Depois
da morte, gurufim e enterro e garimpagem dos trinta contos (e ninguém
achou), a vida se tomou de tal calma que dava para desconfiar.
Ananias
ficava cada vez mais admirado com o poder de sublimação do irmão.
A vida dele se pontilhara naquela calma. Nos olhos moravam a paz e a
bondade de mãos dadas. E tudo que fazia e tudo que não fazia se
resumia numa santidade natural. Seus gestos eram completos. O bem
praticado se distribuía para quem precisasse. Admitia o mundo como
aparecia. As pessoas podiam ser boas ou ruins. Não julgava. Não
exigia que ninguém fosse sempre bom, forçando uma situação para
ser bom. Tudo precisava ser espontâneo. Sendo espontâneos, os
homens eram naturalmente bons ou sinceramente maus. E o bem que só
ele sabia distribuir não vinha medido ou escolhido. Esquecer do que
fizera e para quem fizera. Seus olhos viviam apenas o momento do
milagre com uma força transcendental, incontida. Rezava aquela prece
brilhante, incompreensível e retornava ao âmago de sua paz.
Esquecido, mas em humildade. Como se nada mais fosse do que uma
corrente necessária para transmitir algo de superior. Obedecendo
talvez as ordens maiores que lhe eram imputadas. Só aquilo. Nada
mais que aquilo.
Depois
perdia-se nele mesmo. Bastando-se a si próprio. Desdobrando-se
introspectivamente para a sua alma. Vivendo as conversas do seu
silêncio. Meditando, exilando-se com os olhos claros na distância
dos seus pensamentos, no mistério das horas, no comprido das noites.
Sentava-se naquela cadeira. Acendia uma vela, acolhia Raça Dura
sobre o colo e, enquanto sua vista viajava, seus dedos desfilavam no
pelo do gato.
E
o estranho gato viera não se sabia de onde. Aproximara-se um dia de
Antão e o fitara pedindo amizade e compreensão. Antão o alisou com
o olhar e fez minchinho, minchinho. Então Raça Dura ficou.
Sentiu-se mais que natural dentro do aconchego do abandono de Antão.
Foi
quando Ananias resolveu interromper o mundo paralisado de Antão, que
se revolveu na cadeira de braços.
– Vovó
Sinhazinha deixou umas cocadas para você.
Antão
apenas de leve sorriu e acenou com a cabeça, como se já tivesse
visto as cocadas. A amizade de Vovó Sinhazinha, sobretudo com Antão,
começara já fazia mais de dois anos.
– Ela
pediu para que eu ralhasse seriamente com Pedrinho. Que o fizesse
voltar às aulas na casa de Dona Bárbara.
Novo
sorriso e o mesmo silêncio.
– Já
fiz de tudo, mas o menino não aprende. Se esquece do que já
aconteceu com ele. Já ameacei até. Mas...
Antão
apenas balbuciou.
– É
assim mesmo.
– Mas
não deveria ser assim. Ele abusa porque sabe que a gente o conhece
bem novinho. E pra falar a verdade as minhas aulas são mais bem
dadas quando ele vem. Agora, não. Deu para se dirigir para o lado do
encanamento com aquela gaiola de passarinho...
Como
Antão não queria mesmo conversar e, cada vez mais, conforme o tempo
passava, se tornava mais mudo e mais arredio. Só parecendo reviver
quando aparecia a possibilidade de um milagre. Ananias sentou-se em
sua cadeira um pouco mal-humorado. Logo depois levantou-se
resmunguento.
– Hoje
você vai me desculpar, mas preciso de outra vela. Pelo menos uma,
que afaste um pouco a minha tristeza.
Antão
tornou a sorrir e virou a cabeça para o seu lado.
– Pois
se o problema é esse, acenda mais uma, ou quantas quiser, meu
irmãozinho.
O
anjo, satisfeito o desejo, sentou-se, mas imediatamente levantou-se e
apagou a vela recém-acendida.
– E
agora?
– Eu
me enganei. Estava melhor do outro jeito.
Soltou
um longo suspiro, que encheu a sala de velhos ecos.
– Não
quer pelo menos provar uma cocada da velha?
– Não
agora.
– Pois
você devia comer um pouco mais. Está tão magro que começa a ficar
transparente.
– Minha
fome é outra.
E
durante o resto da noite nada mais disse e nem lhe foi perguntado.
Ananias mordiscava a cocada lentamente. E a cocada foi trazendo uma
paz de espírito imensa. Era o doce da ternura que começava a
retornar ao seu coração. E sem querer foi-se lembrando de uma
história linda, referente a Vovó Sinhazinha.
E
daquela vez não era noite e sim um fim de tarde. Um pequeno espaço
que liga o entardecer à noite. Pois bem, a velhinha batera à porta
dos dois. Nem podia falar. Chorava doído e a fala tropeçava para
cair fora da boca.
– É
Pedrinho, seu Antão. E eu vim... não tenho dinheiro para lhe
pagar... Mas salve meu filho. Salve meu filho, por amor de Deus e do
que é mais santo no mundo!...
Os
gestos das mãos trôpegas acompanhavam as falas do desespero.
– Venha,
Vovó. Entre e fale com calma. Ninguém aqui se incomoda com
dinheiro. O que foi? Conte direitinho. Assim.
A
velha foi contando misturando a desgraça que surgia com a utilidade
do passado. Repetindo a história que Antão e Ananias já conheciam
de sobra.
“Apanhara
um menino abandonado à sua porta. Um molequinho lindo e branco. Até
gordinho, de pulseirinha de gordura em volta das mãos. Criara-o.
Dera o de comer e repartira com o seu corpo pedaços de seus
molambos. Dera-lhe carinho e um casebre. E o menino correspondeu.
Pedrinho possuía boa índole. Enchera o vazio de sua velhice e
repartira as ave-marias do seu terço antes do sono. Nos seus planos
até via o menino de coroinha e, mais tarde, segurando Deus entre os
dedos. Um padre belo e santíssimo. Por enquanto vendia na feira, na
estação, gritando pelas ruas a doçura da cocada – puxa de Vovó
Sinhazinha. Quem não conhecia o gosto da cocada do norte nascida das
mãos brancas da velhinha? E todo mundo comprava. Tinha boa
freguesia, mas tudo era ajudado pela voz, pelos olhos, pela face
corada, pelo riso despejando infância de Pedrinho... Agora ele
estava lá, duro, inanimado, respirando pela boca da morte. Viera
carregado. Subira para apanhar ninho de passarinho na goiabeira e,
tróquete, o galho quebrara. Está lá, duro, inanimado...”
Tudo
se confundia nos olhos de Ananias, que acompanhara para ajudar. A
pobreza do casebre. A mesa de toalha remendada. A folhinha Bayer com
os números vermelhos e grandes, aprisionados no quadrado dos meses.
Os ossos do pau a pique aparecendo onde o barro caíra. A mortiça
luz de uma candeia, que parecia baixar mais o teto e ampliar a
escuridão do quartinho. A luz da tarde, que morria, se arremessava
tão magra e impotente pela janela e nem tinha forças suficientes
para ajudar a luz da candeia. Ananias permaneceu na porta do quarto
para não estorvar nem atulhar demasiado o ambiente.
O
menino jazia duro entre as paredes velhas e o cheiro de pobreza que
devastava o ambiente. A moringa no canto sobre um caixote. Uma toalha
branca e cerzida tentando ser cortina na janela. A colcha de retalhos
cobrindo o corpo da criança. O teto de sapé. A tristeza e a
ansiedade das lágrimas de Vovó Sinhazinha. O seu medo de ficar só
na velhice. De possuir sozinha o tudo que dividira com felicidade.
– Cure,
seu Antão. É que nem meu filho. Só tenho ele e o resto da vida que
vai me sobrar. Olhe, seu Antão!...
E
a dureza do menino não respondia, calava.
– Por
São João Batista, cure ele. Prometi que ia na procissão de São
Sebastião. Prometi um ano de rosários para as almas do purgatório.
Ai, meu São João. Meu São Joãozinho do carneirinho no colo. Olhe
que ele é meu filho e eu prometo soltar um foguete na sua véspera.
Prometo...
E
o menino continuava imóvel por mais promessas que Vovó Sinhazinha
pudesse imaginar. Antão colocou a mão na boca da velha e falou com
uma bondade imensa.
– Não
faça promessas. Ele fica bom. Quietinha, Vovó.
Ajoelhou
as pernas magras no chão duro. Descobriu o peito da criança
expulsando a colcha de retalhos. Trouxe a vela para perto dos seus
olhos fechados e fixou aquela vida quase morta, por um segundo. O
rosto do santo se enrijeceu. Seus olhos criaram um brilho magnífico.
O peito do menino arfou devagarinho. As lágrimas se estagnaram nos
olhos da velha.
Ainda
ajoelhado, molhou um trapo de lenço na boca da moringa e começou a
friccionar a testa de Pedrinho. Sua voz veio saindo e nunca houve voz
mais doce.
– Acorde,
meu filho. Acorde, abra os olhos devagarinho. Você é tão lindo
para a vida e a vida vai ser linda para você. Acorde. Abra os olhos.
Assim, filhinho...
O
menino respirou forte e tossiu levemente. Respirou mais forte ainda.
A cama de taquara rangeu. O rosto revolveu-se no travesseiro. Os
olhos se entreabriram curiosos, como se vissem a vida pela primeira
vez. Olhou em volta e sorriu e foi fechando os olhos novamente e tudo
devagar...
– Agora,
você vai dormir de novo. Amanhã acordará bom. O sono da noite será
tão lindo como a vida que caminha para você.
Passou
os dedos quase roçando os olhos fechados de Pedrinho. Abaixou-se e
segredou ao seu ouvido:
– Amanhã
você poderá ver o que de belo existe na vida, sim? Vai ver as cores
da rua, vender as cocadas de Vovó e... apanhar passarinhos pela rua.
A
velha não falava. Custava a acreditar no que vira. Antão puxou-a
para fora do quarto e abraçou a velha, que queria agradecer e nem
podia.
– Até
logo, Vovó. Não se esqueça que prometeu um foguete para São João
e São
João
vai cobrar. Ele gosta de barulho e estouro. Até breve.
Ananias
voltou e viu que a cabeça do irmão pendia sonolentamente e sentiu
um bem-querer enorme. E continuou a se lembrar do resto da história
que não terminara e nem poderia nunca esquecer.
Vovó
Sinhazinha cumprira e ainda cumpria as promessas que fizera. As
maiores, como o rosário pelas almas do purgatório, ainda iam durar
tempão. Mas quando veio chegando o São João... Deus do céu!
Quando chegou a véspera de São João... Me ajuda, Nossa Senhora do
meu Murundu!... Ai, meu São Jesus!... O MEDO surgiu em letras
maiúsculas. Aquele medo que tinha de foguetes.
Mastigou
a resolução demoradamente. Dirigiu-se até a barraquinha de Mané
Fogueteiro, desembrulhou os níqueis do lenço. Mirou os fogos na
prateleira. Sua vista tremeu mais do que suas pernas. Os foguetes
encostados na parede tomavam verdadeiras proporções de monstros.
Eram enormes, grandes, tão grandes como o seu pavor. Olhou sem saber
o que fazer para o rosto de Mané Fogueteiro. Fala que é bom não
saía, não. O seu velho indicador, crestado, enrugado, teimava em
não se erguer da mão, que, por seu turno, pesava como chumbo. E a
promessa? Tinha de cumprir. E Pedrinho morto na cama? Precisava
cumprir. Valei-me, meu São João do carneirinho no ombro! O medo era
tanto que trocava o lugar do carneirinho no santo. A custo,
balbuciou: “Foguete!...”.
– Foguete,
Vovó Sinhazinha? Então vai ter festa no rancho? É? – A angústia
proibia-lhe que dissesse: promessa.
– Quantos,
Vovó?
Continuava
ainda apatetada. Os foguetes cresciam mais. Logo, logo varariam o
teto.
– Um?
Dois?
Conseguiu
vencer um pequeno buraco no seu medo.
– Promessa.
– Então
leve dois, Vovó. Se falhar um, tem outro.
Dois?
Era necessário levar dois? Um já se tornava um pesadelo: E se
falhasse um, São João haveria de querer o outro.
Mané
Fogueteiro tinha razão. Abanou a cabeça, concordando.
O
fogueteiro colocou os foguetes majestosos sobre o balcão, recebendo
o dinheiro. Foi preciso que os colocasse apertados nas mãos trêmulas
de Vovó Sinhazinha.
– Não
tenha medo. Eles só estouram se tocar fogo aqui.
Ela
se foi, pequenina, medrosa, cobrindo a cabeça dos foguetes, o lugar
do perigo, imaginando milhares de maneiras impossíveis de que eles
pudessem estourar. Olhando temerosa os moleques que passavam, dos
lugares onde podiam soltar uma bomba, se afastando das fogueiras da
rua, mesmo estando elas ainda apagadas. As flechas se arrastavam no
chão, riscando a rua. A casa nunca que chegava. A distância parecia
ter se aumentado, porque os seus pés viraram pesos de balança...
De
noite ela foi chorando à casa dos santos.
– Outra
queda, Vovó?
Nem
responder pôde. A lembrança da obrigação de soltar o foguete
prometido estourou os receios que economizara da sua casa à casa de
Antão.
– O
foguete... A promessa...
Antão
logo compreendeu.
– Tanto
medo assim, Vovó?
– Ai
que eu morro! Mas preciso cumprir.
– Irei
com a senhora.
Chamou
Ananias.
– Vamos
dar um pulinho até lá.
E
vieram atravessando a rua. A noite estava começando também a sair
de casa soltando estrelas que não eram de São João. Os primeiros
balões cruzavam os céus.
Defronte
de cada porta uma fogueira mirrada já acesa.
– Boa
noite, seu Antão.
– Boa
noite, seu Ananias. Não quer uma batata assada? Tome um gole de
caldo de cana.
A
rua se transformara em festa de gritos, de bombas e traques, de
rostos afogueados. O riso se transmitia simples em cada face. E o
começo da vida, a roda da infância, brincando em cada olhar.
Chegaram.
Vovó Sinhazinha foi explicando:
– Mandei
Pedrinho ir brincar. Não queria que ele visse que eu tinha medo de
soltar o foguete.
Entraram.
Escondidos no quarto, os dois soberbos foguetes se apoiavam na parede
com as cabeças escondidas num pano velho.
– Lá.
E
foi tudo quanto pôde pronunciar.
Ananias
apanhou os fogos, trazendo-os para fora.
As
lágrimas começaram a deslizar pelo rosto emurchecido da velhinha.
Um tremor acompanhado de um porejar frio sacudia, invadia seus
membros cansados de emoção. “Não! Antes morrer. Não podia.
Estava para desistir. Meu São João. Era demasiado. Aquilo foi num
momento de agonia.”
Mas
reviu o menino duro, sem respirar quase. São João podia
aborrecer-se e tudo acontecer de novo.
Antão
sorria com calma para a velha.
– Não
é nada, Vovó. A gente encosta a brasa no estopim, ela queimando faz
chabum e dá o arranco da subida. Vovó larga as mãos e ele vai
buscar o céu, pagando a sua promessa para São João.
Ela
tremia e não arredava os pés.
– Vá
buscar a brasa na cozinha, Ananias.
E
a brasa veio.
O
medo e as lágrimas aumentando. Quase pânico.
– Vamos,
Vovó. É tão simples. Vai ser a promessa mais bonita de São João.
Ela
não se decidia. Pensava mil coisas. E se não subisse? E se tomasse
a direção errada e incendiasse o sapé do rancho? Vinha um incêndio
e pronto. Podia também cair em outra casa de sapé e ela seria presa
na certa. Queria correr, fugir, rezar... Mas logo divisava Pedrinho,
morto, paralisado...
– Eu
pego na sua mão. Veja. Não há que temer.
Tentou
fechar os olhos e quase não conseguiu devido a tanto choro. Entregou
as mãos endurecidas de pavor. Antão enrodilhou os seus dedos contra
a flecha. Uma mão mais baixa e a outra mais para cima.
– Vai
ser um instante, Vovó.
Não
abria os olhos. Agora as lágrimas pregavam as suas pálpebras
grudentamente. Naquele instante todo o medo da sua vida se juntava.
Toda a angústia de uma vida simples e sacrificada, coalhada de
medinhos, covardias que se misturavam com lutas, tristezas e
vitórias. O coração cansado de pequenas e grandes dores. O coração
batendo tanto tempo, sem parar, amedrontado com os ruídos do
progresso, com o medo do trem, do aeroplano, do eclipse, da morte,
estava parando de susto...
– Abra
os olhos, Vovó.
Suspendeu
a mão direita da velha contra a sua que segurava a brasa.
– Agora.
Encostou
fogo ao estopim, veio o chiado, o chiado foi crescendo, crescendo,
crescendo. Suas pernas bambearam, mas Antão apoiava o seu corpo. Sua
alma morria, sua coragem desmaiava. E o chiado, cresceu mais, cresceu
mais... Um arranco e o foguete foi procurar a alma da noite cheia de
estrelas. Foi aproximar-se dos balões.
Subiu...
Subiu... Subiu... até que, totalmente livre, estourou em lágrimas
coloridas. Vovó Sinhazinha abriu os olhos num encantamento
maravilhoso. E fora ela, fora ela quem mandara o foguete mais bonito
para São João. Estrelas verdes, amarelas, encarnadas que vinham
descendo e se apagando. Seus olhos devoravam o espetáculo,
maravilhados.
E
fora ela. Seu corpo adquiriu um vigor extraordinário. Trocou as
lágrimas pelo sorriso. Riu para Antão. Riu para Ananias. Limpou com
as costas da mão o rosto molhado. Então tomou aquela decisão.
Ela,
mesmo sem nada dizer, arrancou o outro foguete das mãos de Ananias.
Empinou o bicho para o ar, juntou a brasa no estopim, esperou o
chiado e ele deu o arranco da subida. Perdera o medo. Tudo tão
simples.
E
ele subiu mais bonito ainda. Subiu... Subiu e explodiu em gotas de
estrelas. O seu rosto velho se iluminou de mil cores. As rugas
criaram vida, e sem querer começou a bater palmas para cada estrela,
verde, encarnada e amarela...
Aquele
era o mais lindo milagre de Antão.
Tomou-se
de ternura e aproximou-se da cabeça pendente do irmão mais velho.
Suspendeu-a carinhosamente, enquanto a outra mão tocava nos seus
ombros.
– Vamos
dormir, meu irmãozinho. É tarde. Você está cansado e a vela vai
se apagar.
José de Mauro Vasconcelos, in Rua Descalça
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