terça-feira, 29 de março de 2022

Não esparramar raivas


[…]
Daí, eu caçava o jeito de me espairecer, junto com todos. Conversas com o Catôcho, com Jõe Bexiguento, com o Vove, com o Feijó ― de mais sisudez ― ou com Umbelino ― o de cara de gato. Se ria, fora de aperreio de combate muito se vadiava. Assim-assei, naquela influição. Vinha ordem, então a gente se reunia em bando grande, depois tornava a em grupozinhos se apartar. A guerra era a igual. E ali dava de se sentir o faltoso e o imperfeito, como no mais acontece, em quantidade maior. O São Francisco não é turvo sempre? E o que se falava mais era em mulher? Isso fazia muito boa falta. Cada um queria delas, no que só pensava. As mocinhas próprias de se provar, ou rua alegre cheia de alegria ― o bom sempre melhor, o bom. Amigo meu, o Umbelino ― esse que dizia! que, por não ter mulher ali, se tinha de muito lembrar. Ele era do Rio Sirubim, de um lugar para trás das cachoeiras.Valia como companheiro, capaz darmas. Que que pequeno, era bom. Relembrava! ― Já tive uma mulher amigável só minha, na Rua-do-Alecrim, em São Romão, e outra, mais, na Rua-do Fogo... Essas conversas, com o calor. Calor em que cão pendura a língua, o senhor sabe. Já viu, por aí? Em Januária ou São Francisco, tinha estação de tempo em que não se podia deixar um ovo guardado! com umas duas ou três horas, já se estragava. Todos contavam estórias de raparigas que tinham sido simples somente; essas senvergonhagens. Mas, de noite ― é de crer? ― a gente sabia dos que queriam qualquer reles suficiente consolo. E eram brabos sarados guerreiros, que nunca noutro ar. Coisas. Canta que cantavam, de dia, nenhum sabia pé-de-verso direito, ou não queriam ensinar, era só aquela invenção, e cantando fanhoso no nariz. Ou ficavam dizendo graças e ditérios. Nem feito meninos não sendo. Por esse sem-que-fazer, a gente ainda mais comia, quase que por divertimento. Os uns iam torar palmito, colher mandioca em mandiocalzinho sem dono, dono tinha fugido longe. Gostei de favas do mato, muito muricí, quixaba e jaca. O Fonfrêdo tinha um blilbloquê, a gente brincava de jogar. Tudo jogado a dinheiro baixo. Os espertos, teve quem pôs a jogo até bentinho de pescoço, sem dizer desrespeito. E faziam negócio desses breves, contado que alguns arrumavam até escapulários falsos. Deus perdoa? O senhor podia perguntar! Deus, para qualquer um jagunço, sendo um inconstante patrão, que às vezes regia ajuda, mas, outras horas, sem espécie nenhuma, desandava de lá ― proteção se acabou, e ― pronto! marretava! Que rezavam. Jõe Bexiguento, mesmo, quis que diversos tomassem parte em novena, numa mal rezada novena, a santo de sua redobrada tenção, e a qual ele nem teve persistência para nos dias medidos completar.
E ― mas ― o Hermógenes? Sobreveja o senhor o meu descrever! ele vinha por ali, à refalsa, socapa de se rir e se divertir no meio dos outros, sem a soberba, sendo em sendo o raposo meco. Naqueles dias ele andava de pé-no-chão, mais com uma calça apertada nas canelas e encurtada, e mesmo muito esmolambado na camisa. Até que de barba grande, parecia um pedidor. E caminhava com os largos passos, mais o muito nas pontas, vinha e ia com um sorrizinho besteante, rodeava por toda a parte. Nem eu no achar mais que ele era o ferrabrás? O que parecia, era que assim estivesse o tempo todo produzindo alguma tramóia.
Estudei uma dúvida. Ao que será que seria o ser daquele homem, tudo? Algum tinha referido que ele era casado, com mulher e filhos. Como podia? Ai-de vai, meu pensamento constante querendo entender a natureza dele, virada diferente de todas, a inocência daquela maldade. A qual me aluava. O Hermógenes, numa casa, em certo lugar, com sua mulher, ele fazia festas em suas crianças pequenas, dava conselho, dava ensino. Daí, saía. Feito lobisomem? Adiante de quem, atrás do que? A cruz o senhor faça, meu senhor! Aí eu acreditei que tivesse de haver mesmo o inferno, um inferno; precisava. E o demônio seria: o inteiro, louco, o dôido completo ― assim irremediável.
Ah, me aluei? O Hermógenes, esquipático, diverso. Comigo eu começava numa espécie, o rôr, vontade de ir para perto, reparar em tudo que fazia, dele escutar suas causas. Aos poucos, o incutido do incerto me acostumando, eu não tirava isso da cabeça. O Hermógenes ― ele dava a pena, dava medo. Mas, ora vez, eu pressentia: que do demónio não se pode ter pena, nenhuma, e a razão está aí. O demónio esbarra manso mansinho, se fazendo de apeado, tanto tristonho, e, o senhor pára próximo ― aí então ele desanda em pulos e prezares de dansa, falando grosso, querendo abraçar e grossas caretas ― boca alargada. Porque ele é ― é dôido sem cura. Todo perigo. E, naqueles dias, eu estava também muito confuso.
Será, o Hermógenes também gosta de mulheres? ― eu careci de saber, perguntei. ― Eh. Aprecêia não. Só se não gosta... ― um disse. ― Quà. Acho que ele gosta demais é só nem dele mesmo, demais, demais... ― algum outro atalhou. Que ele era assim ― eu fiquei em pausas ―: e os companheiros todos sabiam do ser; e achavam então que ato assim era possível natural?! Como que não achavam? Até, por eu ter o assunto, já um vinha: ― Daqui a seis léguas, é a baixada do Brejinho ― lá tem logradouro. Tem fêmeas... Esse que disse era o Dute, me parece; ou foi outro. Mas o Catôcho desafirmou: que tinha estado lá, não viu ar de mulher-da-vida nenhuma, só uma vendinha de roça e uma velha pitando cachimbo, no batente duma porta, pitando cachimbo e trançando peneiras. Que queriam mulheres principalmente a fim, estava certo; eu também. Eu queria, com as faces do corpo, mas também com entender um carinho e melhor-respeito ― sempre a essas do mel eu dei louvor de meu agradecimento. Renego não, o que me é de doces usos! graças a Deus toda a vida tive estima a toda meretriz, mulheres que são as mais nossas irmãs, a gente precisa melhor delas, dessas belas bondades. Mas o Lindorífico lembrava um pagode, em algum ao lugarejo, para baixo de lá! do que batucavam, o propuxado das sanfonas, cachaça muita, as mulheres vinham dar umbigadas, tiravam a roupa, cavalheiros levavam damas nas môitas, no escuro do sêbo; outros desafiavam outros para brigar. Para que? Por que não gozar o geral, mas com educação, sem as desordens? Saber aquilo me entristecia. Tem coisas que não são de ruindade em si, mas danam, porque é ao caso de virarem, feito o que não é feito. Feito a garapa que se azéda. Viver é muito perigoso, já disse ao senhor. No mais, mal me lembro, mas sei que, naqueles dias, eu estive muito maltrapilho. Em que era que eu podia achar graça? De manhã, quando eu acordava, sempre supria raiva. Um me disse que eu estava estando verde, má cara de doença ― e que devia de ser de fígado. Pode que seja, tenha sido. O Paspe, que cozinhava, cozinhou para mim os chás! o de macela, o de erva-dôce, o de losna. Oi. Dôr, mesmo, nenhuma eu não tinha. Somente perrengueava.
Do que de uma feita, por me valer, eu entendi o casco de uma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-manhã, com raiva de uma pessoa, bastava eu mudar querendo pensar em outra, para passar a ter raiva dessa outra, também, igualzinho, soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma, do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa. Mas o sarro do pensamento alterava as lembranças, e eu ficava achando que, o que um dia tivessem falado, seria por me ofender, e punha significado de culpa em todas as conversas e ações. O senhor me crê? E foi então que eu acertei com a verdade fiel: que aquela raiva estava em mim, produzida, era minha sem outro dono, como coisa solta e cega. As pessoas não tinham culpa de naquela hora eu estar passeando pensar nelas. Hoje, que enfim eu medito mais nessa agenciação encoberta da vida, fico me indagando: será que é a mesma coisa com a bebedice de amor? Toleima. O senhor ainda me releve. Mas, na ocasião, me lembrei dum conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é. Zé Bebelo falava sempre com a máquina de acerto ― inteligência só. Entendi. Cumpri. Digo: reniti, fazendo finca-pé, em força para não esparramar raivas.

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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