Eu
não tinha nenhuma vontade de contar minha história amaldiçoada a
ninguém. Se tivesse feito isso, um dono de circo logo estaria atrás
de mim, tentando me transformar em uma atração — “Rápido,
aproximem-se e deem uma olhada! Pague apenas se gostar do que ver!”
Ou
não ver… Eu só queria ser normal.
Dito
isso, eu não poderia apenas sentar e não fazer nada para resolver
esse mistério, então perturbei o dr. Fujita para ler a minha sorte.
Pensei que talvez ele pudesse descobrir algo incomum na minha
estrutura facial.
Usando
uma lupa que mostrava minhas rugas tão enormes quanto o rio Sumida,
o dr. Fujita olhou para o meu rosto por tempo suficiente para cavar
um buraco através dele. De repente, um olhar de surpresa apareceu em
seu rosto e ele se inclinou para trás, como se estivesse
amedrontado. Quando ele começou a falar, havia uma certa formalidade
em sua voz:
— Hum,
esta é a primeira vez que vi seu rosto de tão perto, mas, devo
dizer, você tem características extremamente únicas. Fiquei
bem surpreso.
— O
que você quer dizer com características únicas? — eu
perguntei, começando a sentir-me desconfortável.
Abandonando
a sua habitual preguiça, dr. Fujita colocou as mãos de modo firme
em seus joelhos.
— Dizem
que, uma vez, muito tempo atrás, um dos meus colegas sêniores lera
o rosto do criado Tokichiro Kinoshita e previu que ele seria um
senhor feudal. O meu colega ficara tão perplexo por sua própria
previsão e desacreditado em presciência, que ele quebrou seus
palitos de previsão2 ali mesmo, jogou-os no rio e declarou que havia
desistido da profissão. No fim, aquele Tokichiro Kinoshita acabou se
tornando Toyotomi Hideyoshi, um grande senhor feudal, político e
samurai. De qualquer modo, neste mesmo instante estou considerando
vender minha lupa e meu livro místico de previsão de futuro para
uma loja de penhores.
— Ei,
não tente me assustar. De que diabos você está falando?
— Seu
rosto. Ele possui uma combinação rara de características,
encontrada apenas uma vez em um quatrilhão de anos ou até mais. Se
minha leitura estiver correta, você não é um habitante desta
realidade que estamos experenciando.
— Espere,
o que você disse? Não estou entendendo nada.
— Nada
está além da sua compreensão. Você, meu amigo, é um
ultraterrestre.
— Ultraterrestre?
Agora fiquei ainda mais confuso. Eu posso ser um ultraterrestre, mas
estou diante de você, neste momento, no corpo de um respeitável
japonês.
Após
minha declaração arrogante, uma revelação perturbadora, causada
pela lembrança daqueles eventos atemorizantes, surgiu em minha
mente. Estremeci quando a memória daquela noite nos campos de Toyama
— em que meu corpo aparentemente se tornou invisível — voltou a
mim.
Dr.
Fujita me ignorou e prosseguiu:
— Para
ser direto, o que vejo de você agora não é nada além de uma fatia
da sua verdadeira forma, vista de um certo ângulo. Digamos que eu
tenha um nabo. Se eu fosse cortá-lo em alguma parte do meio, você
veria apenas a forma de elipse da superfície cortada. E pensaria:
“Oh, essa é uma suculenta e alva superfície em forma de elipse.”
Mas aquela superfície branca não é nada além de uma pequena fatia
do nabo. Similar ao que vejo de você agora, à minha frente, não é
nada além de uma fatia da sua forma verdadeira. Sua verdadeira
forma, como um nabo cuja única fatia branca está visível, é algo
que transcende a imaginação.
— Eu
não estou te entendendo.
— Pelo
menos em teoria você me entende, não é? Agora considere isto. Em
nosso mundo, tudo tem altura, largura e profundidade. Ou seja, três
dimensões.
— Certo,
nosso mundo é tridimensional.
— Agora,
imagine que nosso mundo tenha apenas duas dimensões. Tem altura e
largura, mas não tem profundidade. Um mundo como a superfície de
uma água calma, um mundo geometricamente plano.
— Ok,
um mundo bidimensional.
— Agora,
digamos que nós mergulhemos com calma aquele nabo na água. A
princípio, apenas a ponta quebraria a superfície do líquido. Nesse
ponto de vista, no mundo bidimensional o nabo é apenas visível como
um minúsculo ponto.
— Claro.
— Entretanto,
conforme eu mergulho o nabo mais profundamente na água, a porção
cruzando a superfície dela aos poucos se expande para um círculo
branco. No mundo bidimensional, o ponto parece crescer aos poucos
para se tornar um círculo branco. Mas, assim que a parte das folhas
atinge a água, o que até agora se parecia com um círculo branco de
repente se transforma em uma dispersão de várias faixas verdes.
Essas faixas estão se movendo continuamente, mudando de forma. Por
fim, o ponto mais alto das folhas submerge na água, no mundo
bidimensional não há nada mais para ser visto.
— Entendi.
Que estranho.
— O
que começou como um ponto branco logo se transformou em um largo
disco branco, e então em uma dispersão de faixas verdes, até por
fim desaparecer por completo. É como se fosse um fantasma para
aquelas formas de vida do mundo bidimensional, mas para nós, no
mundo tridimensional, é em sua essência nada além de um nabo
penetrando a superfície calma da água, enquanto submerge aos
poucos. No entanto, formas de vida bidimensionais não podem nem
imaginar a forma do nabo que podemos ver. Aqueles no mundo
bidimensional não têm a capacidade de perceber objetos
tridimensionais.
— Uau,
você é um cientista incrível.
— Isso
mesmo. Fisiognomia é ciência. Mas voltando ao que eu estava
dizendo. De acordo com a minha leitura, você não é um ser
tridimensional, e sim quadrimensional. Você pode crer que algo tão
absurdo nunca poderia acontecer, no entanto, é o que eu descobri por
meio da leitura, então não sei mais o que lhe dizer. Na verdade,
acho que vou desistir de fisiognomia. É uma farsa completa.
Minha
única resposta a isso foi suspirar várias vezes. Eu estava
atordoado pelas palavras do dr. Fujita. Porém me faltava energia
para declarar dramaticamente que eu, assim como Tokichiro Kinoshita,
seria muito bem-sucedido na vida, e que a leitura dele havia sido
correta. Só pude lamentar, porque eu, dentre todas as pessoas, nasci
como um ser humano amaldiçoado — ou devo dizer, forma de vida
amaldiçoada. Ao mesmo tempo, veio-me a curiosidade de saber como
seria minha forma verdadeira se eu fosse, de fato, um ser
quadrimensional.
Desde
então, vivo como um recluso. Parece que ainda há momentos em que
meu corpo se torna invisível aos outros. Às vezes, alguém se choca
contra mim, e, cada vez que isso acontece, digo a mim mesmo: “Lá
vamos nós novamente.”
Eu
fiz algumas pesquisas outro dia, mas não encontrei nenhuma
informação sobre quem eram meus pais. Então eu sei que devo ter
sido adotado. É por isso que não tenho como saber se nasci mesmo de
um útero humano. De qualquer modo, não existe ninguém que tenha
uma memória clara do seu nascimento. A certeza de que alguém veio
do útero da mãe é uma concepção equivocada. Por consequência,
suspeito da existência de um grande número de pessoas que também
são quadrimensionais, assim como eu, vivendo despreocupados,
ignorantes quanto às suas condições.
Essas
pessoas devem ser extremamente cuidadosas. Sempre que alguém se
chocar com você na rua ou em qualquer outro lugar, reflita sobre
isso, mantenha em mente que você pode ser invisível para a outra
pessoa — ou, talvez, até um corte transversal de um ser
quadrimensional.
Juza Unno, in A última transmissão
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