Pai
Todo chefiou que soubessem que o nome do curumim negro era Meio da
Noite, o pouco de corpo nocturno estava abrigado, seu espírito
estava abrigado. Honra enfureceu porque lhe era vedada a ofensa de
matar o povo dos três mares. O negro passava a ser do povo, o pajé
afirmava, era do povo, distinto das feras. E Honra perguntou:
de
que valerá a fera à alegria da mata.
E
o santo respondeu:
sinto
só o que está intuído, o curumim negro é digno e deverá
descansar. Será educado para a salvação. Será parte da alegria.
A
comunidade atrapalhou. Não sabia muito bem o que pensar, não sentiu
sensatez. E o santo explicou que o sentido era o da piedade. Chefiou
que sentissem piedade, chefiou que chorassem. A comunidade chorou.
Trouxeram
o negro ainda amarrado e de olhos vendados e o largaram junto ao coto
da figueira e afastaram. O santo abeirou, cortou livres os pulsos e
as pernas. Deixou que fosse inteiro e em pé para se mover, o negro
ficou calmo. O santo abriu seus braços, suas plumas subiram
adornando o corpo tardio, tocou o curumim que se deixou sempre
pacífico naquele gesto que o envolveu. Estava dentro da fogueira
fria das penas e essa bênção nunca fora possível às feras. As
feras não suportavam a paciência gentil de se acolherem entre as
penas do santo. Os abaeté aumentaram a esperança. O animal sanava
sua maldade e haveria de sobrar apenas manso, como fora prometido.
Seria um animal manso e em paz. Pai Todo entoou:
serás
Meio da Noite, o guerreiro nocturno, sábio de escurecer, sábio da
escuridão, digno entre os abaeté. Serás entre os que soam. Soa.
Pai
Todo insistiu:
soa.
O
negro notou um sorriso no guerreiro tardio e, mesmo sem entender o
que lhe
pedia,
entoou na branca língua inimiga:
fugi.
Eu fugi.
Os
guerreiros alardearam que Honra fosse abeirado. Que abeirasse e
escutasse o vocábulo inimigo para saber se era significado de paz ou
de guerra. E Honra escutou porque, quando o negro o distinguiu entre
os guerreiros, outra vez entoou:
fugi.
Estou livre. Entendes o que falo, rapaz branco. Tu entendes o que
falo.
O
guerreiro branco, ainda sem saber o que sentir acerca daquela maneira
de se lhe dirigir, descodificou:
é
em fuga, procura a liberdade.
Pai
Todo sentiu:
tem
o inimigo comum. O nosso inimigo comum. Aqui, é livre dele. Declaro
o abandono dos ninhos.
Estabelecido
o grau da tristeza, a comunidade obrigou-se à comoção.
E
o santo acrescentou:
Honra,
serás sua educação abaeté. Passarás como líquido por dentro de
seu espírito, o igarapé, a cobra amistosa, paciente e mudadora.
Serás por ele. Usarás com cuidado os vocábulos sujos e criarás
notícia do que sente o negro. Estarás atento. Os acordos com feras
são antigos e sagrados, tanto nos maturaram quanto nos deitaram em
perigo. Os abaeté sabem ser gentis na atenção. Estarás atento e
saberás sempre o que faz o animal tão semelhante a alguém, até
que seja alguém em cada gesto. Do seu nome haverá de fazer-se o
espírito. Verás como na toca do espírito lhe ficará a fundura
comum, a gratidão e a valentia em favor da mata.
O
guerreiro branco outra vez se coçou. Afastado e hesitante, nem
querendo muito abeirar, seguia sentindo que sua pele era tocada. Como
alguém chamando por ele, procurando acordá-lo, talvez.
E
o negro entoou:
tenho
fome. Tenho muita fome.
E
o bafo novamente desagradou todos em redor que se repugnaram e
perguntaram:
o
que quer. Sagrado Honra, o que quer a fera.
E
Honra respondeu:
comida.
Julgo que significa ter fome.
Pai
Todo chefiou:
Honra,
senta e come com o negro. Educa para nossa boa comida. Educa, Honra.
E
todos repetiram:
sagrado
Honra, sana o negro. Sana o negro de sua maldade. Cuida da alegria da
mata pela verdadeiríssima comunidade. Chefia que beba para aliviar
como fede. Seremos alegres.
Estavam
os dois servidos das melhores comidas e o guerreiro branco hesitava.
Os seus pensamentos eram instáveis. Entendia com dificuldade cada
coisa e oscilava entre enfurecer-se e ser gentil. Então, dispondo
cada coisa para a boca do negro, Honra escolhia a mandioca, essa
cultura muito domesticada, e não avançava. A comunidade inteira por
ali rondou, em espanto e alegrias, com ruídos e pressas, a rir de
tão inusitada ideia de sentar o branco a comer com o negro. Dois
aflitos. Dois feios. Honra sabia que humilhavam seu espírito,
repudiando sempre seu corpo, sua cor, e escutava como alardeavam com
irritação. Não poderia fazer nada. Era agora opaco, estava adulto,
nunca lhe perdoariam a precipitação, e ao povo só poderia ter-se
compaixão e absoluta fidelidade.
O
pajé chefiou que se afastassem. Era importante que os dois
diferentes de cor se acostumassem a seus próprios tamanhos e ideias.
O santo chefiou:
Honra,
entoa. Usa a língua branca. Protege-te e usa. Explica ao negro o seu
nome, a sua sorte, as suas obrigações, a gentileza.
E
Honra, com dificuldade, entoou branco assim:
a
mata abaeté recebe em sua alegria, dentro dos três mares, sob as
sombras de nossas tatajubas, à vista dos filhotes de tapir. Aqui é
o órgão vital onde o começo conserva seu sentido, sua raiz, lugar
da Verdadeiríssima Divindade. Tu és privilegiado. Eu, de todo o
modo, odeio tua figura, teu som, teu cheiro, essa palavra rapaz que
entoas, rapaz branco, eu sou abaeté, guerreiro opaco. É com fúria
que cumpro a gentileza porque esperava de nossos guerreiros a tua
morte, os teus ossos limpos para as flautas, o resto para apodrecer
como apodrecem as porcarias das mortes de todas as feras. Pai Todo
intuiu que tu serás alegria para a mata, aconteces para a piedade,
deves viver. E eu estou à procura de justiça na ideia da tua vida,
e meu bafo também apodrece revoltado na simples obrigação de
entoar branco os nossos sentimentos puros. Meu nome é Honra, sagrado
Honra, teu nome é Meio da Noite, sagrado Meio da Noite. Justifica
tua sorte para que eu acredite.
E
Meio da Noite respondeu:
sou
negro, consegui fugir, só entendo isto. De onde venho só havia dor.
Meus povos morrem a trabalhar, espancados sem razão, estuprados.
Meus povos negros morrem. Eu fujo de morrer e mais aceito ser mordido
por uma besta, devorado pela fome de algum predador, do que perder a
vida inteira a trabalhar sem descanso debaixo dos insultos e das
batidas. A fome dos bichos é mais digna do que a ganância do
branco. Meus povos começam a fugir. A minha fuga traz meus povos.
Honra
escutou, entendendo metades, e perguntou:
teus
povos.
O
negro respondeu:
todos
os meus povos.
Povos
das feras eram lineares. Cada fera, um povo. O negro era subitamente
múltiplo. O guerreiro branco pensou:
não
sinto.
Era
torto.
Honra
entoou:
afeiçoa
à alegria. Enquanto houver chefia, estarás como alguém. Pai Todo
explica que tu assemelhas a alguém enquanto não fores alguém. Nas
nossas memórias existem mil histórias de feras que viraram abaetés.
Animais que escolheram maior juízo e iniciaram grandes pensamentos
para caminharem junto de nós. Muitos dos que somos agora ainda
trazem marcas das duplas entre os que soam e os animais com os quais
foram negociados acordos de paz. Quero olhar para tua fealdade e
descobrir a garantia da paz. Debaixo do teu nome abaeté existes na
verdadeiríssima bênção. Eu tenho de obedecer. Mas toda a minha
natureza é fúria, e meu desejo primeiro era servir de teu corpo
morto.
Meio
da Noite, silenciado um pouco, buscou na sua estranheza uma expressão
e respondeu:
não
me odeies, rapaz branco. Sou apenas um rapaz negro que pede para
viver. Não sou um animal. Sou alguém, sim. Eu sou alguém. E só
lamento talvez a possibilidade de ser feio. Não sei ser bonito,
talvez. Eu não sei.
O
que entoavam era bocado entendido, pois nada significava por
completo. O vocabulário de Honra era escasso, misturado, equivocado.
Em sua cabeça, o discurso organizava melhor. Na boca, entre o bafo
piorando, apontava ao negro como débil talento. Um talento falho.
Meio da Noite muito comeu e julgou ser expulso mais tarde. Não veria
razão para que o acolhessem num cuidado tão externo à sua pele.
Tão outro cuidado comparado com o dos brancos que o haviam mercado e
colocado a trabalhar. Meio da Noite calculou que, se aquela sorte
fosse grande, o deixariam correr dali em fuga, apressado para longe
em busca do mocambo, a aldeia dos negros que se prometia para depois
de todas as malditas terras brancas.
Foram
chefiados de deitarem próximos. O feio branco lhe explicou.
Deitariam na maloca próximos. Dormir servia para libertar o espírito
da contingência física. Ele era caroço do corpo, mas germinava em
pleno no sonho.
Teu
sonho é uma mata inteira. De teu espírito floresce cada coisa,
brota tudo, existe onça, canta ave a alegria mais afinada. Devemos
dormir para dignificar o espírito que estará solto na imensidão da
ancestralidade.
Meio
da Noite escutou o branco e respondeu nada. Quando pousou a cabeça e
sentiu que era loucura amigar uma comunidade da mata, distinta na
língua, nos costumes e na pele, ponderou o espírito como caroço e
concebeu seu corpo largo como fruto. Talvez fosse tão simples quanto
isso. Fugira por ser tempo de colher. Não demoraria nas lavouras
senão para bichar e morrer. Era tempo de tomar seu próprio fruto e
o colher. Na escuridão da maloca, confuso, o feio negro considerou
que aquele dia fora um passo favorável para que viesse a ser feliz
ou, ao menos, jamais subjugado. Para o negro, sem diferença, a
felicidade e ser livre eram exactamente a mesma coisa.
Um
pouco depois, no silêncio profundo da maloca, comovido, Meio da
Noite pressentiu que Honra não dormia e isso lho perguntou. O
guerreiro branco respondeu:
penso.
Não consigo parar de pensar.
E
o negro entoou:
sagrado
Honra, se entendi o que aconteceu, se por sorte me salvaram, quero
que saibas que estou grato. Sou grato. Fujo sozinho mas sou
testemunha de milhares. Eu vi milhares. A minha vida é a prova de
que existiram, existem, e a minha voz será sempre uma pertença
deles também.
O
branco perguntou:
o
que significas com isso.
E
o negro respondeu:
obrigado,
sagrado Honra. A minha vida dignifica meu pai, minha mãe, meus avós,
meus irmãos, meus povos.
Honra
perguntou:
estás
a chorar, animal negro.
E
o negro entoou:
sim.
Então,
Honra chorou também. As feras eram incapazes de chorar. No sol
seguinte, até estupefacto, o guerreiro branco foi declarar ao pajé
que o negro era alguém. Entoou:
é
alguém, sagrado Pai Todo, intuí seu espírito. Eu intuí.
O
guerreiro branco sentou depois junto das águas e demorou. Esfregou
de seu corpo a impressão de lhe subir algum insecto pela perna,
outra vez observou sua solidão em redor e estranhou muito. Era
comovido com a fragilidade do negro. Por algum motivo que não podia
entender, pensava obstinadamente no negro como uma segunda natureza
sua, alguém que emanasse de seu próprio temor ou maravilha. O
guerreiro de corpo ocupado pensou:
quem
me toca. O que me toca. O que é subindo meu corpo. Chegando ao meu
corpo. Comigo. O que é comigo.
Perguntava.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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