terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

De corpo para corpo | Empatia e compaixão

Minha primeira experiência com chimpanzés foi na faculdade, na Universidade Radboud, em Nijmegen, Holanda. Para ganhar alguns florins, assumi o posto de assistente de pesquisa num laboratório de psicologia. No primeiro dia, fiquei sabendo que o trabalho envolvia chimpanzés. Isso me pegou de surpresa, porque quem em sã consciência manteria símios no último andar de um prédio universitário, em meio a escritórios e salas de aula? As condições de vida estavam longe do ideal e nunca seriam permitidas hoje, mas me diverti muito conhecendo meus dois amigos peludos.
Todos os dias eu os testava em tarefas cognitivas que poderiam ser perfeitas para ratos, mas não eram adequadas para símios. Naquela época, os psicólogos ainda acreditavam em leis universais de aprendizado e inteligência e não se interessavam pelos talentos especiais de cada espécie. Nem mesmo o tamanho do cérebro importava para eles. Como B. F. Skinner, o fundador da escola behaviorista, disse sem rodeios: “Pombo, rato, macaco, qual é qual? Isso não importa”. Agora, no entanto, sabemos que existem muitos tipos diferentes de inteligência, cada qual adaptada aos sentidos especiais e à história natural de uma espécie. Não se pode avaliar um símio ou um elefante da mesma maneira que se avalia um corvo ou um polvo. Grandes primatas, em particular, são seres pensantes que tentam entender cada problema que enfrentam. Eles perdem o interesse assim que descobrem a solução. Em comparação com alguns macacos rhesus testados no mesmo laboratório, nossos chimpanzés tiveram mau desempenho, o que demonstra que desempenho e inteligência não são a mesma coisa. Enquanto os macacos tinham os olhos firmes nas recompensas e mantinham uma rotina para ganhar o máximo que conseguissem, os chimpanzés ficavam entediados. A tarefa estava abaixo do nível deles. Em consequência, eu passava muito tempo fazendo bagunça com eles, e eles gostavam muito mais.
Foi assim que aprendi os sons típicos e outras formas de comunicação dessa espécie, e também a agir como símio, o que não é tão difícil, uma vez que os seres humanos são essencialmente primatas. A única parte que não consegui imitar foi a força muscular deles. Eu não conseguia me balançar pendurado por um único dedo ou saltar de uma parede para a outra sem tocar no chão. Embora não tivessem nem seis anos de idade, eles rapidamente perceberam que eu era um ser fraco que não gostava de ser atrelado com os mesmos laços com que eles atavam uns aos outros. Eu podia dar o tapa mais forte que conseguisse nas costas deles — tão forte que qualquer ser humano teria explodido em protestos irados —, mas eles apenas continuavam rindo como se aquilo fosse a coisa mais engraçada que eu já fizera.
Como era típico da idade deles, seus impulsos sexuais estavam surgindo, e eles eram forçados a projetá-los em nossa espécie. Ambos os machos tinham ereções assim que viam uma mulher passar. Eram tão precisos em identificar o sexo oposto que eu me perguntava como faziam aquilo. Pelo cheiro era improvável, porque seus sentidos são como os nossos: a visão é dominante. Um colega estudante e eu decidimos fazer um teste, o que levou ao meu primeiro experimento comportamental. Nós nos vestimos com saias e perucas e modulamos nossas vozes para ver que tipo de reação receberíamos. Entramos na sala conversando e apontando para os chimpanzés como se fôssemos visitantes fêmeas inesperadas. Eles mal ergueram os olhos. Nenhum pênis ereto, nenhuma confusão, exceto que puxaram nossas saias. Poucos minutos depois, uma das secretárias espiou pela porta, pois vira duas senhoras estranhas entrarem e pensou que estavam perdidas. Com ela, os chimpanzés mostraram imediatamente a reação que esperávamos. Concluímos que é mais fácil enganar as pessoas do que os chimpanzés.
Esse experimento era mais parecido com um trote. Eu hesitaria em mencioná-lo, a não ser pelo fato de que ele ilustra a percepção aguçada — que é o tema deste capítulo. Como um organismo lê a linguagem corporal de outro? Muitos animais têm a mesma sensibilidade que esses dois chimpanzés quando se trata de distinguir gêneros humanos. Até espécies bem distantes de nós, como aves e gatos, fazem isso com facilidade. Conheço muitos papagaios que só gostam de mulheres, ou só de homens. Eles focam na única diferença de sexo visível que se encontra em todo o reino animal: os movimentos masculinos tendem a ser mais bruscos e resolutos que os das fêmeas, mais fluidos e flexíveis. Nós nem precisamos ver corpos inteiros para fazer essa distinção. Quando os cientistas prenderam pequenas luzes nos braços, nas pernas e na pélvis das pessoas e as filmaram andando, descobriram que esses pontos, por si sós, contêm todas as informações de que precisamos para distinguir o gênero. Observando apenas alguns pontos brancos em movimento contra um fundo escuro os indivíduos podem dizer imediatamente se estão olhando para um homem ou uma mulher. O padrão de caminhada varia até com o estágio do ciclo ovulatório da mulher. Se podemos julgar com precisão as pessoas com base em informações tão escassas como essas, não é difícil perceber por que, para muitos animais, a masculinidade ou a feminilidade humana é um livro aberto. Isso também funciona em sentido inverso, porque à distância eu certamente consigo distinguir um chimpanzé macho de uma fêmea pela maneira como eles se movem.
Muitos anos depois, realizamos um experimento mais científico sobre distinções de gênero. Ele originou-se da pesquisa sobre reconhecimento facial com uso de tela sensível ao toque, mas terminou com a descoberta de que os chimpanzés são íntimos dos traseiros uns dos outros. Sentado diante de um monitor, o chimpanzé via primeiro uma foto do traseiro de um animal da sua própria espécie, seguida por dois retratos. Somente um retrato correspondia ao traseiro que ele acabara de ver: ele mostrava a face do mesmo símio. A tarefa era fácil demais se as faces fossem de sexos diferentes, porque os traseiros de machos e fêmeas são muitíssimo diferentes, e as faces de ambos os sexos também diferem.
Mas e se eles tivessem de escolher entre dois retratos de machos depois de ter visto um traseiro de macho, ou entre dois retratos de fêmeas depois de um traseiro de fêmea? Eles ainda escolheriam o correto? Descobrimos que nossos chimpanzés selecionavam o retrato que combinava com o traseiro, mas apenas dos chimpanzés que conheciam pessoalmente. O fato de terem fracassado com estranhos sugere que suas escolhas não se baseavam em alguma coisa das imagens, como cor ou tamanho, mas no conhecimento que vinha de fora, de se verem todos os dias. Tendo uma imagem de corpo inteiro de indivíduos familiares, eles os conheciam tão bem que podiam conectar qualquer parte de seu corpo com qualquer outra parte, como a anterior com a posterior. Publicamos nossas descobertas sob o título de “Faces e traseiros”, e como todo mundo achava engraçado que os símios fossem capazes de fazer isso, recebemos um prêmio Ig Nobel — uma paródia do prêmio Nobel que homenageia pesquisas que “fazem as pessoas rirem primeiro e depois pensar”.
Embora o mesmo experimento nunca tenha sido tentado com seres humanos — muito menos com pessoas despidas —, devemos formar a mesma imagem do corpo inteiro, porque todos nós somos capazes de encontrar amigos e parentes numa multidão, mesmo que só os vejamos de costas.

Frans de Waal, in O último abraço da matriarca

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