quinta-feira, 10 de março de 2022

Cartas para minha avó | 5

As coisas na escola, porém, seguiram com as mesmas naturalizações de violência. Adorava quando você mexia nos meus cabelos mas, no resto do tempo, eu os detestava. Implorava para meu pai me deixar alisá-los. Quando a permissão veio, eu tinha a ilusão de que ficariam iguais aos das mulheres brancas nas capas de revistas, que voariam e balançariam com o vento, mas isso não aconteceu. Mais tarde, lendo Toni Morrison, reencontrei esse sentimento em Pecola Breedlove, personagem do livro O olho mais azul, que acreditava que tinha olhos claros.
Eu queria levar pente e escova para a escola como as meninas brancas faziam. No recreio, elas se sentavam em um lado específico do pátio e ficavam escovando os cabelos enquanto conversavam e eram admiradas pelos meninos. Numa das primeiras vezes que alisei o cabelo, também levei minha escova. Sentei ao lado de umas meninas e fiquei ali, satisfeita, passando a escova que deslizava com mais facilidade nos fios alisados. Por um momento, foi uma sensação incrível até ouvir um garoto mais velho me atacar: “Cuidado para não quebrar o pente!”. As gargalhadas das outras crianças desafinaram a sinfonia que eu escutava e, morrendo de vergonha, eu imediatamente guardei a escova e me levantei.
As revistas adolescentes da época pareciam confirmar que eu era feia. As musas teen que estampavam as capas eram todas brancas. Os ídolos teen também. Nas entrevistas, eles sempre eram perguntados sobre como era a “garota ideal”, se loira ou morena. A alternativa “negra” nunca aparecia, o que parecia gritar na nossa cara que éramos feias.
A televisão fazia o mesmo. O Xou da Xuxa era o programa mais assistido por todas as minhas amigas. Elas colecionavam vinis e fitas cassetes, sabiam cantar todas as músicas, se fantasiavam de paquitas em suas festas de aniversário. Quando meu pai não estava em casa, eu cobria o cabelo com uma toalha e brincava de ser paquita. Precisava fazer isso escondida, porque ele nos proibia de assistir à Xuxa, dizia que não tinha nada a nos ensinar, que sua influência era maléfica. Também se referia a ela com termos machistas que prefiro não reproduzir aqui. Hoje eu entendo a preocupação do meu pai, mas vai explicar para uma criança nos anos 1990 que ela não poderia assistir ao programa mais famoso da televisão.
Numa das raras vezes em que fomos ao cinema com a escola, nós assistimos ao filme Lua de cristal, do qual Xuxa é a protagonista. Lembro de ter gostado do filme, mas também lembro que senti um profundo incômodo. Na saída, ao final, meninas brancas conversavam alegremente sobre o filme enquanto eu, sozinha, pensava em como nada do que eu tinha acabado de ver se relacionava com a minha realidade. Eu voltaria para casa, minha mãe estaria finalizando alguma tarefa doméstica, meu pai chegaria do porto e iria conferir se havíamos feito a lição de casa, eu precisaria ir ao mercado ou à padaria a pedido da minha mãe e dormiria sonhando com o ideal que o filme construiu.
Quando meu pai falava que os filmes da Xuxa eram racistas, as pessoas retrucavam bravamente: “Joaquim, você está louco? Ela é uma referência e ensina bons exemplos para as crianças. Não há cenas de racismo em seus filmes!”. Meu pai tentava argumentar, mas de alguma forma lhe faltavam palavras. De fato, não havia cenas de discriminação direta, mas tampouco havia personagens negros nas histórias: tudo girava em torno de garotas e garotos brancos e loiros e seus dramas. Como a menina preta, filha do estivador e da dona de casa, que precisava dividir o quarto com os irmãos e a irmã porque morava em um apartamento pequeno, que passava as férias em Piracicaba porque era onde vivia a família, sentiria que aquele filme foi feito para pessoas como ela? Nada no mundo que era bonito se parecia comigo. E ainda havia um grande conflito interno em mim: deveria acreditar no que meu pai dizia ou no que o mundo me mostrava? Hoje percebo a crueldade disso, mas à época eu me escondia do mundo e culpava Deus por não ter me feito branca.
Nas festas juninas, nenhum menino queria dançar comigo. Nas aulas, as professoras só aceitavam que eu participasse com destaque de alguma atividade se as garotas brancas não estivessem à altura. Eu gostava de estudar e aprender, vó, mas não gostava de ir à escola. Na hora do recreio, eu via as amigas inseparáveis, reunidas, combinando felizes coisas para fazer depois da aula, enquanto eu, se não estava com minha irmã ou com alguma colega que também era excluída, ficava sozinha. Mesmo minhas amigas riam quando algum menino fazia piada comigo, o que me machucava e decepcionava, impedindo que a amizade se aprofundasse. O racismo é tão cruel que até os garotos negros zombavam da gente. O carinha que acabou com a minha ilusão dos cabelos lisos era negro claro. Provavelmente ele se considerava “moreno” e, para ser aceito entre os meninos brancos, estabelecia esse pacto macabro.
As coisas melhoraram um pouco quando um afilhado do meu pai, repetente, passou a estudar no mesmo período que eu. Ele era como um primo pra mim, dizia que se alguém me xingasse era pra eu avisá-lo. Como ele era mais velho, já havia repetido de ano várias vezes, todos o respeitavam ou temiam, e eu me sentia protegida. Foi uma fase poderosa pra mim, em que aprendi a força e a importância das alianças. Infelizmente, minha alegria não durou muito: ele foi expulso da escola por furar os pneus do carro de uma professora.
Uma das memórias mais marcantes daquela época foi o que hoje chamo de “círculo de horrores”. Um menino da escola, metido a malandro da turma, começou a rodear a mim e a minha irmã, gritando “Orra, neguinha”. Esse ritual durou meses. No recreio, ele nos procurava, outros meninos se aproximavam, faziam uma rodinha e ficavam repetindo “Orra neguinha, orra neguinha”, enquanto todos no pátio riam de nós. Ninguém chamava a inspetora ou a diretora. Tivemos que aprender a lidar com aquilo, ora caladas, ora revidando e xingando de volta. Não satisfeitos, eles escreveram na parede da escadaria a expressão que usavam para nos atormentar. Uma “amiga” da minha irmã foi quem nos mostrou, rindo.
Não lembro quanto tempo exatamente esse tormento durou, mas lembro que passei muitos recreios dentro do banheiro para me esquivar daquele horror. Assim como um personagem de O olho mais azul que aceitava as ofensas porque elas eram como piolhos, incômodos, mas inevitáveis, eu fui me acostumando a lidar com aquilo — até o dia em que minha mãe soube de tudo.
Ela tinha ido à escola resolver um problema na secretaria e ficou para esperar por mim e por Dara. O problema demorou a se resolver, então fomos nós que tivemos que aguardar. Quando finalmente saímos da escola, já havia passado um bom tempo desde o horário da última aula e o entorno estava vazio. O menino que puxava a rodinha geralmente ficava por ali fumando com os garotos mais velhos e, ao avistar a gente de longe, gritou o conhecido “Orra”. Sua voz, porém, logo emudeceu, como se ele tivesse levado um susto. Ele até tentou disfarçar, mas a constatação de que estávamos acompanhadas o fez empalidecer.
Sem entender, minha mãe perguntou quem era aquele e o que ele havia gritado, e contamos tudo o que ele vinha fazendo. Ela nem precisou ouvir muito e já saiu correndo atrás do menino, que tentou fugir, mas foi pego na esquina seguinte. Dona Erani agarrou o garoto pela gola da camiseta, o suspendeu e disse: “Na próxima vez que você mexer com as minhas filhas, eu vou quebrar a sua cara”. De olhos arregalados, ele respondeu que contaria para os pais dele. “Pode contar, você acha que eu tenho medo? Cadeia não foi feita pra cachorro!”, ela retrucou. O garoto fugiu assustado e nunca mais nos incomodou.
Quando soube do ocorrido, meu pai chamou minha mãe de louca. Ela não deu ouvidos, claro. “Se alguém mexer com os meus filhos, eu viro uma leoa”, respondeu. Dona Erani jamais permitiria que as pessoas nos desrespeitassem, vó. Apesar da amargura da vida, de cobrar bastante da gente, de não ter muita paciência, ela nos protegia. Às vezes, sentia que ela desejava ser mais leve, não tão dura, mas era como se algo maior a obrigasse, um medo de “não criar uma filha para a vida”. “Não vou viver pra sempre, Djamila.”
Minha mãe carregava uma pressa, não podia perder tempo me adoçando para além da conta: eu precisava voar mesmo quando ainda devia estar sob suas asas. E não era por maldade. Era pressa. Quando ela morreu, eu tinha vinte anos. Ela sabia que partiria cedo. Sempre soube. De algum modo, eu também sabia e aproveitava todos os momentos para ficar perto dela. Quando eu era criança e tinha dificuldade para dormir, ia até seu quarto e pedia para dormir com ela e meu pai. E ela sempre deixava, me encaixando do lado dela e me abraçando. Quando eu ficava doente, ela me mimava, deixava comer tudo o que eu tinha vontade e fugir da nossa rotina de alimentação controlada, com muitas verduras e legumes, além das cápsulas de óleo de fígado de bacalhau e das doses de Biotônico Fontoura.
Eu sofria com dores de garganta crônicas e todos os anos precisava ir ao Hospital dos Estivadores tomar antibióticos e injeções fortes. Pegávamos ônibus comigo ardendo em febre, e ela pedia para alguém me ceder o lugar. Não havia a mínima possibilidade de fugir na hora de tomar injeção, porque ela tinha uma técnica infalível para me segurar. Muitas vezes lhe pediam para segurar outras crianças, o que ela fazia com muito gosto, mesmo reclamando que as mães brancas eram muito moles.
Eu só fui me curar dessa dor crônica na adolescência. O otorrino sugeriu a cirurgia de retirada das amígdalas, mas minha mãe foi veementemente contra. “Olha doutor, na minha época era assim, todo mundo arrancava, mas hoje? Eu não sei pra que servem as amígdalas, mas se estão aí é porque são para alguma coisa. Não vou deixar a menina operar sem necessidade.” E finalmente, vó, ela recorreu às ervas. Lembro que fui levada a um centro que oferecia cura espiritual, onde passei por uma consulta que demorou muito tempo, mais de duas horas. O médico disse que minha dor era provocada pelo meu medo de falar as coisas e pediu que, todas as vezes que sentisse incômodo na garganta, eu me perguntasse o que estava guardando, o que deveria ser externalizado. Esse exercício, aliado às gotas diárias do remédio homeopático que me foi receitado, fizeram com que eu nunca mais tivesse as mesmas crises.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

Nenhum comentário:

Postar um comentário