sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Conversa alheia

Escutar conversa alheia não é o meu hobby, mas se as palavras entram pelos ouvidos da gente sem pedir licença, que remédio senão escutá-las? No restaurante, em mesa quase encostada à minha, jantavam dois rapazes de pouco mais de vinte anos, vestidos e penteados com esmero (apenas o cabelo um pouco longo), e mantinham o diálogo que reproduzo com possível fidelidade:
Quanto a isso não há dúvida, meu caro. Cheguei à conclusão de que temos de promover uma política inteligente de especialização setorial.
É óbvio, mas você não acha que cumpre ao mesmo tempo equacionar o grave estrangulamento do setor externo?
O primeiro concentrou-se, antes de responder:
Ora, essa meta não oferece percalços, uma vez que se alcance a médio prazo — eu disse a médio prazo — a dinamização de nossas rendas nos mercados forâneos. Correto?
Mas qual a processualística? Pela fixação de tetos permissíveis?
Talvez. Penso antes no escalonamento gradativo do aporte de recursos.
O outro ponderou, mansamente:
Mas você precisa ter em mente a factibilidade das expansões projetadas…
E não tenho? Nunca perdi de vista o aspecto conjuntural, meu velho.
Outra coisa. Se não cogitarmos também, em escala prioritária, dos suportes de infraestrutura, já se sabe: nada feito.
Lá isso é verdade. Quer dizer, em termos. Neste caso, que é que você pretende: que se monte um esquema preferencial?
Bom, depende. Em última análise, não me parece que se deva imprimir demasiada ênfase à reformulação da estrutura organizacional, mas, por outro lado, levando em conta determinadas circunstâncias sazonais…
Compreendi. De qualquer forma, há esse problema da capacidade redimensionada para prover as futuras necessidades de expansão. Correto?
Correto. É como eu costumo esclarecer lá no Centro de Investigações Socioeconômicas de Alto Nível: tudo depende do desempenho do setor de produção, a menos que…
Já sei. A menos que o processo de decomposição do setor…
Não. Quanto a este tópico, não estamos absolutamente em consonância. No caso especial — e você bem sabe como ele é especial — da maximização das receitas cambiais…
Lá vem você com maximização! Que é isso, filho. Você, ao contrário, minimiza a evidência de que é necessário atuar ao nível de projeto, tendo em perspectiva, por exemplo, os bons frutos do café flexível.
Ah, é? E você, que em suas análises coloca em segundo plano a inelasticidade das demandas de café? Você nega, faça o favor de me dizer, você nega a distorção gradualista na comparação de preços?
Calma, não vamos entrar em conflito teórico e muito menos factual. Afinal de contas, convenhamos, tudo resulta, às vezes, do comportamento de equipamentos periféricos de processamento de dados, que nos induzem a postulações suscetíveis de revisão.
Nisso eu concordo com você. Operacionalmente…
Não é segredo para ninguém, na área informacional, que eu vivo me empenhando pela elevação do conteúdo tecnológico.
Nem eu digo o contrário, fique certo disto. Porém, o relacionamento…
Espere um pouco. Antes que me esqueça, há um ponto nodal: a sistemática da arrecadação, integrada na problemática geral de uma política agressiva de utilização de recursos geotécnico-sócio-humanos, a serviço da globalização do esforço geracional total. Simples, como vê.
Muito. Eu dirigiria o enfoque para a capacidade subutilizada desse esforço.
Perfeito. Vamos ao melão com presunto?
O.k. Ao melão com presunto.
Não se deve escutar conversa dos outros, mas aprende-se muito escutando conversa dos outros. Mormente de economistas.

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

Nenhum comentário:

Postar um comentário