domingo, 20 de fevereiro de 2022

O chato

O que molda um chato? É de nascença ou uma deficiência adquirida? É o ambiente que o faz? É genético? A culpa é das más companhias? São as desilusões existenciais que transformam um sujeito comum num chato? O fim das utopias interfere no grau de chatura?
Tem chato que, de longe, se vê que é um chato. Monoteístas diriam que Deus olhou para Romário e disse: “Esse é o cara...” Então, reparou no bebê ao lado e disse: “Esse vai ser chato.” É aquele para quem os mendigos não pedem esmolas.
Há três categorias de sujeitos que podemos considerar chatos, também conhecidos como malas, inconvenientes, maçantes: o chatinho, o chato para algumas coisas e o insuportável.
Geralmente, os insuportáveis têm elementos em comum: não mentem. Por serem sinceros, é que são chatos. Costumam pegar no ponto fraco do interlocutor. “Como você está gorda”, é uma das formas que começam uma conversa. Há variações. “Seu canino está sujo.” “Quanta caspa...” “É duro envelhecer, não?”
Chato que é chato vive convidando conhecidos para a sua casa. Inventa muitas atividades para travar amizade. Constrói uma intimidade que não existe. Afirma que você precisa conhecer os pais, cachorros e plantas dele. Além disso:
1) Um chato é sempre insistente na sua chatice. E fala demais.
2) Ele é uma unanimidade: se é chato para um, o é para todos.
3) Uma vez chato, sempre chato.
4) O chato é chato no berçário, na escola e no colegial. Destaca-se na faculdade.
5) Ele continua chato no trabalho. Aliás, em toda empresa, é preciso ter um chato, para descarregarem as tensões. E se o chato muda de empresa, passará a ser chato no novo trabalho.
6) O chato sabe de cor os nomes de todos.
7) Nunca esquece um aniversário.
8) Usa expressões em outra língua, esforçando-se para falar com o sotaque correto.
9) Corrige os erros de português de outros no meio da conversa.
10) E, agora, na versão on-line, corrige os erros de ortografia no começo da resposta.
11) Conhece todas as regras da empresa e o organograma.
12) Sabe a causa de todos os feriados que estão por vir.
Mas, no íntimo, chato que é chato detesta Natal, Réveillon e especialmente o Carnaval, datas em que não entende como podem estar todos tão felizes, trocar presentes e cumprimentos, se ele não tem companhia. Eis o paradoxo: o chato é chato porque é triste ou é triste porque sabe que é chato?
Eu me encaixo na classificação chato para algumas coisas. Com quantos travesseiros você dorme? Eu durmo com cinco. E de densidades diferentes: um duro para a perna direita, um fino para a nuca, outro mole para ficar ao lado da orelha, outro enrolado no calcanhar esquerdo, e um mediano para ficar de stand-by, caso algum caia da cama. Sim, o chato para algumas coisas é um cara prevenido.
Talvez eu seja o único sujeito do bairro que tem vontade de metralhar todos os pássaros que cantam ao amanhecer. Especialmente a sabiá insone e gorda como uma galinha que começa a cantar às 2h.
Em literatura, muita coisa me irrita. Quando abro um livro, e o sujeito começa “fui envolto pela sensação de...”, não termino a frase e o jogo no lixo.
Sou tão chato que livro com mais de 500 páginas raramente leio. Considero o autor excessivamente narcisista, por achar que sua história merece tanto papel. Livro de menos de 100 páginas também não leio. Considero o escritor negligente e preguiçoso. Orelha de livro? Não leio. Prefácio? Pulo. Epígrafe? Detesto. Contracapa? Evito.
Quando um autor iniciante tem a “brilhante ideia” de me convidar para escrever o prefácio ou a orelha do seu livro, eu penso nas desculpas mais esfarrapadas, mas, na hora agá, não me contenho e pergunto: “Você acha que eu não tenho mais o que fazer? Acha que eu fico ligando para escritores, para pedir para parar o que estão fazendo para escrever elogios sobre a minha literatura? Algum livro meu tem prefácio? E alguém lê prefácio? Você lê? E orelha?”
Sou tão chato que, se o envelope da correspondência que recebo for muito bem lacrado, fico com preguiça de abrir e jogo fora. Se o elevador demora para chegar, dou meia-volta e desisto. E se a avenida estiver congestionada, volto para casa.
Se vou de metrô, e o trem não para de forma que a porta fique à minha frente, não entro. Se há alguém no lugar exclusivo de deficientes, olho com cara feia. Se alguém na plataforma tentar entrar no carro antes de eu sair, atropelo. E se alguém ficar me olhando muito, sou capaz de dizer: “Está olhando o quê?”
Sou tão chato, que já usei a expressão “cara feia pra mim é fome”.
Pessoas que o chato detesta, pela ordem de detestação:
1) Todos os protagonistas de comercial de cerveja. Até os figurantes, com caras alegres, em praias paradisíacas. Um chato inveja pessoas felizes.
2) Todos os cantores que cantam em dupla. Um chato inveja pessoas que têm parceiros.
3) Apresentadores de tevê casados que apresentam o mesmo telejornal. Um chato não conseguiria trabalhar com a mulher.
4) Atores de tevê casados que protagonizam o mesmo filme ou novela. Sem comentários.

Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na Escola

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