terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Descarte

Mão organizada por naipes de cores intercaladas.
Ao menos isso estava em ordem.
Copas, paus, ouros, espadas. Trinta e nove minutos de jogo.
Entre uma jogada e outra, ela se perguntava que rumo era aquele que sua vida estava tomando.
Até o jogo se ajeitava em menos de uma hora. E ela, nada.
Havia cinco rodadas que segurava aquela dama de paus. Era a canastra limpa da outra dupla.
Já seus enroscos, segurava do jeito que podia. Não sabia se por amor, por medo, por vício.
Comprou uma dama de copas. Já tinha o valete na mão. Na mesa, cinco, seis, sete, oito, nove. Mas o dez… O dez, nada.
Ficou segurando o casal. Segurar o casal. Ela sabia como era. Segurar sem muita certeza de que em algum momento aquilo realmente faria algum sentido.
Tinha um coringa. Descartar um coringa é sacrilégio. Quem dera fosse assim só nas cartas. Sempre nos faltará coragem para descartar um coringa.
Ela estava cansada. Cansada de comprar, analisar, acomodar. Cansada de segurar o que não lhe servia só para que ninguém comprasse seu lixo.
A mão estava cheia, e isso não significava que nada estivesse minimamente preenchido.
Comprou de novo. Outra dama. De copas. Não sei pra que tanto coração. Tanta mulher com coração. Não sei pra quê.
Duas rodadas depois, encaixou um sete besta ali, um quatro de ouros lá.
Tá cheio de sete besta por aí.
Uma rodada depois, cansou de esperar o dez. Tem muito dez que nunca vem.
Baixou três damas em lavadeira.
Juntou o coringa com o valete, depois do nove.
Descartou um rei de paus. Há uma certa dignidade no descarte de um rei.
Bateu.
Canastra suja não ganha jogo?
Ainda ia pegar o morto.
Volta ou outra, o morto é mais interessante do que aquilo que a gente tem na mão.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

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