ele vai
ser encontrado pelo nosso povo e nosso povo vai matar. Quando tombar,
o educaremos. Será inteiro na alegria abaeté. Não haverá mais
sofrimento. Entoa de novo. Entoa de novo, sagrada Boa de Espanto.
E
a feminina entoou:
estava
sob os nomes de meus pais e entoava o nome de um e de outro para que
abeirassem e queria garantir se haveria alegria em seus encantos. Eu
era na mata livre. Estava sem tarefas e havia saído havia pouco.
Subira pelo igarapé pequeno, tinha conversado com as curatãs que
perguntavam sobre mentiras dos curumins, e ia sorrindo porque
lembrava de minha transparência e por isso abri os nomes de meus
pais para caber dentro e seguir na mata feliz e acompanhada. Agora
sei que foi a companhia deles que me salvou. Lembro bem, sagrado
Altura Verde. Eu lembro bem que havia na Voz Coral o timbre distinto
de meus pais. Eles avisaram a ancestralidade e rejeitaram minha morte
que seria tão cedo. E, então, desviei do igarapé para ir aos
frutos. Comi frutos, seguindo suas pistas sem direcção e eram bons,
estavam frescos, abundavam na mata, e toda inteira era alegria por
ser livre e sem medo. Tomei a decisão de banhar quando estivesse de
regresso junto à cobra amistosa. Eu banharia e poderia mirar meu
rosto e sonhar com encontrar meu duplo. Altura Verde, lembro agora,
eu queria banhar e ponderar se estaria escolhida por algum guerreiro
porque queria sonhar um filho, queria muito agora. E alegrei mais
ainda porque acreditei ser uma feminina de beleza, e minha gentileza
nunca foi duvidada. Corri um pouco. Vi um tucano perfeito e entoei
seu nome, e ele voou partilhando minha alegria pelo ar. Eu cantei,
ilhas de três mares, aves de todo o céu, o guerreiro que me entoar
haverá de ser só meu. E escutei o silêncio depois de minha própria
voz, e imediato senti que alguma coisa era diferente. Poderia ser uma
onça. Pensei subir. Pensei usar minha lâmina. Mas não escutei
passo nem cheirei fedor nem vi corpo de onça. Deitei no chão com um
golpe, todo o branco era sobre mim e media mais vezes do que eu.
Ferrei seus dedos sobre minha boca. Berrei pouco porque me pesou no
peito. Eu era sem ar. Respirei quase nada. E ele tinha o rosto
grande, sorria de maldade e eu via e deixava de ver porque buscava
minha boca para cobrir com a sua. Julgo que comeu metade de meu som.
E ele desceu o entrançado fino de suas pernas e também vi, pelo
aberto do entrançado fino do peito, que era ferido e havia um curso
pouco de sangue e procurei afundar mais a ferida, separar seu corpo
em dois a partir daquele golpe já feito. E só senti como a pele era
apartada e já não pude mover o braço porque segurou e sua folia
mexeu em mim. Mexeu enquanto nos observámos. Seus baixios eram
irrequietos, como se fossem dois, quebrados talvez. Procurou adentrar
meu olho negro. O animal vazio quis ocupar meu olho negro, e eu
mantive a toca do espírito fechada e gemi sem entoar para que
nenhuma sabedoria abaeté abrisse sobre sua ignorância indevida.
Calei e ele sorriu mais quando bateu. Vi bem, Altura Verde, vi bem
como o interior vazio de seu corpo era. E pensei nos nomes dos meus
pais, como estariam abeirados seus espíritos a verem minha miséria,
minha desgraça. E chorei para fazer minha tristeza. Fiz a tristeza
de não vir a ser dupla de ninguém, não maternar, não voltar a ver
o sagrado povo em meu corpo débil. O branco investiu sobre mim e fui
morrendo cada vez mais, e até esperaria que morrer ali fosse mais
fácil, com menos sofrimento, mas eu sofria tudo. Era tudo em dor.
Pedi que terminasse logo. Que chegasse a encantaria, como prometem
nossas canções, que me ensinasse a aninhar na Pedra que Soa, mas
havia tanto golpe no corpo que talvez não fosse possível para o
espírito esquecer. Eu seguia lembrando de como não parecia
respirar, porque o peito continuava comprimido, como doía entre as
pernas porque o sangue deitava para o chão quente e a tentar sair de
outros golpes também. Lembrava de como a cabeça caíra sobre alguma
superfície dura, porque movia algo ali, era a pele aberta que
expunha pouco do osso, uma cercania tão grande da morte. E duvidei.
Olhei para o branco ajeitando seus entrançados, já de pé, e foi
muito quase nada de tempo, mas eu o amaldiçoei, porque ofendera meus
pais que eu tinha a certeza estarem na emanação daquela luz, no
levantamento de todo aquele vento. Pensei, maldita fera branca,
animal vazio. Ele fugiu sem que eu pudesse atacar porque convenci de
que faltava nada para morrer. Só não morri porque o corpo ficou
insistindo para sentir. Senti tanta dor que acabei presa ali. E
perguntei porque não encantaria. Meus pais responderam que haveria
de sonhar um filho e esse filho haveria de ser capaz de me amar.
Altura Verde, eu levantei. Doí como cem bichos mortos. Mas eu
levantei. E, quando nos encontrámos, eu sabia já que era cem bichos
mortos ressuscitando. Temi sempre, mas nunca duvidei.
O
guerreiro abraçou sua feminina e agradeceu. Ele respondeu:
o
teu inimigo mais abeirou. Tua lembrança abeira o inimigo. Ele vai
ser encontrado pelo nosso povo e nosso povo vai matar. Quando tombar,
o educaremos. Será inteiro na alegria abaeté. Não haverá mais
sofrimento.
A
feminina entoou:
se
eu vir mil brancos, de entre mil brancos, eu saberei qual me feriu um
filho. Se eu vir mil brancos vezes dez mil, de entre mil brancos
vezes dez mil, eu saberei qual me feriu um filho. Eu saberei sempre
que animal me feriu um filho. Seu rosto parou agora diante dos meus
olhos. Vejo tão claramente quanto as evidências de nosso terreiro,
seu jeito brando sobre mim, sua pintura, o lábio doce, a mandioca em
minhas mãos. O animal branco está diante de minha memória como uma
coisa de deitar a mão e agarrar. A mata abeira. A mata abeira o
inimigo para a vingança digna dos abaeté. Devíamos cantar, meu
duplo. Devíamos cantar para começar a fazer a alegria.
O
guerreiro tomou sua flauta. Sorriu. Era um silêncio calmo na aldeia,
o terreiro sem ninguém, alguns tardios a dormitarem pela sombra das
malocas, a mandioca quase pronta. A feminina muito grata e todas as
canções generosamente ensinando, uma e outra vez, como era a graça
dos que soam. O guerreiro e a feminina cantaram e dançaram
enamorados. Então, Boa de Espanto entoou:
começou
a morte do branco. Ela prepara agora sua partida.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário