domingo, 20 de fevereiro de 2022

Entrevista-relâmpago com Pablo Neruda (final)

Escrever melhora a angústia de viver?
Sim, naturalmente. Trabalhar em teu ofício, se amas teu ofício, é celestial. Senão é infernal.
Quem é Deus?
Todos algumas vezes. Nada, sempre.
Como é que você descreve um ser humano o mais completo possível?
Político, poético. Físico.
Como é uma mulher bonita para você?
Feita de muitas mulheres.
Escreva aqui o seu poema predileto, pelo menos predileto neste exato momento.
Estou escrevendo. Você pode esperar por mim dez anos?
Em que lugar gostaria de viver, se não vivesse no Chile?
Acredite-me tolo ou patriótico, mas eu há algum tempo escrevi em um poema:

Se tivesse que nascer mil vezes Ali quero nascer.
Se tivesse que morrer mil vezes
Ali quero morrer...

Qual foi a maior alegria que teve pelo fato de escrever?
Ler minha poesia e ser ouvido em lugares desolados: no deserto aos mineiros do Norte do Chile, no Estreito de Magalhães aos tosquiadores de ovelha, num galpão com cheiro de lã suja, suor e solidão.
Em você o que precede a criação, é a angústia ou um estado de graça?
Não conheço bem esses sentimentos. Mas não me creia insensível.
Diga alguma coisa que me surpreenda.
748.
(E eu realmente surpreendi-me, não esperava uma harmonia de números.)
Você está a par da poesia brasileira? Quem é que você prefere na nossa poesia?
Admiro Drummond, Vinícius e aquele grande poeta católico, claudelino, Jorge de Lima. Não conheço os mais jovens e só chego a Paulo Mendes Campos e Geir Campos. O poema que me agrada é o “Defunto”, de Pedro Nava. Sempre o leio em voz alta aos meus amigos, em todos os lugares.
Que acha da literatura engajada?
Toda literatura é engajada.
Qual de seus livros você mais gosta?
O próximo.
A que você atribui o fato de que os seus leitores acham você o “vulcão da América Latina”?
Não sabia disso, talvez eles não conheçam os vulcões.
Qual é o seu poema mais recente?
– “Fim do mundo”. Trata do século XX.
Como se processa em você a criação?
Com papel e tinta. Pelo menos essa é a minha receita.
A crítica constrói?
Para os outros, não para o criador.
Você já fez algum poema de encomenda? Se o fez faça um agora, mesmo que seja bem curto.
Muitos. São os melhores. Este é um poema.
O nome Neruda foi casual ou inspirado em Jan Neruda, poeta da liberdade tcheca?
Ninguém conseguiu até agora averiguá-lo.
Qual é a coisa mais importante no mundo?
Tratar de que o mundo seja digno para todas as vidas humanas, não só para algumas.
O que é que você mais deseja para você mesmo como indivíduo?
Depende da hora do dia.
O que é amor? Qualquer tipo de amor.
A melhor definição seria: o amor é o amor.
Você já sofreu muito por amor?
Estou disposto a sofrer mais.
Quanto tempo gostaria você de ficar no Brasil?
Um ano, mas dependo de meus trabalhos.
E assim terminou uma entrevista com Pablo Neruda. Antes falasse ele mais. Eu poderia prolongá-la quase que indefinidamente, mesmo recebendo como resposta uma única seta de resposta. Mas era a primeira entrevista que ele dava no dia seguinte à sua chegada, e sei quanto uma entrevista pode ser cansativa. Espontaneamente, deu-me um livro, Cem sonetos de amor. E depois de meu nome, na dedicatória, assinou: “De seu amigo Pablo.” Eu também sinto que ele poderia se tornar meu amigo, se as circunstâncias facilitassem. Na contracapa do livro diz: “Um todo manifestado com uma espécie de sensualidade casta e pagã: o amor como uma vocação do homem e a poesia como sua tarefa.”
Eis um retrato de corpo inteiro de Pablo Neruda nestas últimas frases.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

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