As
coisas na escola, porém, seguiram com as mesmas naturalizações de
violência. Adorava quando você mexia nos meus cabelos mas, no resto
do tempo, eu os detestava. Implorava para meu pai me deixar
alisá-los. Quando a permissão veio, eu tinha a ilusão de que
ficariam iguais aos das mulheres brancas nas capas de revistas, que
voariam e balançariam com o vento, mas isso não aconteceu. Mais
tarde, lendo Toni Morrison, reencontrei esse sentimento em Pecola
Breedlove, personagem do livro O olho mais azul, que acreditava que
tinha olhos claros.
Eu
queria levar pente e escova para a escola como as meninas brancas
faziam. No recreio, elas se sentavam em um lado específico do pátio
e ficavam escovando os cabelos enquanto conversavam e eram admiradas
pelos meninos. Numa das primeiras vezes que alisei o cabelo, também
levei minha escova. Sentei ao lado de umas meninas e fiquei ali,
satisfeita, passando a escova que deslizava com mais facilidade nos
fios alisados. Por um momento, foi uma sensação incrível até
ouvir um garoto mais velho me atacar: “Cuidado para não quebrar o
pente!”. As gargalhadas das outras crianças desafinaram a sinfonia
que eu escutava e, morrendo de vergonha, eu imediatamente guardei a
escova e me levantei.
As
revistas adolescentes da época pareciam confirmar que eu era feia.
As musas teen que estampavam as capas eram todas brancas. Os
ídolos teen também. Nas entrevistas, eles sempre eram
perguntados sobre como era a “garota ideal”, se loira ou morena.
A alternativa “negra” nunca aparecia, o que parecia gritar na
nossa cara que éramos feias.
A
televisão fazia o mesmo. O Xou da Xuxa era o programa mais
assistido por todas as minhas amigas. Elas colecionavam vinis e fitas
cassetes, sabiam cantar todas as músicas, se fantasiavam de paquitas
em suas festas de aniversário. Quando meu pai não estava em casa,
eu cobria o cabelo com uma toalha e brincava de ser paquita.
Precisava fazer isso escondida, porque ele nos proibia de assistir à
Xuxa, dizia que não tinha nada a nos ensinar, que sua influência
era maléfica. Também se referia a ela com termos machistas que
prefiro não reproduzir aqui. Hoje eu entendo a preocupação do meu
pai, mas vai explicar para uma criança nos anos 1990 que ela não
poderia assistir ao programa mais famoso da televisão.
Numa
das raras vezes em que fomos ao cinema com a escola, nós assistimos
ao filme Lua de cristal, do qual Xuxa é a protagonista.
Lembro de ter gostado do filme, mas também lembro que senti um
profundo incômodo. Na saída, ao final, meninas brancas conversavam
alegremente sobre o filme enquanto eu, sozinha, pensava em como nada
do que eu tinha acabado de ver se relacionava com a minha realidade.
Eu voltaria para casa, minha mãe estaria finalizando alguma tarefa
doméstica, meu pai chegaria do porto e iria conferir se havíamos
feito a lição de casa, eu precisaria ir ao mercado ou à padaria a
pedido da minha mãe e dormiria sonhando com o ideal que o filme
construiu.
Quando
meu pai falava que os filmes da Xuxa eram racistas, as pessoas
retrucavam bravamente: “Joaquim, você está louco? Ela é uma
referência e ensina bons exemplos para as crianças. Não há cenas
de racismo em seus filmes!”. Meu pai tentava argumentar, mas de
alguma forma lhe faltavam palavras. De fato, não havia cenas de
discriminação direta, mas tampouco havia personagens negros nas
histórias: tudo girava em torno de garotas e garotos brancos e
loiros e seus dramas. Como a menina preta, filha do estivador e da
dona de casa, que precisava dividir o quarto com os irmãos e a irmã
porque morava em um apartamento pequeno, que passava as férias em
Piracicaba porque era onde vivia a família, sentiria que aquele
filme foi feito para pessoas como ela? Nada no mundo que era bonito
se parecia comigo. E ainda havia um grande conflito interno em mim:
deveria acreditar no que meu pai dizia ou no que o mundo me mostrava?
Hoje percebo a crueldade disso, mas à época eu me escondia do mundo
e culpava Deus por não ter me feito branca.
Nas
festas juninas, nenhum menino queria dançar comigo. Nas aulas, as
professoras só aceitavam que eu participasse com destaque de alguma
atividade se as garotas brancas não estivessem à altura. Eu gostava
de estudar e aprender, vó, mas não gostava de ir à escola. Na hora
do recreio, eu via as amigas inseparáveis, reunidas, combinando
felizes coisas para fazer depois da aula, enquanto eu, se não estava
com minha irmã ou com alguma colega que também era excluída,
ficava sozinha. Mesmo minhas amigas riam quando algum menino fazia
piada comigo, o que me machucava e decepcionava, impedindo que a
amizade se aprofundasse. O racismo é tão cruel que até os garotos
negros zombavam da gente. O carinha que acabou com a minha ilusão
dos cabelos lisos era negro claro. Provavelmente ele se considerava
“moreno” e, para ser aceito entre os meninos brancos, estabelecia
esse pacto macabro.
As
coisas melhoraram um pouco quando um afilhado do meu pai, repetente,
passou a estudar no mesmo período que eu. Ele era como um primo pra
mim, dizia que se alguém me xingasse era pra eu avisá-lo. Como ele
era mais velho, já havia repetido de ano várias vezes, todos o
respeitavam ou temiam, e eu me sentia protegida. Foi uma fase
poderosa pra mim, em que aprendi a força e a importância das
alianças. Infelizmente, minha alegria não durou muito: ele foi
expulso da escola por furar os pneus do carro de uma professora.
Uma
das memórias mais marcantes daquela época foi o que hoje chamo de
“círculo de horrores”. Um menino da escola, metido a malandro da
turma, começou a rodear a mim e a minha irmã, gritando “Orra,
neguinha”. Esse ritual durou meses. No recreio, ele nos procurava,
outros meninos se aproximavam, faziam uma rodinha e ficavam repetindo
“Orra neguinha, orra neguinha”, enquanto todos no pátio riam de
nós. Ninguém chamava a inspetora ou a diretora. Tivemos que
aprender a lidar com aquilo, ora caladas, ora revidando e xingando de
volta. Não satisfeitos, eles escreveram na parede da escadaria a
expressão que usavam para nos atormentar. Uma “amiga” da minha
irmã foi quem nos mostrou, rindo.
Não
lembro quanto tempo exatamente esse tormento durou, mas lembro que
passei muitos recreios dentro do banheiro para me esquivar daquele
horror. Assim como um personagem de O olho mais azul que
aceitava as ofensas porque elas eram como piolhos, incômodos, mas
inevitáveis, eu fui me acostumando a lidar com aquilo — até o dia
em que minha mãe soube de tudo.
Ela
tinha ido à escola resolver um problema na secretaria e ficou para
esperar por mim e por Dara. O problema demorou a se resolver, então
fomos nós que tivemos que aguardar. Quando finalmente saímos da
escola, já havia passado um bom tempo desde o horário da última
aula e o entorno estava vazio. O menino que puxava a rodinha
geralmente ficava por ali fumando com os garotos mais velhos e, ao
avistar a gente de longe, gritou o conhecido “Orra”. Sua voz,
porém, logo emudeceu, como se ele tivesse levado um susto. Ele até
tentou disfarçar, mas a constatação de que estávamos acompanhadas
o fez empalidecer.
Sem
entender, minha mãe perguntou quem era aquele e o que ele havia
gritado, e contamos tudo o que ele vinha fazendo. Ela nem precisou
ouvir muito e já saiu correndo atrás do menino, que tentou fugir,
mas foi pego na esquina seguinte. Dona Erani agarrou o garoto pela
gola da camiseta, o suspendeu e disse: “Na próxima vez que você
mexer com as minhas filhas, eu vou quebrar a sua cara”. De olhos
arregalados, ele respondeu que contaria para os pais dele. “Pode
contar, você acha que eu tenho medo? Cadeia não foi feita pra
cachorro!”, ela retrucou. O garoto fugiu assustado e nunca mais nos
incomodou.
Quando
soube do ocorrido, meu pai chamou minha mãe de louca. Ela não deu
ouvidos, claro. “Se alguém mexer com os meus filhos, eu viro uma
leoa”, respondeu. Dona Erani jamais permitiria que as pessoas nos
desrespeitassem, vó. Apesar da amargura da vida, de cobrar bastante
da gente, de não ter muita paciência, ela nos protegia. Às vezes,
sentia que ela desejava ser mais leve, não tão dura, mas era como
se algo maior a obrigasse, um medo de “não criar uma filha para a
vida”. “Não vou viver pra sempre, Djamila.”
Minha
mãe carregava uma pressa, não podia perder tempo me adoçando para
além da conta: eu precisava voar mesmo quando ainda devia estar sob
suas asas. E não era por maldade. Era pressa. Quando ela morreu, eu
tinha vinte anos. Ela sabia que partiria cedo. Sempre soube. De algum
modo, eu também sabia e aproveitava todos os momentos para ficar
perto dela. Quando eu era criança e tinha dificuldade para dormir,
ia até seu quarto e pedia para dormir com ela e meu pai. E ela
sempre deixava, me encaixando do lado dela e me abraçando. Quando eu
ficava doente, ela me mimava, deixava comer tudo o que eu tinha
vontade e fugir da nossa rotina de alimentação controlada, com
muitas verduras e legumes, além das cápsulas de óleo de fígado de
bacalhau e das doses de Biotônico Fontoura.
Eu
sofria com dores de garganta crônicas e todos os anos precisava ir
ao Hospital dos Estivadores tomar antibióticos e injeções fortes.
Pegávamos ônibus comigo ardendo em febre, e ela pedia para alguém
me ceder o lugar. Não havia a mínima possibilidade de fugir na hora
de tomar injeção, porque ela tinha uma técnica infalível para me
segurar. Muitas vezes lhe pediam para segurar outras crianças, o que
ela fazia com muito gosto, mesmo reclamando que as mães brancas eram
muito moles.
Eu
só fui me curar dessa dor crônica na adolescência. O otorrino
sugeriu a cirurgia de retirada das amígdalas, mas minha mãe foi
veementemente contra. “Olha doutor, na minha época era assim, todo
mundo arrancava, mas hoje? Eu não sei pra que servem as amígdalas,
mas se estão aí é porque são para alguma coisa. Não vou deixar a
menina operar sem necessidade.” E finalmente, vó, ela recorreu às
ervas. Lembro que fui levada a um centro que oferecia cura
espiritual, onde passei por uma consulta que demorou muito tempo,
mais de duas horas. O médico disse que minha dor era provocada pelo
meu medo de falar as coisas e pediu que, todas as vezes que sentisse
incômodo na garganta, eu me perguntasse o que estava guardando, o
que deveria ser externalizado. Esse exercício, aliado às gotas
diárias do remédio homeopático que me foi receitado, fizeram com
que eu nunca mais tivesse as mesmas crises.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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