sábado, 26 de março de 2022

Acontece que...

O que acontece? Quando ainda estão no carro, voltando de um jantar com amigos, já aparecem os comentários: “Bebi muito”; “Deu um sono”; “Amanhã tenho um dia tão difícil...” E nem deu meia-noite. É o código. Hoje não rola. Como ontem, como antes...
Cruzam a garagem rapidamente, atacados pela corrente de vento gelado. Nem encaram o porteiro. No elevador, cada um num canto. Ele quem aperta o botão do andar. Sempre é ele quem aperta, ela reparou. Ele que comanda. Gosta de. Ele quem dirige, atende o interfone, pega o jornal às manhãs, decide as férias, se está frio, se devem trocar de carro, de aparelhos de tevê, DVD, MP3.
Não estão nada bêbados. Poucas taças. Entram em casa e se separam. Cada um tem o seu ritual de dispersão, encerrar o dia, organizar, recolocar. Ela checa os e-mails e a ração para os gatos. Ele lista os afazeres da empregada, fica pouco tempo no banheiro, se joga na cama e liga a tevê.
Ela ainda toma um banho. Gasta alguns minutos se lambuzando com cremes. Checa cutículas indesejáveis, passeia os olhos pelo espelho de corpo inteiro: a frente e as costas, os cotovelos e as pernas. Seca o cabelo com um secador barulhento — o síndico irá reclamar um dia.
Entra no quarto. Ele dorme com o controle remoto na mão. Ela desliga apertando o botão da própria tevê, desliga o abajur, vai para o seu lado da cama e se deita no escuro. Coloca um travesseiro entre as pernas. Escuta um caminhão ao longe. Amanhã tem feira. A criança do vizinho chora, e um alarme dispara.
Um está de costas para o outro. Dorme? Não, porque ele ainda diz: “Boa noite.” Ela responde com um grunhido simpático, fica ainda um bom tempo de olhos abertos. E se pergunta: O que acontece?
Acontece que, estranhamente, ela precisa de colo. Que ela não sente mais aquele frisson quando cruza a garagem do prédio. Porque não o provoca mais no elevador, ignorando a câmera, desabotoando a camisa dele, esfregando o joelho nele, apalpando-o, assim que ele aperta o botão. Acontece que eles não se beijam mais quando entram em casa, não escutam uma música no escuro, que ela não senta no colo dele diante do computador, nem tomam banho juntos. Acontece que ela não olha mais para o espelho para checar o que irá mostrar daqui a pouco, nem planeja como entrar no quarto, para se oferecer enrolada numa toalha, engatinhar pela cama, roçar o nariz na perna dele, lamber do umbigo até a boca, deitar sobre ele como um cobertor, morder o seu pescoço, sua nuca, seu ombro. Acontece que ela não apagaria aquela tevê, nem a luz, nem a noite. E ele nem diria boa noite, mas bem-vinda. E depois de tudo, sim, dormiriam pesadamente; nenhum alarme, criança ou caminhão seriam notados.
Acontece que ela acordaria, e ele estaria ainda na cama. Acontece que ele não comenta mais a cor da sua calcinha, do seu esmalte, dos seus olhos. Acontece que ele não a elogia mais, não surpreende, não desafia, nem provoca, não confunde as palavras, nem engasga quando ela aparece de toalha, não corre mais atrás dela, não a acorda em cima dela, como uma manta, não abraça como uma toalha, não abriga como água quente.
Acontece que ele já saiu, quando ela se levantou da cama de manhã. Nenhum post está fixado, com algum carinho escrito. Nem rascunho de bilhete existe. Ele não irá mandar um torpedo do trabalho, nem um e-mail. Hoje em dia, quando viaja, não liga para dizer se houve turbulência, se o hotel é legal, se está nevando ou um sol de rachar.
Acontece que há tempos não repartem um cigarro, não se perdem por uma estrada de terra, não discutem se o que veem é um disco voador ou um satélite espião russo. Acontece que ele não a espia mais pelo buraco da fechadura, não tira fotos dela se enxugando no espelho, não dá sustos quando ela tem soluços, não beija os seus pés, não conta as suas pintinhas, não canta em voz alta pela casa, não a acorda lambendo a orelha dela.
Acontece que há muito não saem os dois sozinhos, e entram num filme sem saber o que a crítica achou. Sem lerem os créditos, sentados na última fileira, se tocando, se beijando. Acontece que eles não repartem mais a pipoca, o refrigerante zero, o drops. Acontece que o diferente virou eventual, a rotina, habitual. Que todo desconhecido já se revelou, que a surpresa é predita, que o consumado é fato, o previsível, farto, e o pressuposto, preposto.
O que acontece é que ela sente falta de ser notada e elogiada dentro de casa. De ter calafrios. De sentir a pele esquentar. Acontece que ultimamente ela se veste para ninguém. Que ela nem liga mais o rádio do carro. Que não a comove o xaveco no elevador do escritório. Que só troca e-mails de trabalho. Que ela almoça massa, se entope de pão e ainda se delicia com sorvete com caldas. E agora costuma pedir chantilly no café.
O que acontece com ela, que nem tinge mais o cabelo, falta à natação, não corre com as amigas, não compra sapatos, não troca a lente dos óculos riscada, não recebe mensagens românticas pelo celular?
Acontece que o incêndio se acomodou. Ela não se pergunta se é assim que tem que ser. Acontece. É cíclico, ouviu dizer. Pode ser que melhore. Por que perder o fôlego toda vez que o encontra? Já passou. Viva outra fase. Afaste essa vaidade. Não seja carente. Encare os fatos. A vida é assim. É?

Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola

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