sexta-feira, 11 de março de 2022

Capítulo Quinto | A ternura do milagre

Depois da morte, gurufim e enterro e garimpagem dos trinta contos (e ninguém achou), a vida se tomou de tal calma que dava para desconfiar.
Ananias ficava cada vez mais admirado com o poder de sublimação do irmão. A vida dele se pontilhara naquela calma. Nos olhos moravam a paz e a bondade de mãos dadas. E tudo que fazia e tudo que não fazia se resumia numa santidade natural. Seus gestos eram completos. O bem praticado se distribuía para quem precisasse. Admitia o mundo como aparecia. As pessoas podiam ser boas ou ruins. Não julgava. Não exigia que ninguém fosse sempre bom, forçando uma situação para ser bom. Tudo precisava ser espontâneo. Sendo espontâneos, os homens eram naturalmente bons ou sinceramente maus. E o bem que só ele sabia distribuir não vinha medido ou escolhido. Esquecer do que fizera e para quem fizera. Seus olhos viviam apenas o momento do milagre com uma força transcendental, incontida. Rezava aquela prece brilhante, incompreensível e retornava ao âmago de sua paz. Esquecido, mas em humildade. Como se nada mais fosse do que uma corrente necessária para transmitir algo de superior. Obedecendo talvez as ordens maiores que lhe eram imputadas. Só aquilo. Nada mais que aquilo.
Depois perdia-se nele mesmo. Bastando-se a si próprio. Desdobrando-se introspectivamente para a sua alma. Vivendo as conversas do seu silêncio. Meditando, exilando-se com os olhos claros na distância dos seus pensamentos, no mistério das horas, no comprido das noites. Sentava-se naquela cadeira. Acendia uma vela, acolhia Raça Dura sobre o colo e, enquanto sua vista viajava, seus dedos desfilavam no pelo do gato.
E o estranho gato viera não se sabia de onde. Aproximara-se um dia de Antão e o fitara pedindo amizade e compreensão. Antão o alisou com o olhar e fez minchinho, minchinho. Então Raça Dura ficou. Sentiu-se mais que natural dentro do aconchego do abandono de Antão.
Foi quando Ananias resolveu interromper o mundo paralisado de Antão, que se revolveu na cadeira de braços.
Vovó Sinhazinha deixou umas cocadas para você.
Antão apenas de leve sorriu e acenou com a cabeça, como se já tivesse visto as cocadas. A amizade de Vovó Sinhazinha, sobretudo com Antão, começara já fazia mais de dois anos.
Ela pediu para que eu ralhasse seriamente com Pedrinho. Que o fizesse voltar às aulas na casa de Dona Bárbara.
Novo sorriso e o mesmo silêncio.
Já fiz de tudo, mas o menino não aprende. Se esquece do que já aconteceu com ele. Já ameacei até. Mas...
Antão apenas balbuciou.
É assim mesmo.
Mas não deveria ser assim. Ele abusa porque sabe que a gente o conhece bem novinho. E pra falar a verdade as minhas aulas são mais bem dadas quando ele vem. Agora, não. Deu para se dirigir para o lado do encanamento com aquela gaiola de passarinho...
Como Antão não queria mesmo conversar e, cada vez mais, conforme o tempo passava, se tornava mais mudo e mais arredio. Só parecendo reviver quando aparecia a possibilidade de um milagre. Ananias sentou-se em sua cadeira um pouco mal-humorado. Logo depois levantou-se resmunguento.
Hoje você vai me desculpar, mas preciso de outra vela. Pelo menos uma, que afaste um pouco a minha tristeza.
Antão tornou a sorrir e virou a cabeça para o seu lado.
Pois se o problema é esse, acenda mais uma, ou quantas quiser, meu irmãozinho.
O anjo, satisfeito o desejo, sentou-se, mas imediatamente levantou-se e apagou a vela recém-acendida.
E agora?
Eu me enganei. Estava melhor do outro jeito.
Soltou um longo suspiro, que encheu a sala de velhos ecos.
Não quer pelo menos provar uma cocada da velha?
Não agora.
Pois você devia comer um pouco mais. Está tão magro que começa a ficar transparente.
Minha fome é outra.
E durante o resto da noite nada mais disse e nem lhe foi perguntado. Ananias mordiscava a cocada lentamente. E a cocada foi trazendo uma paz de espírito imensa. Era o doce da ternura que começava a retornar ao seu coração. E sem querer foi-se lembrando de uma história linda, referente a Vovó Sinhazinha.
E daquela vez não era noite e sim um fim de tarde. Um pequeno espaço que liga o entardecer à noite. Pois bem, a velhinha batera à porta dos dois. Nem podia falar. Chorava doído e a fala tropeçava para cair fora da boca.
É Pedrinho, seu Antão. E eu vim... não tenho dinheiro para lhe pagar... Mas salve meu filho. Salve meu filho, por amor de Deus e do que é mais santo no mundo!...
Os gestos das mãos trôpegas acompanhavam as falas do desespero.
Venha, Vovó. Entre e fale com calma. Ninguém aqui se incomoda com dinheiro. O que foi? Conte direitinho. Assim.
A velha foi contando misturando a desgraça que surgia com a utilidade do passado. Repetindo a história que Antão e Ananias já conheciam de sobra.
Apanhara um menino abandonado à sua porta. Um molequinho lindo e branco. Até gordinho, de pulseirinha de gordura em volta das mãos. Criara-o. Dera o de comer e repartira com o seu corpo pedaços de seus molambos. Dera-lhe carinho e um casebre. E o menino correspondeu. Pedrinho possuía boa índole. Enchera o vazio de sua velhice e repartira as ave-marias do seu terço antes do sono. Nos seus planos até via o menino de coroinha e, mais tarde, segurando Deus entre os dedos. Um padre belo e santíssimo. Por enquanto vendia na feira, na estação, gritando pelas ruas a doçura da cocada – puxa de Vovó Sinhazinha. Quem não conhecia o gosto da cocada do norte nascida das mãos brancas da velhinha? E todo mundo comprava. Tinha boa freguesia, mas tudo era ajudado pela voz, pelos olhos, pela face corada, pelo riso despejando infância de Pedrinho... Agora ele estava lá, duro, inanimado, respirando pela boca da morte. Viera carregado. Subira para apanhar ninho de passarinho na goiabeira e, tróquete, o galho quebrara. Está lá, duro, inanimado...”
Tudo se confundia nos olhos de Ananias, que acompanhara para ajudar. A pobreza do casebre. A mesa de toalha remendada. A folhinha Bayer com os números vermelhos e grandes, aprisionados no quadrado dos meses. Os ossos do pau a pique aparecendo onde o barro caíra. A mortiça luz de uma candeia, que parecia baixar mais o teto e ampliar a escuridão do quartinho. A luz da tarde, que morria, se arremessava tão magra e impotente pela janela e nem tinha forças suficientes para ajudar a luz da candeia. Ananias permaneceu na porta do quarto para não estorvar nem atulhar demasiado o ambiente.
O menino jazia duro entre as paredes velhas e o cheiro de pobreza que devastava o ambiente. A moringa no canto sobre um caixote. Uma toalha branca e cerzida tentando ser cortina na janela. A colcha de retalhos cobrindo o corpo da criança. O teto de sapé. A tristeza e a ansiedade das lágrimas de Vovó Sinhazinha. O seu medo de ficar só na velhice. De possuir sozinha o tudo que dividira com felicidade.
Cure, seu Antão. É que nem meu filho. Só tenho ele e o resto da vida que vai me sobrar. Olhe, seu Antão!...
E a dureza do menino não respondia, calava.
Por São João Batista, cure ele. Prometi que ia na procissão de São Sebastião. Prometi um ano de rosários para as almas do purgatório. Ai, meu São João. Meu São Joãozinho do carneirinho no colo. Olhe que ele é meu filho e eu prometo soltar um foguete na sua véspera. Prometo...
E o menino continuava imóvel por mais promessas que Vovó Sinhazinha pudesse imaginar. Antão colocou a mão na boca da velha e falou com uma bondade imensa.
Não faça promessas. Ele fica bom. Quietinha, Vovó.
Ajoelhou as pernas magras no chão duro. Descobriu o peito da criança expulsando a colcha de retalhos. Trouxe a vela para perto dos seus olhos fechados e fixou aquela vida quase morta, por um segundo. O rosto do santo se enrijeceu. Seus olhos criaram um brilho magnífico. O peito do menino arfou devagarinho. As lágrimas se estagnaram nos olhos da velha.
Ainda ajoelhado, molhou um trapo de lenço na boca da moringa e começou a friccionar a testa de Pedrinho. Sua voz veio saindo e nunca houve voz mais doce.
Acorde, meu filho. Acorde, abra os olhos devagarinho. Você é tão lindo para a vida e a vida vai ser linda para você. Acorde. Abra os olhos. Assim, filhinho...
O menino respirou forte e tossiu levemente. Respirou mais forte ainda. A cama de taquara rangeu. O rosto revolveu-se no travesseiro. Os olhos se entreabriram curiosos, como se vissem a vida pela primeira vez. Olhou em volta e sorriu e foi fechando os olhos novamente e tudo devagar...
Agora, você vai dormir de novo. Amanhã acordará bom. O sono da noite será tão lindo como a vida que caminha para você.
Passou os dedos quase roçando os olhos fechados de Pedrinho. Abaixou-se e segredou ao seu ouvido:
Amanhã você poderá ver o que de belo existe na vida, sim? Vai ver as cores da rua, vender as cocadas de Vovó e... apanhar passarinhos pela rua.
A velha não falava. Custava a acreditar no que vira. Antão puxou-a para fora do quarto e abraçou a velha, que queria agradecer e nem podia.
Até logo, Vovó. Não se esqueça que prometeu um foguete para São João e São
João vai cobrar. Ele gosta de barulho e estouro. Até breve.
Ananias voltou e viu que a cabeça do irmão pendia sonolentamente e sentiu um bem-querer enorme. E continuou a se lembrar do resto da história que não terminara e nem poderia nunca esquecer.
Vovó Sinhazinha cumprira e ainda cumpria as promessas que fizera. As maiores, como o rosário pelas almas do purgatório, ainda iam durar tempão. Mas quando veio chegando o São João... Deus do céu! Quando chegou a véspera de São João... Me ajuda, Nossa Senhora do meu Murundu!... Ai, meu São Jesus!... O MEDO surgiu em letras maiúsculas. Aquele medo que tinha de foguetes.
Mastigou a resolução demoradamente. Dirigiu-se até a barraquinha de Mané Fogueteiro, desembrulhou os níqueis do lenço. Mirou os fogos na prateleira. Sua vista tremeu mais do que suas pernas. Os foguetes encostados na parede tomavam verdadeiras proporções de monstros. Eram enormes, grandes, tão grandes como o seu pavor. Olhou sem saber o que fazer para o rosto de Mané Fogueteiro. Fala que é bom não saía, não. O seu velho indicador, crestado, enrugado, teimava em não se erguer da mão, que, por seu turno, pesava como chumbo. E a promessa? Tinha de cumprir. E Pedrinho morto na cama? Precisava cumprir. Valei-me, meu São João do carneirinho no ombro! O medo era tanto que trocava o lugar do carneirinho no santo. A custo, balbuciou: “Foguete!...”.
Foguete, Vovó Sinhazinha? Então vai ter festa no rancho? É? – A angústia proibia-lhe que dissesse: promessa.
Quantos, Vovó?
Continuava ainda apatetada. Os foguetes cresciam mais. Logo, logo varariam o teto.
Um? Dois?
Conseguiu vencer um pequeno buraco no seu medo.
Promessa.
Então leve dois, Vovó. Se falhar um, tem outro.
Dois? Era necessário levar dois? Um já se tornava um pesadelo: E se falhasse um, São João haveria de querer o outro.
Mané Fogueteiro tinha razão. Abanou a cabeça, concordando.
O fogueteiro colocou os foguetes majestosos sobre o balcão, recebendo o dinheiro. Foi preciso que os colocasse apertados nas mãos trêmulas de Vovó Sinhazinha.
Não tenha medo. Eles só estouram se tocar fogo aqui.
Ela se foi, pequenina, medrosa, cobrindo a cabeça dos foguetes, o lugar do perigo, imaginando milhares de maneiras impossíveis de que eles pudessem estourar. Olhando temerosa os moleques que passavam, dos lugares onde podiam soltar uma bomba, se afastando das fogueiras da rua, mesmo estando elas ainda apagadas. As flechas se arrastavam no chão, riscando a rua. A casa nunca que chegava. A distância parecia ter se aumentado, porque os seus pés viraram pesos de balança...
De noite ela foi chorando à casa dos santos.
Outra queda, Vovó?
Nem responder pôde. A lembrança da obrigação de soltar o foguete prometido estourou os receios que economizara da sua casa à casa de Antão.
O foguete... A promessa...
Antão logo compreendeu.
Tanto medo assim, Vovó?
Ai que eu morro! Mas preciso cumprir.
Irei com a senhora.
Chamou Ananias.
Vamos dar um pulinho até lá.
E vieram atravessando a rua. A noite estava começando também a sair de casa soltando estrelas que não eram de São João. Os primeiros balões cruzavam os céus.
Defronte de cada porta uma fogueira mirrada já acesa.
Boa noite, seu Antão.
Boa noite, seu Ananias. Não quer uma batata assada? Tome um gole de caldo de cana.
A rua se transformara em festa de gritos, de bombas e traques, de rostos afogueados. O riso se transmitia simples em cada face. E o começo da vida, a roda da infância, brincando em cada olhar.
Chegaram. Vovó Sinhazinha foi explicando:
Mandei Pedrinho ir brincar. Não queria que ele visse que eu tinha medo de soltar o foguete.
Entraram. Escondidos no quarto, os dois soberbos foguetes se apoiavam na parede com as cabeças escondidas num pano velho.
Lá.
E foi tudo quanto pôde pronunciar.
Ananias apanhou os fogos, trazendo-os para fora.
As lágrimas começaram a deslizar pelo rosto emurchecido da velhinha. Um tremor acompanhado de um porejar frio sacudia, invadia seus membros cansados de emoção. “Não! Antes morrer. Não podia. Estava para desistir. Meu São João. Era demasiado. Aquilo foi num momento de agonia.”
Mas reviu o menino duro, sem respirar quase. São João podia aborrecer-se e tudo acontecer de novo.
Antão sorria com calma para a velha.
Não é nada, Vovó. A gente encosta a brasa no estopim, ela queimando faz chabum e dá o arranco da subida. Vovó larga as mãos e ele vai buscar o céu, pagando a sua promessa para São João.
Ela tremia e não arredava os pés.
Vá buscar a brasa na cozinha, Ananias.
E a brasa veio.
O medo e as lágrimas aumentando. Quase pânico.
Vamos, Vovó. É tão simples. Vai ser a promessa mais bonita de São João.
Ela não se decidia. Pensava mil coisas. E se não subisse? E se tomasse a direção errada e incendiasse o sapé do rancho? Vinha um incêndio e pronto. Podia também cair em outra casa de sapé e ela seria presa na certa. Queria correr, fugir, rezar... Mas logo divisava Pedrinho, morto, paralisado...
Eu pego na sua mão. Veja. Não há que temer.
Tentou fechar os olhos e quase não conseguiu devido a tanto choro. Entregou as mãos endurecidas de pavor. Antão enrodilhou os seus dedos contra a flecha. Uma mão mais baixa e a outra mais para cima.
Vai ser um instante, Vovó.
Não abria os olhos. Agora as lágrimas pregavam as suas pálpebras grudentamente. Naquele instante todo o medo da sua vida se juntava. Toda a angústia de uma vida simples e sacrificada, coalhada de medinhos, covardias que se misturavam com lutas, tristezas e vitórias. O coração cansado de pequenas e grandes dores. O coração batendo tanto tempo, sem parar, amedrontado com os ruídos do progresso, com o medo do trem, do aeroplano, do eclipse, da morte, estava parando de susto...
Abra os olhos, Vovó.
Suspendeu a mão direita da velha contra a sua que segurava a brasa.
Agora.
Encostou fogo ao estopim, veio o chiado, o chiado foi crescendo, crescendo, crescendo. Suas pernas bambearam, mas Antão apoiava o seu corpo. Sua alma morria, sua coragem desmaiava. E o chiado, cresceu mais, cresceu mais... Um arranco e o foguete foi procurar a alma da noite cheia de estrelas. Foi aproximar-se dos balões.
Subiu... Subiu... Subiu... até que, totalmente livre, estourou em lágrimas coloridas. Vovó Sinhazinha abriu os olhos num encantamento maravilhoso. E fora ela, fora ela quem mandara o foguete mais bonito para São João. Estrelas verdes, amarelas, encarnadas que vinham descendo e se apagando. Seus olhos devoravam o espetáculo, maravilhados.
E fora ela. Seu corpo adquiriu um vigor extraordinário. Trocou as lágrimas pelo sorriso. Riu para Antão. Riu para Ananias. Limpou com as costas da mão o rosto molhado. Então tomou aquela decisão.
Ela, mesmo sem nada dizer, arrancou o outro foguete das mãos de Ananias. Empinou o bicho para o ar, juntou a brasa no estopim, esperou o chiado e ele deu o arranco da subida. Perdera o medo. Tudo tão simples.
E ele subiu mais bonito ainda. Subiu... Subiu e explodiu em gotas de estrelas. O seu rosto velho se iluminou de mil cores. As rugas criaram vida, e sem querer começou a bater palmas para cada estrela, verde, encarnada e amarela...
Aquele era o mais lindo milagre de Antão.
Tomou-se de ternura e aproximou-se da cabeça pendente do irmão mais velho. Suspendeu-a carinhosamente, enquanto a outra mão tocava nos seus ombros.
Vamos dormir, meu irmãozinho. É tarde. Você está cansado e a vela vai se apagar.

José de Mauro Vasconcelos, in Rua Descalça

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