No
grupo, as classes sociais estavam claramente definidas. Eram
definidas pelos sapatos.
Havia,
primeiro, os meninos que iam sem sapato. Isso queria dizer que os
pais eram tão pobres que não tinham dinheiro para comprar sapatos.
Dentre todos os pés descalços, os mais famosos eram os pés do
Estelino, que se pareciam com nadadeiras, pé de pato. Os meninos
eram malvados. Não perdoavam. Na rua, terminada a escola, gritavam:
“Estelino pé de pato...” . O Estelino respondia: “Pé de pato,
pé de pinto, vá peidar lá pros esquinto...” (“os quintos dos
infernos”). Não era o sentido que importava. O que importava era a
rima. Eram sempre os meninos que iam sem sapato.
Havia
depois os ricos, que iam calçados. Eu era rico. Ia com os dois pés
calçados. Mas sem meia. Não se usava.
E
havia a “classe média”. Os da classe média eram aqueles que iam
com um pé calçado e outro descalço. Isso mais acontecia com
irmãos: um ia com o pé direito calçado e o esquerdo descalço. O
outro ia com o pé esquerdo calçado e o direito descalço. Dessa
forma, a função de proteção e higiene dos sapatos ficava anulada.
Mas sua função era outra. Os pais que assim mandavam os filhos à
escola estavam dizendo: “Somos pobres, mas não tanto...” .
Eu
achava aquilo o máximo. Tinha inveja deles. Implorei à minha mãe
que me deixasse ir com um pé calçado e o outro descalço. Ela não
deixou. Não me entendeu. Não compreendeu que, naquele meu desejo,
já se delineavam as minhas futuras lealdades políticas.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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