É
assim que acontece. O velho dr. Bennett, nosso médico, sai do quarto
de hóspedes arrastando os pés e fecha delicadamente a porta. Muito
velho, uma coleção de rugas e papadas, o sr. Bennett foi nosso
médico a vida inteira. Ele estava lá quando eu nasci, cortando o
cordão, entregando meu corpo vermelho e enrugado para minha mãe. O
dr. Bennett nos curou de dezenas de doenças, e fez isso com o charme
e a educação de um médico de antigamente, o que, de fato, ele é.
É este mesmo homem que está ajudando meu pai a partir deste mundo,
e que sai agora do quarto dele, tira o estetoscópio dos velhos
ouvidos, olha para nós, minha mãe e eu, e sacode a cabeça.
— Não
há nada que eu possa fazer — diz com sua voz rascante. Ele tem
vontade de erguer as mãos no ar num gesto de impaciência, mas não
faz isso. De todo modo, está velho demais para gesticular. — Sinto
muito. Sinto muito mesmo. Se vocês tiverem algo pendente para
resolver com Edward, algo a dizer a ele, sugiro que o façam agora.
Já
estávamos esperando por isso. Minha mãe aperta minha mão e força
um sorriso amargo. Este não tem sido um período fácil para ela, é
claro. Nos últimos meses ela tem diminuído de tamanho e de ânimo,
viva mas distanciada da vida. Seu olhar não alcança o objetivo.
Olho para ela e parece perdida, como se não soubesse onde está, ou
quem é. Nossa vida mudou muito desde que papai veio para casa para
morrer. O processo de sua morte nos fez morrer um pouco. É como se,
em vez de ir trabalhar todo dia, ele tivesse que cavar seu próprio
túmulo nos fundos, no terreno atrás da piscina. E não de uma vez
só, mas um centímetro ou dois de cada vez. E é como se isso fosse
o que o deixou tão cansado, o que colocou aquelas olheiras negras
sob seus olhos, e não, como minha mãe insistia em chamar, a sua
terapia de raio X. Como se toda noite ao voltar depois de cavar, com
as unhas sujas de terra, ele dissesse: Bem, está quase na hora.
Consegui cavar mais um centímetro hoje. E minha mãe dissesse: Está
ouvindo isso, William? Seu pai cavou mais um centímetro hoje. E eu
dissesse: Que ótimo, papai, formidável. Se eu puder ajudar, é só
me dizer.
— Mãe
— eu digo.
— Eu
vou primeiro — ela diz. — E então, se eu achar que...
Se
achar que ele vai morrer, ela virá me chamar. É assim que
conversamos. Na terra dos moribundos, as frases ficam inacabadas,
você sabe como elas vão terminar.
Ela
então se levanta e entra no quarto. O dr. Bennett sacode a cabeça,
tira os óculos e os limpa com a ponta da gravata listrada de azul e
vermelho. Olho para ele, consternado. É muito velho, tremendamente
velho: por que meu pai está morrendo antes dele?
— Edward
Bloom — ele diz para ninguém em particular. — Quem poderia
imaginar?
E
quem poderia? A morte foi a pior coisa que poderia ter acontecido ao
meu pai. Eu sei como isso soa — é a pior coisa que pode acontecer
a todos nós —, mas foi especialmente terrível para ele,
principalmente nestes últimos anos de preparação, as doenças
progressivas que o incapacitaram nesta vida, embora parecessem estar
iniciando-o na próxima.
Pior
ainda, obrigaram-no a ficar em casa. Ele odiava isso. Odiava acordar
todo dia no mesmo quarto, ver as mesmas pessoas, fazer as mesmas
coisas. Antes disso ele tinha usado a casa como um posto de
reabastecimento de combustível. Um pai itinerante, a casa para ele
era uma parada a caminho de outro lugar, em busca de um objetivo que
não estava claro. O que o movia? Não era dinheiro; nós tínhamos
dinheiro. Tínhamos uma bela casa e alguns carros e a piscina no
quintal; parecia não haver nada que não pudéssemos ter. E não era
promoção — ele era dono do próprio negócio. Era algo mais do
que isso, mas eu não saberia dizer o quê. Era como se ele vivesse
num estado de constante aspiração; chegar lá, onde quer que fosse,
não era o mais importante: o importante era a batalha, e a batalha
seguinte, e a guerra era interminável. Então ele trabalhava sem
parar. Ficava semanas fora, em lugares como Nova York ou Europa ou
Japão, e voltava em horários pouco convencionais, nove da noite por
exemplo, e preparava um drinque, reclamando sua poltrona e sua
posição de dono da casa. E sempre tinha uma história fabulosa para
contar.
— Em
Nagoya — ele disse numa dessas noites de chegada, minha mãe
sentada em sua cadeira, ele na dele, e eu no chão a seus pés — vi
uma mulher de duas cabeças. Juro a vocês. Uma bela japonesa de duas
cabeças que executou a cerimônia do chá com muita graça e beleza.
Não dava para dizer qual das cabeças era mais bonita.
— Não
existe mulher de duas cabeças — eu disse.
— É
mesmo? — ele disse, acuando-me com os olhos. — Afirma o sr.
Adolescente-Que-Percorreu-o-Mundo-e-Viu-Tudo, muito obrigado. Eu
reconheço meu erro.
— É
mesmo? — eu disse. — Duas cabeças?
— E
uma dama da cabeça aos pés — ele continuou. — Uma gueixa, de
fato. Passou a maior parte da vida reclusa, aprendendo a complexa
tradição do mundo das gueixas e raramente é vista em público —
o que, é claro, explica o seu ceticismo. Tive a sorte de ter acesso
ao seu santuário por intermédio de uma série de amigos e contatos
governamentais. Tive de fingir que não havia nada de estranho nela,
é claro; se eu tivesse erguido uma única sobrancelha, isso teria
sido um insulto de proporções históricas. Simplesmente tomei meu
chá como os outros, murmurando baixinho alguns “Domo” que
significa obrigado em japonês.
Tudo
que ele fazia era sem paralelo.
Em
casa, a magia da sua ausência dava lugar ao hábito da sua presença.
Ele bebia um pouco. Ele não ficava zangado, e sim frustrado e
perdido, como se tivesse caído num buraco. Nas primeiras noites que
passava em casa, seus olhos eram tão iluminados que você podia
jurar que eles brilhavam no escuro, mas depois de alguns dias seus
olhos ficavam cansados. Ele começava a dar a impressão de estar
fora do seu elemento, e sofria com isso.
Assim,
ele não era um bom candidato para a morte; o que tornou ainda pior o
fato de estar em casa. Ele tentou superar isto no início fazendo
ligações interurbanas para pessoas em lugares estranhos ao redor do
mundo, mas logo ficou doente demais até para isso. Ele se tornou
simplesmente um homem, um homem sem emprego, sem uma história para
contar, um homem que, percebi, não conhecia.
— Sabe
o que seria bom agora? — ele me diz, parecendo relativamente bem
para um homem que, segundo o dr. Bennett, eu talvez nunca mais fosse
ver vivo. — Um copo d’água. Você se importa?
— É
claro que não — digo.
Levo
o copo d’água e ele toma um gole ou dois, enquanto seguro a borda
para ele, para a água não derramar. Sorrio para o cara que não se
parece mais com meu pai, mas com uma versão dele, uma de uma série,
semelhante mas diferente, e definitivamente danificada de várias
formas. Era difícil olhar para ele no início, ver todas as mudanças
que tinha sofrido, mas agora já me acostumei. Embora ele não tenha
mais cabelo e sua pele esteja manchada e ferida, estou acostumado.
— Não
sei se já contei isso para você — ele diz, tomando fôlego. —
Mas tinha um mendigo que me abordava todas as manhãs quando eu saía
da cafeteria que ficava perto do escritório. Todo dia eu dava 25
centavos para ele. Todo dia. Quer dizer, tornou-se algo tão
rotineiro que o mendigo nem se dava ao trabalho de me pedir mais —
eu simplesmente entregava a ele a moeda. Aí eu fiquei doente e
passei duas semanas sem aparecer, e quando eu voltei sabe o que foi
que ele me disse?
— O
quê, papai?
— Você
me deve três e cinquenta, foi o que ele disse.
— Isso
é engraçado.
— Bem,
rir é o melhor remédio — ele diz, embora nenhum de nós dois
esteja rindo. Nem mesmo sorrindo. Ele apenas olha para mim com uma
tristeza profunda, como costuma fazer às vezes, indo de uma emoção
a outra como algumas pessoas zapeiam os canais.
— Acho
que é mais apropriado — ele diz. — Eu usar quarto de hóspedes.
— Como
assim? — digo, embora saiba a resposta. Não é a primeira vez que
ele menciona isso, embora tenha sido decisão dele sair do quarto que
dividia com mamãe. “Não quero que ela se deite toda noite depois
que eu partir olhando para o meu lado da cama e estremecendo, se é
que me entende.” De certa forma ele acha que a sua reclusão no
quarto é emblemática.
— Apropriado
no sentido de que eu sou uma espécie de hóspede — diz percorrendo
com os olhos o quarto estranhamente formal. Minha mãe sempre achou
que hóspedes tinham que ter este tipo de ambiente, então preparou-o
o mais parecido possível com um quarto de hotel. Você tem uma
cadeirinha, uma mesinha de cabeceira, uma reprodução de um grande
mestre da pintura em cima da cômoda. — Não passei muito tempo
aqui, você sabe. Em casa. Não tanto quanto nós todos gostaríamos.
Olhe só para você, já é um homem e eu... eu não vi isso
acontecer. — Engole, o que para ele é um grande esforço. — Eu
não estive a seu lado, não é, filho?
— Não
— eu digo, talvez depressa demais, mas com o máximo de delicadeza
que a palavra pode carregar.
— Ei
— ele diz, e depois tosse um pouco. — Não precisa disfarçar nem
nada, só porque eu estou, você sabe.
— Não
se preocupe.
— A
verdade, nada mais que a verdade.
— Com
a ajuda de...
— Deus.
Fred. Seja quem for.
Ele
toma outro gole de água. Parece não ser tanto uma questão de sede
quanto de um desejo por esse elemento, de senti-lo na língua, nos
lábios: ele ama a água. Ele costumava nadar.
— Mas
sabe de uma coisa, meu pai também ficava fora um bocado de tempo —
ele diz, com uma leve crepitação na voz. — Então eu sei como é.
Meu pai era fazendeiro. Já contei isso a você, não é? Eu me
lembro de uma vez que ele teve que ir a algum lugar para comprar um
tipo especial de semente para plantar no campo. Pegou carona num
caminhão de carga. Disse que voltaria à noite. Mas aconteceu uma
coisa e outra e ele não conseguiu saltar. Foi até a Califórnia.
Passou quase toda a primavera fora. A época do plantio chegou e
passou. Mas quando voltou, ele trouxe sementes maravilhosas.
— Deixe-me
adivinhar — eu digo. — Ele as plantou e uma trepadeira enorme
subiu até as nuvens, e no topo das nuvens havia um castelo, onde
morava um gigante.
— Como
você soube?
— E
uma mulher de duas cabeças que serviu chá para ele, sem dúvida.
Ao
ouvir isso, meu pai sacode as sobrancelhas e sorri, feliz por alguns
instantes.
— Você
lembra — ele diz.
— É
claro.
— Lembrar-se
das histórias de um homem o torna imortal, você sabia disto?
Faço
que não com a cabeça.
— Pois
é verdade. Mas você nunca acreditou nessa, não foi?
— E
isso importa?
Ele
olha para mim.
— Não
— ele diz. Em seguida: — Sim. Eu não sei. Pelo menos você
lembrou. A questão, eu acho... a questão é que tentei ficar mais
em casa. Tentei sim. Mas coisas aconteceram. Desastres naturais. A
terra se abriu uma vez, eu acho, o céu se abriu diversas vezes.
Algumas vezes eu mal consegui sobreviver.
Suas
mãos velhas e escamosas se arrastam para tocar no meu joelho. Seus
dedos são brancos, as unhas opacas e quebradiças, como prata
antiga.
— Eu
diria que tive saudades de você — digo — se soubesse do que ter
saudades.
— Vou
dizer qual foi o problema — ele diz, erguendo a mão do meu joelho
e fazendo sinal para eu chegar mais perto. E eu chego. Eu quero
ouvir. A próxima palavra dele será a última. — Eu queria ser
um grande homem — sussurra.
— É
mesmo? — digo, como se isso fosse uma surpresa para mim.
— Sim.
— Suas palavras saem lentas e fracas, mas firmes e fortes em
sentimento e pensamento. — Pode acreditar nisso? Achei que era o
meu destino. Um peixe grande num grande lago, era isso que eu queria.
Foi o que quis desde o primeiro dia. Comecei pequeno. Durante muito
tempo trabalhei para os outros. Depois comecei meu próprio negócio.
Comprei aqueles moldes e fabriquei velas no porão. O negócio não
deu certo. Vendi aroma de bebê para lojas de flores. Isso não deu
certo. Finalmente, no entanto, entrei no negócio de importação e
exportação e a coisa decolou. Jantei certa vez com um
primeiro-ministro, William. Um primeiro-ministro! Você pode
imaginar, este garoto de Ashland jantando na mesma sala com um... Não
existe um continente que eu não tenha visitado. Nenhum. Há sete,
certo? Estou começando a esquecer quais que eu... não importa.
Agora tudo isso parece tão sem importância, sabe? Quer dizer, eu
nem sei mais o que significa ser um grande homem, quais são os, ah,
os pré-requisitos. E você, William?
— Eu
o quê?
— Sabe
— ele diz. — Você sabe o que faz de um homem um grande homem?
Fico
um bom tempo refletindo sobre isso, torcendo secretamente para ele
esquecer que fez essa pergunta. Sua mente às vezes divaga, mas algo
na forma como ele olha para mim diz que ele não está esquecendo
nada agora, está agarrado firmemente a essa ideia, e espera a minha
resposta. Eu não sei o que torna um homem grande. Nunca pensei nisso
antes. Mas, numa hora dessas, “Eu não sei” não vai servir. Esta
é uma situação que exige que você se mostre à altura dela, então
eu estico o corpo na esperança de alcançá-la.
— Eu
acho — digo após algum tempo, tentando encontrar as palavras
certas — que se um homem é amado por seu filho, então pode ser
considerado um grande homem.
Pois
esse é o único poder que eu tenho, para conferir a meu pai o manto
da grandeza, uma coisa que ele buscou no mundo lá fora, mas que,
numa reviravolta surpreendente, estava em casa o tempo todo.
— Ah
— ele diz — aqueles parâmetros. — Ele tropeça na
palavra, parecendo de repente meio tonto. — Nunca pensei nesses
termos, exatamente. No entanto, agora que estamos pensando dessa
forma, quer dizer, neste caso — ele diz —, neste caso bem
específico, o meu...
— Sim
— digo. — De agora em diante você, meu pai, Edward Bloom, passa
a ser, para todo o sempre, um Grande Homem. Que Fred o ajude.
E,
em lugar de uma espada, toco uma vez, delicadamente, em seu ombro.
Com
essas palavras ele parece descansar. Fecha os olhos pesadamente, e
com uma espécie de finalidade que reconheço como o início de uma
partida. Quando as cortinas da janela se abrem como que de vontade
própria, acredito por um momento que deve ser seu espírito indo
deste mundo para o outro. Mas é só o ar-condicionado central.
— Sobre
a dama de duas cabeças — ele diz com os olhos fechados,
murmurando, como que adormecendo.
— Eu
ouvi falar na dama de duas cabeças — digo, sacudindo-o
delicadamente pelo ombro. — Não quero mais ouvir falar nela,
papai. Ok?
— Eu
não ia contar para você a respeito da dama de duas cabeças,
sr. Espertinho.
— Não
ia?
— Ia
contar sobre a irmã dela.
— Havia
uma irmã?
— Ei
— ele diz, abrindo os olhos, respirando novamente. — Eu iria
brincar a respeito de uma coisa dessas?
Daniel Wallace, in Peixe Grande
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