Além
das outras tribulações relacionadas a sua maca, você tem de
mantê-la limpa e branca como neve. Quem nunca atentou às longas
fileiras de imaculadas macas expostas nas trincheiras de um navio de
guerra, onde, ao longo do dia, ao menos a parte externa delas toma um
ar?
Daí
que sejam regularmente designadas algumas manhãs para que façamos a
faxina das macas; essas manhãs são chamadas manhãs de
esfrega-macas; e furioso é o esfregar que nelas tem lugar.
A
operação começa antes de o dia nascer. Toda a marinhagem é
convocada, e ao chamado todos comparecem. O convés inteiro é
coberto de macas, a popa e proa; considere-se um homem de sorte se
encontrar espaço suficiente para nele esticar a sua própria. De
joelhos, quinhentos homens esfregam a sujeira com escovas e
vassouras; acotovelando-se, comprimindo-se, brigando entre si pelo
uso da água ensaboada uns dos outros; enquanto todo o sabão do
comissário por eles utilizado cria uma só e indiscriminada espuma.
Por
vezes, você descobre que, às escuras, esteve o tempo todo
esfregando a maca do vizinho em vez da sua. Mas é tarde demais para
começar de novo; pois agora a ordem é que cada homem avance com sua
maca para que esta seja amarrada a uma estrutura de cordas de pano em
forma de rede e, uma vez içada ao alto, ali seque.
Feito
isto, reúna sem demora suas blusas e calças e, no convés já
inundado, dê início aos trabalhos de lavanderia. Você não tem
qualquer balde ou bacia para si — o próprio navio é um imenso
tanque de roupa, onde toda a marujada lava e enxágua, enxágua e
lava, até que finalmente se dá a ordem de prender as roupas, para
que elas também sejam içadas para secar.
Sobre
as três cobertas, então, tem início a zorra, operação de limpeza
assim chamada em virtude do estranho nome conferido ao principal
instrumento empregado. Trata-se de uma enorme pedra plana com longas
cordas amarradas em cada ponta, as quais servem para que a pedra
deslize, de um lado para o outro, sobre os conveses molhados e
cobertos de areia; a mais desagradável das atividades, digna de um
cão, de um escravo nas galés. Nos cantos e nos pontos mais
recônditos, entre mastros e canhões, usa-se uma pedra menor,
conhecida como devocionário, uma vez que o devoto dela ocupado
precisa ficar de joelhos para utilizá-la.
Por
fim, ocorre uma grande inundação, e os conveses são
implacavelmente surrados com lambazes secos. Depois disso, um
instrumento notável — uma espécie de enxada de couro — é usado
para puxar e absorver os últimos pingos e filetes de água das
tábuas. Sobre o tal rodo, penso em escrever um memorial e lê-lo
diante da Academia de Artes e Ciências. É dos mais curiosos
instrumentos e tarefas.
Mais
ou menos ao tempo em que todas essas operações são concluídas, o
sino dobra oito, e todos são convocados ao desjejum sobre o convés
alagado e absolutamente desconfortável.
Ora,
na condição de marinheiro comum, Jaqueta Branca protesta com
veemência contra a religiosa e diária inundação das três
cobertas de uma fragata. Em épocas sem sol, as dependências dos
marinheiros ficam permanentemente úmidas; de modo que mal se pode
sentar sem correr o risco de uma lombalgia. Um velho marinheiro
reumático da âncora d’esperança, chegou ao ponto de costurar um
pedaço de vela alcatroada no fundilho das calças.
Que
os oficiais asseados e aprumados que tanto amam ver um navio de
limpeza imaculada, que promovem vigorosa caçada ao homem que por
acaso deixa cair uma migalha de bolacha no convés quando o navio
oscila com o mar, que todos eles balancem em suas macas com os
marinheiros; e logo ficarão enjoados desse encharcar diário dos
conveses.
Seria
o navio uma bandeja de madeira para ser esfregado todas as manhãs
antes do desjejum, mesmo com os termômetros a zero grau, e todos os
marinheiros de pés descalços sob a inundação com eritemas?
Enquanto isso, o navio traz consigo um médico bem ciente da grande
máxima de Boerhaave: “Mantenha os pés secos”. Ele tem uma
grande quantidade de pílulas para dar quando você é acometido de
febre, em consequência dessas atividades; mas jamais protesta no
princípio — como seria seu dever — contra a causa da febre.
Durante
as agradáveis noites de vigília, os oficiais a passeio, do alto de
suas botas de salto, atravessam os conveses com os pés tão secos
quanto os dos israelitas; no raiar do dia, no entanto, volta o roncar
das águas, e os pobres marinheiros são quase tragados por elas,
como os egípcios no mar Vermelho.
Ah,
quantas febres, gripes e calafrios não surgem! Não há forno
aconchegante, grelha ou lareira para irmos; não — a única maneira
de mantermo-nos aquecidos é alimentar a raiva abrasadora e imprecar
contra o costume de todas as manhãs de um navio de guerra serem
dedicadas à faxina.
Imagine
a cena. Digamos que você vá a bordo de um navio de combate, e nele
encontre tudo escrupulosamente limpo; você vê todos os conveses
safos e luminosos como as calçadas de Wall Street numa manhã de
domingo; não se depara com sinal de dormitório para marinheiros; e
maravilha-se ante a mágica que possibilitou tudo isso. Pois leve em
conta que, nessa estrutura a um só tempo complexa e desimpedida,
praticamente mil mortais têm de dormir, comer, lavar-se, vestir-se,
cozinhar e levar a cabo todas as necessidades e funções comuns ao
ser humano. O mesmo número de homens em terra firme decerto formaria
um vilarejo. É portanto crível que esse extraordinário asseio e,
em especial, esse desimpedimento de um navio de guerra seja
atingido senão pelos mais rigorosos éditos e um sacrifício
radical, no tocante aos marinheiros, dos confortos domésticos da
vida? Que fique claro, os próprios marinheiros em geral não
reclamam dessas coisas; estão habituados a elas; mas o homem pode se
habituar aos mais duros costumes. E é porque se habitua que por
vezes não se queixa.
De
todos os navios de guerra, os americanos são os mais excessivamente
limpos e por isso têm grande reputação; do mesmo modo, sua
disciplina geral é a mais arbitrária.
Na
Marinha britânica, a tripulação rancha à vontade em mesas que,
entre as refeições, são içadas do caminho. Os marinheiros
americanos rancham no convés e pegam suas bolachas quebradas, ou
“farelos de aspirante”, como aves no entorno de um celeiro.
Mas
se esse desimpedimento numa fragata americana é, de todo modo, tão
desejável, por que não imitar os turcos? Na Marinha turca não
existem caixas de rancho; os marinheiros enrolam seus utensílios num
capacho e os deixam sob um canhão. Tampouco têm macas — eles
dormem em qualquer lugar do convés em seus próprios “gregos”.
Ademais, do que um homem de um navio de guerra mais precisa para se
abrigar do que a própria pele? Nela há espaço o bastante; e, se ao
menos soubesse como girar a própria espinha como uma vareta de
espingarda, seria espaço suficiente para se virar sem perturbar o
vizinho.
Entre
todos os marinheiros de fragata, é uma máxima que navios muito
asseados são como o Tártaro para a tripulação, e talvez se possa
afirmar, sem prejuízo da verdade, que, quando se vê um navio em
tais condições, algum tipo de tirano se avizinha.
A
bordo do Neversink, como noutros navios nacionais,
prolongava-se a zorra dos conveses como punição aos homens, em
particular quando as manhãs eram brutalmente frias. Esse é um dos
castigos que um lugar-tenente de turno pode, livre de qualquer
constrangimento, impor à tripulação sem que infrinja o estatuto
que reserva unicamente às mãos do capitão o poder de punir.
O
horror que os marinheiros dos navios de guerra têm por essas
prolongadas zorras sob clima frio e desconfortável — com os pés
descalços expostos à surriada das inundações — é ilustrado
numa estranha história, bastante disseminada entre eles e
curiosamente tingida de suas proverbiais superstições.
O
primeiro lugar-tenente de uma chalupa de guerra inglesa, severo
disciplinador, estava particularmente preocupado com o asseio do
tombadilho. Numa dura manhã de inverno em alto-mar, quando a
tripulação já lavara, como sempre, aquela parte da embarcação e
guardara as zorras, esse oficial foi ao convés e, depois de
inspecioná-lo, ordenou que de novo se trouxessem as zorras e
devocionários. Descalçando mais uma vez os sapatos de seus pés
congelados e enrolando as barras das calças, a tripulação
ajoelhou-se para a tarefa; e, em posição de suplicantes,
silenciosamente invocou uma maldição contra o tirano; rogando, uma
vez que retornasse à coberta, que nunca mais deixasse a
praça-d’armas com vida. As súplicas aparentemente foram
atendidas; pois, logo depois de ter sido acometido de um derrame
paralisante à mesa do desjejum, o primeiro lugar-tenente foi
retirado da praça-d’armas dos oficiais com os pés à frente,
morto. Depois de baldeado o cadáver no mar — assim diz a história
—, as sentinelas no passadiço deram-lhe as costas.
Para
que se faça justiça à parcela humana e sensível do rol dos
capitães da Marinha americana, é preciso acrescentar que eles
não são tão exigentes, sempre e em quaisquer condições
climáticas, com a manutenção da imaculada limpeza dos conveses;
tampouco obrigam os homens a esfregarem as tábuas até que brilhem e
a polirem as cravilhas de arganéu; mas dão a toda aquela estrutura
cheia de ornamento uma bela demão de tinta preta, que é mais
adequada à guerra, conserva melhor e dispensa os marinheiros de um
aborrecimento perpétuo.
Herman Melville, in Jaqueta Branca
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