domingo, 6 de março de 2022

Capítulo dez | Meus povos negros


Pai Todo chefiou que soubessem que o nome do curumim negro era Meio da Noite, o pouco de corpo nocturno estava abrigado, seu espírito estava abrigado. Honra enfureceu porque lhe era vedada a ofensa de matar o povo dos três mares. O negro passava a ser do povo, o pajé afirmava, era do povo, distinto das feras. E Honra perguntou:
de que valerá a fera à alegria da mata.
E o santo respondeu:
sinto só o que está intuído, o curumim negro é digno e deverá descansar. Será educado para a salvação. Será parte da alegria.
A comunidade atrapalhou. Não sabia muito bem o que pensar, não sentiu sensatez. E o santo explicou que o sentido era o da piedade. Chefiou que sentissem piedade, chefiou que chorassem. A comunidade chorou.
Trouxeram o negro ainda amarrado e de olhos vendados e o largaram junto ao coto da figueira e afastaram. O santo abeirou, cortou livres os pulsos e as pernas. Deixou que fosse inteiro e em pé para se mover, o negro ficou calmo. O santo abriu seus braços, suas plumas subiram adornando o corpo tardio, tocou o curumim que se deixou sempre pacífico naquele gesto que o envolveu. Estava dentro da fogueira fria das penas e essa bênção nunca fora possível às feras. As feras não suportavam a paciência gentil de se acolherem entre as penas do santo. Os abaeté aumentaram a esperança. O animal sanava sua maldade e haveria de sobrar apenas manso, como fora prometido. Seria um animal manso e em paz. Pai Todo entoou:
serás Meio da Noite, o guerreiro nocturno, sábio de escurecer, sábio da escuridão, digno entre os abaeté. Serás entre os que soam. Soa.
Pai Todo insistiu:
soa.
O negro notou um sorriso no guerreiro tardio e, mesmo sem entender o que lhe
pedia, entoou na branca língua inimiga:
fugi. Eu fugi.
Os guerreiros alardearam que Honra fosse abeirado. Que abeirasse e escutasse o vocábulo inimigo para saber se era significado de paz ou de guerra. E Honra escutou porque, quando o negro o distinguiu entre os guerreiros, outra vez entoou:
fugi. Estou livre. Entendes o que falo, rapaz branco. Tu entendes o que falo.
O guerreiro branco, ainda sem saber o que sentir acerca daquela maneira de se lhe dirigir, descodificou:
é em fuga, procura a liberdade.
Pai Todo sentiu:
tem o inimigo comum. O nosso inimigo comum. Aqui, é livre dele. Declaro o abandono dos ninhos.
Estabelecido o grau da tristeza, a comunidade obrigou-se à comoção.
E o santo acrescentou:
Honra, serás sua educação abaeté. Passarás como líquido por dentro de seu espírito, o igarapé, a cobra amistosa, paciente e mudadora. Serás por ele. Usarás com cuidado os vocábulos sujos e criarás notícia do que sente o negro. Estarás atento. Os acordos com feras são antigos e sagrados, tanto nos maturaram quanto nos deitaram em perigo. Os abaeté sabem ser gentis na atenção. Estarás atento e saberás sempre o que faz o animal tão semelhante a alguém, até que seja alguém em cada gesto. Do seu nome haverá de fazer-se o espírito. Verás como na toca do espírito lhe ficará a fundura comum, a gratidão e a valentia em favor da mata.
O guerreiro branco outra vez se coçou. Afastado e hesitante, nem querendo muito abeirar, seguia sentindo que sua pele era tocada. Como alguém chamando por ele, procurando acordá-lo, talvez.
E o negro entoou:
tenho fome. Tenho muita fome.
E o bafo novamente desagradou todos em redor que se repugnaram e perguntaram:
o que quer. Sagrado Honra, o que quer a fera.
E Honra respondeu:
comida. Julgo que significa ter fome.
Pai Todo chefiou:
Honra, senta e come com o negro. Educa para nossa boa comida. Educa, Honra.
E todos repetiram:
sagrado Honra, sana o negro. Sana o negro de sua maldade. Cuida da alegria da mata pela verdadeiríssima comunidade. Chefia que beba para aliviar como fede. Seremos alegres.
Estavam os dois servidos das melhores comidas e o guerreiro branco hesitava. Os seus pensamentos eram instáveis. Entendia com dificuldade cada coisa e oscilava entre enfurecer-se e ser gentil. Então, dispondo cada coisa para a boca do negro, Honra escolhia a mandioca, essa cultura muito domesticada, e não avançava. A comunidade inteira por ali rondou, em espanto e alegrias, com ruídos e pressas, a rir de tão inusitada ideia de sentar o branco a comer com o negro. Dois aflitos. Dois feios. Honra sabia que humilhavam seu espírito, repudiando sempre seu corpo, sua cor, e escutava como alardeavam com irritação. Não poderia fazer nada. Era agora opaco, estava adulto, nunca lhe perdoariam a precipitação, e ao povo só poderia ter-se compaixão e absoluta fidelidade.
O pajé chefiou que se afastassem. Era importante que os dois diferentes de cor se acostumassem a seus próprios tamanhos e ideias. O santo chefiou:
Honra, entoa. Usa a língua branca. Protege-te e usa. Explica ao negro o seu nome, a sua sorte, as suas obrigações, a gentileza.
E Honra, com dificuldade, entoou branco assim:
a mata abaeté recebe em sua alegria, dentro dos três mares, sob as sombras de nossas tatajubas, à vista dos filhotes de tapir. Aqui é o órgão vital onde o começo conserva seu sentido, sua raiz, lugar da Verdadeiríssima Divindade. Tu és privilegiado. Eu, de todo o modo, odeio tua figura, teu som, teu cheiro, essa palavra rapaz que entoas, rapaz branco, eu sou abaeté, guerreiro opaco. É com fúria que cumpro a gentileza porque esperava de nossos guerreiros a tua morte, os teus ossos limpos para as flautas, o resto para apodrecer como apodrecem as porcarias das mortes de todas as feras. Pai Todo intuiu que tu serás alegria para a mata, aconteces para a piedade, deves viver. E eu estou à procura de justiça na ideia da tua vida, e meu bafo também apodrece revoltado na simples obrigação de entoar branco os nossos sentimentos puros. Meu nome é Honra, sagrado Honra, teu nome é Meio da Noite, sagrado Meio da Noite. Justifica tua sorte para que eu acredite.
E Meio da Noite respondeu:
sou negro, consegui fugir, só entendo isto. De onde venho só havia dor. Meus povos morrem a trabalhar, espancados sem razão, estuprados. Meus povos negros morrem. Eu fujo de morrer e mais aceito ser mordido por uma besta, devorado pela fome de algum predador, do que perder a vida inteira a trabalhar sem descanso debaixo dos insultos e das batidas. A fome dos bichos é mais digna do que a ganância do branco. Meus povos começam a fugir. A minha fuga traz meus povos.
Honra escutou, entendendo metades, e perguntou:
teus povos.
O negro respondeu:
todos os meus povos.
Povos das feras eram lineares. Cada fera, um povo. O negro era subitamente múltiplo. O guerreiro branco pensou:
não sinto.
Era torto.
Honra entoou:
afeiçoa à alegria. Enquanto houver chefia, estarás como alguém. Pai Todo explica que tu assemelhas a alguém enquanto não fores alguém. Nas nossas memórias existem mil histórias de feras que viraram abaetés. Animais que escolheram maior juízo e iniciaram grandes pensamentos para caminharem junto de nós. Muitos dos que somos agora ainda trazem marcas das duplas entre os que soam e os animais com os quais foram negociados acordos de paz. Quero olhar para tua fealdade e descobrir a garantia da paz. Debaixo do teu nome abaeté existes na verdadeiríssima bênção. Eu tenho de obedecer. Mas toda a minha natureza é fúria, e meu desejo primeiro era servir de teu corpo morto.
Meio da Noite, silenciado um pouco, buscou na sua estranheza uma expressão e respondeu:
não me odeies, rapaz branco. Sou apenas um rapaz negro que pede para viver. Não sou um animal. Sou alguém, sim. Eu sou alguém. E só lamento talvez a possibilidade de ser feio. Não sei ser bonito, talvez. Eu não sei.
O que entoavam era bocado entendido, pois nada significava por completo. O vocabulário de Honra era escasso, misturado, equivocado. Em sua cabeça, o discurso organizava melhor. Na boca, entre o bafo piorando, apontava ao negro como débil talento. Um talento falho. Meio da Noite muito comeu e julgou ser expulso mais tarde. Não veria razão para que o acolhessem num cuidado tão externo à sua pele. Tão outro cuidado comparado com o dos brancos que o haviam mercado e colocado a trabalhar. Meio da Noite calculou que, se aquela sorte fosse grande, o deixariam correr dali em fuga, apressado para longe em busca do mocambo, a aldeia dos negros que se prometia para depois de todas as malditas terras brancas.
Foram chefiados de deitarem próximos. O feio branco lhe explicou. Deitariam na maloca próximos. Dormir servia para libertar o espírito da contingência física. Ele era caroço do corpo, mas germinava em pleno no sonho.
Teu sonho é uma mata inteira. De teu espírito floresce cada coisa, brota tudo, existe onça, canta ave a alegria mais afinada. Devemos dormir para dignificar o espírito que estará solto na imensidão da ancestralidade.
Meio da Noite escutou o branco e respondeu nada. Quando pousou a cabeça e sentiu que era loucura amigar uma comunidade da mata, distinta na língua, nos costumes e na pele, ponderou o espírito como caroço e concebeu seu corpo largo como fruto. Talvez fosse tão simples quanto isso. Fugira por ser tempo de colher. Não demoraria nas lavouras senão para bichar e morrer. Era tempo de tomar seu próprio fruto e o colher. Na escuridão da maloca, confuso, o feio negro considerou que aquele dia fora um passo favorável para que viesse a ser feliz ou, ao menos, jamais subjugado. Para o negro, sem diferença, a felicidade e ser livre eram exactamente a mesma coisa.
Um pouco depois, no silêncio profundo da maloca, comovido, Meio da Noite pressentiu que Honra não dormia e isso lho perguntou. O guerreiro branco respondeu:
penso. Não consigo parar de pensar.
E o negro entoou:
sagrado Honra, se entendi o que aconteceu, se por sorte me salvaram, quero que saibas que estou grato. Sou grato. Fujo sozinho mas sou testemunha de milhares. Eu vi milhares. A minha vida é a prova de que existiram, existem, e a minha voz será sempre uma pertença deles também.
O branco perguntou:
o que significas com isso.
E o negro respondeu:
obrigado, sagrado Honra. A minha vida dignifica meu pai, minha mãe, meus avós, meus irmãos, meus povos.
Honra perguntou:
estás a chorar, animal negro.
E o negro entoou:
sim.
Então, Honra chorou também. As feras eram incapazes de chorar. No sol seguinte, até estupefacto, o guerreiro branco foi declarar ao pajé que o negro era alguém. Entoou:
é alguém, sagrado Pai Todo, intuí seu espírito. Eu intuí.
O guerreiro branco sentou depois junto das águas e demorou. Esfregou de seu corpo a impressão de lhe subir algum insecto pela perna, outra vez observou sua solidão em redor e estranhou muito. Era comovido com a fragilidade do negro. Por algum motivo que não podia entender, pensava obstinadamente no negro como uma segunda natureza sua, alguém que emanasse de seu próprio temor ou maravilha. O guerreiro de corpo ocupado pensou:
quem me toca. O que me toca. O que é subindo meu corpo. Chegando ao meu corpo. Comigo. O que é comigo.
Perguntava.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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