Colecionadora
dos mais lindos guarda-chuvas se desfaz de toda coleção.
Avenida
X, tel…
— Desculpe,
a senhora é mineira?
— Não
senhor. Catarinense. Por que pergunta?
— Porque
os mineiros é que apreciam particularmente guarda-chuvas.
— Os
catarinenses não podem também interessar-se por eles, como
colecionadores?
— Claro
que sim. Perguntei por perguntar. Como lhe veio o gosto da coleção?
— Ah,
não sei. Por que é que uma pessoa gosta de sorvete de tamarindo, e
passa a vida inteira só tomando sorvete de tamarindo?
— Perdão,
mas esse é o anticolecionador por excelência.
— Colecionar
guarda-chuvas também é uma forma de excluir todas as outras
coleções possíveis.
— Como
assim?
— Não
vê que não combina? Guarda-chuva tem muita personalidade. Mesmo
colocado entre outros objetos, não se mistura. É um sozinho.
— De
fato, guarda-chuva é triste.
— Triste?
Engano seu. Orgulhoso, talvez. Orgulho discreto, com base na
utilidade e na beleza, coisas que nem sempre andam juntas.
— Mas
a cor preta…
— Quem
lhe disse que o guarda-chuva há de ser preto, e que o preto é
necessariamente uma cor desolada? A alegria dos pretos, a
musicalidade, o samba, o senhor acha isso triste? E tem guarda-chuva
de toda cor, não é só guarda-sol que pode se enfeitar de cores. A
gente é que não sabe colorir a vida, e cria o preconceito de que a
determinadas coisas devem corresponder determinadas cores.
— É
mesmo. Começo a ver o guarda-chuva sob outro prisma.
— Fico
satisfeita de saber. Meu marido era como o senhor. Não ligava para
guarda-chuva, dizia que é acessório incômodo, até ridículo.
Acabou zelador da coleção, e chegou a descobrir exemplares raros,
que enriqueceram o conjunto.
— Já
sei que vai sentir falta de sua coleção.
— Muita.
Nem calcula. São trinta anos de convivência com eles, ouviu? De
certa maneira é como se fossem… O senhor vai rir de mim.
— Absolutamente.
— Como
se fossem meus filhos. Isso mesmo. Filhos. Nós não tivemos nenhum.
A menina que adotamos cresceu, casou e mudou para longe. Eu tinha o
sentimento disponível, pouco a pouco fui derivando para os
guarda-chuvas. A princípio gostava mais da sombrinha de mamãe.
Natural, era lembrança de família. Depois, comecei a sentir
qualquer coisa diferente nas peças que já colecionava. Por que
colecionava, não sei. Achava engraçado, entende?
— Que
havia de diferente?
— Havia
o sentido, a natureza, a alma do guarda-chuva, se posso dizer assim.
São tão diferentes de todos os objetos de uma casa. Os outros se
deixam usar. Eles, de natural recolhidos, abrem-se em festa, já
reparou? Reparou nada. Guarda-chuva aberto é uma explosão de
alegria, que pouca gente percebe. E se for uma peça de arte, como
esse da China, que eu tenho…
— Será
dos antiquíssimos, daqueles usados só por imperadores e príncipes?
— Bom,
o que posso lhe garantir é que ele é mais velho do que o Brasil.
Esses assim, a gente venera, não se ousa abrir nem para visitas. Só
em grandes dias, num ritual…
— Compreendo.
— Sempre
sonhei ter um egípcio, um assírio, dos tempos mais remotos. Como
não foi possível, consolo-me com estampas. Mas o senhor verá uma
peça francesa do século XVI, quando a corte de lá começou a
usá-lo.
— E
vai vender tudo isso?
— Não
vou vender, vou me desfazer. Não posso mais conservar a coleção.
Chega um dia em que o colecionador tem de decidir sobre o futuro do
que lhe é caro. Estou velha e viúva, sem herdeiros. Tentei
conseguir do governo a criação do Museu do Guarda-Chuva; eu doaria
tudo. Disseram-me que nem pensasse nisso. Doar a um dos museus
existentes seria misturar meus guarda-chuvas com uma parafernália
incompatível. Eles seriam subestimados, sofreriam. Então me
desfaço, me desligo deles, passando-os a um colecionador que tenha
no máximo quarenta anos. Que idade tem o senhor?
— Sessenta
e cinco.
— Lamento,
mas o senhor não vai ficar com os meus guarda-chuvas.
Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica
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