terça-feira, 15 de março de 2022

Colecionadora

Colecionadora dos mais lindos guarda-chuvas se desfaz de toda coleção.
Avenida X, tel…

Desculpe, a senhora é mineira?
Não senhor. Catarinense. Por que pergunta?
Porque os mineiros é que apreciam particularmente guarda-chuvas.
Os catarinenses não podem também interessar-se por eles, como colecionadores?
Claro que sim. Perguntei por perguntar. Como lhe veio o gosto da coleção?
Ah, não sei. Por que é que uma pessoa gosta de sorvete de tamarindo, e passa a vida inteira só tomando sorvete de tamarindo?
Perdão, mas esse é o anticolecionador por excelência.
Colecionar guarda-chuvas também é uma forma de excluir todas as outras coleções possíveis.
Como assim?
Não vê que não combina? Guarda-chuva tem muita personalidade. Mesmo colocado entre outros objetos, não se mistura. É um sozinho.
De fato, guarda-chuva é triste.
Triste? Engano seu. Orgulhoso, talvez. Orgulho discreto, com base na utilidade e na beleza, coisas que nem sempre andam juntas.
Mas a cor preta…
Quem lhe disse que o guarda-chuva há de ser preto, e que o preto é necessariamente uma cor desolada? A alegria dos pretos, a musicalidade, o samba, o senhor acha isso triste? E tem guarda-chuva de toda cor, não é só guarda-sol que pode se enfeitar de cores. A gente é que não sabe colorir a vida, e cria o preconceito de que a determinadas coisas devem corresponder determinadas cores.
É mesmo. Começo a ver o guarda-chuva sob outro prisma.
Fico satisfeita de saber. Meu marido era como o senhor. Não ligava para guarda-chuva, dizia que é acessório incômodo, até ridículo. Acabou zelador da coleção, e chegou a descobrir exemplares raros, que enriqueceram o conjunto.
Já sei que vai sentir falta de sua coleção.
Muita. Nem calcula. São trinta anos de convivência com eles, ouviu? De certa maneira é como se fossem… O senhor vai rir de mim.
Absolutamente.
Como se fossem meus filhos. Isso mesmo. Filhos. Nós não tivemos nenhum. A menina que adotamos cresceu, casou e mudou para longe. Eu tinha o sentimento disponível, pouco a pouco fui derivando para os guarda-chuvas. A princípio gostava mais da sombrinha de mamãe. Natural, era lembrança de família. Depois, comecei a sentir qualquer coisa diferente nas peças que já colecionava. Por que colecionava, não sei. Achava engraçado, entende?
Que havia de diferente?
Havia o sentido, a natureza, a alma do guarda-chuva, se posso dizer assim. São tão diferentes de todos os objetos de uma casa. Os outros se deixam usar. Eles, de natural recolhidos, abrem-se em festa, já reparou? Reparou nada. Guarda-chuva aberto é uma explosão de alegria, que pouca gente percebe. E se for uma peça de arte, como esse da China, que eu tenho…
Será dos antiquíssimos, daqueles usados só por imperadores e príncipes?
Bom, o que posso lhe garantir é que ele é mais velho do que o Brasil. Esses assim, a gente venera, não se ousa abrir nem para visitas. Só em grandes dias, num ritual…
Compreendo.
Sempre sonhei ter um egípcio, um assírio, dos tempos mais remotos. Como não foi possível, consolo-me com estampas. Mas o senhor verá uma peça francesa do século XVI, quando a corte de lá começou a usá-lo.
E vai vender tudo isso?
Não vou vender, vou me desfazer. Não posso mais conservar a coleção. Chega um dia em que o colecionador tem de decidir sobre o futuro do que lhe é caro. Estou velha e viúva, sem herdeiros. Tentei conseguir do governo a criação do Museu do Guarda-Chuva; eu doaria tudo. Disseram-me que nem pensasse nisso. Doar a um dos museus existentes seria misturar meus guarda-chuvas com uma parafernália incompatível. Eles seriam subestimados, sofreriam. Então me desfaço, me desligo deles, passando-os a um colecionador que tenha no máximo quarenta anos. Que idade tem o senhor?
Sessenta e cinco.
Lamento, mas o senhor não vai ficar com os meus guarda-chuvas.

Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica

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