Quando
chegaram ao terreiro, os guerreiros carregando o negro demasiado
assustado, a comunidade cercou. Descobriram os olhos do animal e
todos se assombraram, os que soam e o animal. Estava suando e
respirava com dor, a boca enorme de muitos dentes, o tamanho em dobro
dos dentes para morderem até o osso. E todos se interrogaram se não
seria inimigo de perigo bastante, melhor que fosse matado ou deitado
ao quarto mar. E entoavam que era feroz, olhava com ferocidade, tinha
mãos largas, dobraria um curumim de seu tempo como se fosse um galho
seco, certamente alimentado por mordeduras furtivas, traiçoeiras,
nas mãos e nos pescoços dos que soam. Deve comer sem fogo, bichos
ainda vivos que tenham o azar de abeirar sua mão, sua boca.
Insistiam:
vejam
os dentes, a força dos dentes, o amplo da boca, tão grande toca
para um animal de tão pouco espírito.
E
o negro se enchia de ar, lutando contra seus próprios pulmões
acelerados, intensos. Estava amarrado e não poderia mal algum. Mas
era o contrário do que prometiam as sapiências da comunidade. Não
aparentava mansidão. Estava robustecido e desorientado na pressa e
no medo, teria certamente suas ganas de ferir. Sobrevivia. Não se
deitava a morrer, não era alegre com morrer, era propenso à vida. E
os guerreiros lhe puseram as lâminas junto ao pescoço e o encararam
com suas mais tenebrosas expressões de guerra. E os guerreiros
sentiram muita necessidade de matar e as femininas suplicavam que
assim fosse. Mais gritavam as femininas em alvoroço e os curumins e
as curatãs afugentaram para estremecerem longe seu pavor.
Mediram-lhe os braços, as pernas, como teria ossos largos, a cabeça
pesada sobre os ombros, o olhar cintilante, com urgência. Então,
Pai Todo chefiou:
façam-no
beber porque lhe acontece sede. Façam-no deitar porque lhe acontecem
dores no corpo e sono. Soprem-lhe as folhas, afastem os insectos.
Exalem fumos. Este pouco de animal é ao nosso cuidado. Será vivo.
Sua vida é por nossa dignidade.
E
a comunidade inteira se atarefou obediente mas assustadiça. Os
negros que por ali haviam passado eram mandados para muito embora.
Não havia costume de os tratar como da dignidade dos que soam. Havia
uma perplexidade insanável entre todos. Ainda assim, chefiados,
cumpriam com a gentileza com que a Verdadeiríssima Divindade havia
entoado abaeté para que os abaeté fossem existidos.
Foram
atar o curumim negro no exterior da aldeia. Cobertos seus olhos,
novamente o passaram para lá da entrada secreta da cerca e o foram
meter a caminho do areal. Ponderavam um cárcere que o deixasse a
salvo dos piores predadores, mas distante um bocado da aldeia, para
nem escutar nem cheirar. Atado e sem fuga possível, o negro já mais
descansado foi descoberto dos olhos e ficou ao luar sem outro ruído
ou expressão. Era deitado à espera. Esperou.
Os
guerreiros acorreram à comunidade novamente e fizeram notícia de
cuidado e brio. Pai Todo chefiou que por três noites assim ficasse o
negro atado. Haveria de provar sua paciência para a paz e merecer
ser libertado. Aparentado da escuridão, entenderam depois os abaeté,
um jacaré mínimo viu oportunidade de adentrar a boca ressonante do
negro e viveu no seu peito. Bem notaram que o sono lhe troava muito
mais alto, e que em seu interior se fazia escutar um crepitar e até
um movimento se via nas substâncias mais moles da barriga e acima da
barriga, por vezes muito junto da garganta. Imediato, o bafo do negro
mudou para insuportável e todos o lamentaram por se tornar pior. Era
mais torto também. E comunicavam ao pajé para que ele repensasse a
sorte do animal e até verificasse como não prometia mansidão, por
ser curumim muito robusto que haveria de maturar para uma força
ameaçadora. Mas o santo chefiava que o cuidado se mantivesse e que o
negro estava a cargo da alegria abaeté sem hesitar. E todos o iam
ver aos fundos onde o haviam amarrado e pasmavam a pegar-lhe nos
membros e a espreitarem também boca toda, a suspeitar do jacaré que
lhe fora viver dentro. Era, até ali, sem palavra. O negro, atónito
e sempre esperador, seguia sem tentar expressão alguma. Certamente
por ser ignorante, sem sapiência, sem conteúdo demasiado, muito ao
jeito de outras feras de aspecto mais inesperado. O negro era quieto
como uma onça quieta que não tivesse importância em ser amarrada e
observada de perto com empurrões e algumas batidas. Batiam-lhe para
que se virasse um pouco, para que subisse o braço, o outro braço, a
perna, abrisse as pernas, mostrasse os baixios extremamente externos,
grandes demasiado. Comentavam que a sua espécie era de dimensões
fartas. O tapir também crescia assim. E comentavam que o animal
escuro era quieto mas insolente, demorava sempre um pouco a cumprir o
movimento a que o obrigavam. E cumpria bufando, estaria perto de uma
mordedura, de uma tentativa de ataque. Que bom era estar tão
amarrado e indefeso. Que boa era a guerra dos abaeté, implacável,
certeira, obstinada, sagrada.
comunidade
toda se punha a caminho para espreitar de perto a fera tão parecida
com alguém. Até as femininas que, entre o asco e o fascínio,
comparavam o negro ao boto e à onça, à cobra e à ave escura.
Falavam de tudo quanto fosse também desiluminado e estabeleciam
pertenças como se a Verdadeiríssima Divindade houvesse decidido que
as vidas negras eram semelhantes obrigatoriamente. E, entre o asco e
o fascínio, muitas femininas assumiam gostar de como se compunha o
corpo do animal, tão protuberante, tão largo. As patas, entoavam
algumas femininas entusiasmadas, são pequenas rochas divididas por
dedos. E riam. Quando alguém perguntava se haveriam de lhe mexer,
mexer no corpo nocturno da fera, todas negavam. Longe iam os tempos
em que se negociava com os predadores. Essas necessidades de paz eram
antigas e a maturação da mata havia sanado a condenação das
femininas aos inimigos. Claro que nenhuma se deitaria com o negro,
nenhuma lhe mexeria o corpo, seria grotesco. Um filho entre uma
feminina e o negro seria também silêncio, uma carne incapaz de
entoar, uma refeição para a fome de algum jacaré que o houvesse de
caçar. Depois, tocavam-lhe com paus para atiçar o jacaré e riam.
Pelo mole da barriga, e acima da barriga, o jacaré se enfurecia e
movia passando a cauda de lado para outro e isso era perfeitamente
visível. O negro chegava a contorcer-se em dores, tão cheio de uma
outra fera, tão estreito para o seu crescimento gigante. E as
femininas aterrorizavam-se. Que horror, viver com um jacaré no
peito, ser por ele habitado, tão fundo na toca do espírito. Poderia
o jacaré morder o espírito se o negro tivesse um. Melhor seria não
juntarem suas peles porque os dentes rasgariam tudo e o pajé haveria
de se enfurecer por não se ter mantido o inimigo vivo. Umas
femininas iam e outras vinham. Traziam os transparentes para se
divertirem com aquela estranheza e com aquele medo. Mostravam o negro
aos curumins e às curatãs mais pequenas e gostavam de reparar como,
mesmo amarrado, fazia medo. Um medo seguro, sem perigo. E como fedia
da boca. Fedia demasiado da boca.
Numa
tarde, também Altura Verde escolheu o filho para observar o negro e
espiar por simples curiosidade. Entoou:
Honra,
abeira o animal negro, pensa no seu significado.
E
Honra abeirou ascoroso, seu rosto mais guerreiro montado, furioso,
ofendido, com vontade de diminuir o inimigo numa dentada só. Mas o
tamanho da fera era maior e os olhos redondos gigantes e estranhos
fixavam o abaeté fazendo sua leitura também incómoda. E o feio
perguntava:
que
estás a ver, bicho horrendo, o que vês.
Mas
o negro calava sem descodificar a língua do povo dos três mares.
Então, Altura Verde quis saber:
Honra,
que significa o negro. O que pode significar esse negro para a nossa
mata.
E
o guerreiro branco respondeu:
não
sinto.
O
animal, por seu lado, parecia estranhar Honra mais do que aos outros.
Estranhava certamente sua pele diferente, como poderia ser um caçado
igual ao que se tornara também.
Outros
assomaram e empunharam seus rostos de guerra para atormentar o
amarrado. Empunharam os rostos muito junto, até suportando o bafo do
negro, e o negro resistia. Se houvesse de ser um curumim frágil
teria sido desfeito num pranto medroso, cagado de estar caçado,
desenganado para morrer. Mas a presa observava também os rostos
ferozes com profundidade e talvez ponderasse na réstia de sua
inteligência animal o que lhe entoavam. Quando os guerreiros
discutiram a imprudência de acolher tal fera, voltando a
examinar-lhe os membros, os dentes, os baixios e os piolhos, quiseram
muito acabá-lo ali mesmo. Era o melhor. Era mesmo o melhor. Acabá-lo
ali como competia à sensatez de proteger a comunidade, tantas
femininas e transparentes dependentes de suas valentias. Assim se
puseram em brados e moveram nervosamente numa dança para pensarem e
gratificarem o sangue por sua fervura. Apontavam as lâminas ao
pescoço do negro e o negro inquietou um pouco até inquietar mais
porque se levantavam as vozes e o tumulto em seu redor descontrolava
bastante. Então, algum guerreiro vociferou:
eu
quero, eu quero, a mata quer, a mata é boa, a fera morta é alegria
da mata, minha arma é boa, a arma que mata. Eu vou matar.
Poderia
ser que apenas aliviasse sua vontade para a perder, mas o negro temeu
e entoou, na suja língua branca, um pedido:
Deus
me ajude.
E
seu bafo fedeu muito entre todos. E todos escutaram e sentiram aquele
nojo e Honra entendeu. Honra entoou:
é
a língua branca. A língua e o fedor da língua branca, a palavra
que apodrece na boca e apodrece a boca.
Os
guerreiros espantaram.
E
que significou.
Perguntaram.
O guerreiro branco respondeu:
suplicou
por sua divindade. Evocou sua divindade na mata abaeté.
Altura
Verde entoou:
então,
a Verdadeiríssima Divindade devorou. Sua esperança é a
ingenuidade. Está à mercê. Pobre animal capaz de vocabulário.
E
Honra pediu:
posso
falar branco com ele.
Altura
Verde, apavorado, respondeu:
não.
Fecha em tua boca esse perigo. Não te tentes nessas palavras pela
pouca importância de um animal tão amarrado e sem uso. Silencia tua
boca. Essa língua ainda não é uma arma que saibas usar sem
sucumbir também.
Naquele
instante, o negro encarou Honra e perguntou:
entendes
o que digo, rapaz branco. Entendes o que digo.
O
guerreiro branco, confuso, subitamente humilhado por não ser
indistinto entre todos os guerreiros da comunidade, escondeu o que
escutara e afastou-se. O pai lhe perguntou:
que
significou.
E
ele, uma e outra vez jurou:
nada.
Honra
fugiu dali. Decidiu que o negro lhe perigava tudo. Precisava de
morrer. Haveria de tornar para o matar. Era um absurdo que demorassem
aquela fera nos cuidados dos abaeté. Era um absurdo pretenderem
fazer de uma fera sem educação uma companhia para o mais gentil
povo.
Quando
anoitecesse, haveria de voltar e passar-lhe uma lâmina no pescoço.
Na noite, o negro haveria de morrer como um bocado de ideia que não
diferia da cegueira. Pertença da escuridão, quando alguém
descobrisse, pensariam todos que a noite o cortara sem reparar. O
negro à noite ficava sujeito a tudo quanto não prestava atenção.
O mínimo acaso seria bastante para o terminar. Desiluminado da pele,
no tempo desiluminado do dia, ninguém julgaria estranho que o animal
sucumbisse sem maior razão do que sua própria condição. O
guerreiro branco assim pensou e se convenceu. Ia ser muito mais
astuto do que os outros. Mais cauteloso do que o santo. Seria
surpreendente até para a intuição que os ancestrais inspiravam. O
negro era um animal domesticado pelo branco. Traria seus vícios e
suas chefias. As presas mansas afeiçoam ao predador, e fazem pelo
predador a tocaia, nem que tombem na morte, nem que só a morte seja
sua vitória e libertação. Era fundamental impedir aquele perigo.
Era absolutamente fundamental.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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