domingo, 2 de janeiro de 2022

O álbum branco | 1

Contamos histórias para poder viver. A princesa está enjaulada no consulado. O homem com o doce vai levar as crianças para o mar. A mulher nua no beiral da janela do décimo sexto andar é uma vítima de apatia ou uma exibicionista? Dizemos a nós mesmos que faz diferença se ela está prestes a cometer um pecado mortal, se está prestes a iniciar um protesto político ou se está prestes a ser, a visão aristofânica, arrebatada de volta para a condição humana pelo bombeiro em roupa de padre, escondido na janela mais atrás, sorrindo para as lentes a distância. Buscamos o sermão no suicídio, a lição social ou moral no assassinato de cinco. Interpretamos o que vemos, selecionamos o que funciona melhor entre múltiplas escolhas. Vivemos, sobretudo se somos escritores, pela imposição de uma linha narrativa para imagens discrepantes, pelas “ideias” com as quais aprendemos a congelar a fantasmagoria que constitui nossa experiência real.
Ou, ao menos, fazemos isso por um tempo. Falo aqui de uma época em que comecei a duvidar das premissas de todas as histórias que já havia contado a mim mesma, uma condição comum, mas que achei perturbadora. Creio que esse período começou por volta de 1966 e durou até 1971. Ao longo daqueles cinco anos, eu me mostrei, à primeira vista, uma integrante relativamente capaz de uma ou outra comunidade, uma signatária de contratos e cartões de viagem, uma cidadã: escrevi algumas vezes por mês para uma ou outra revista, publiquei dois livros, trabalhei em vários filmes; me envolvi com a paranoia da época, com a criação de uma filha pequena, com o entretenimento de um grande número de pessoas que passaram por minha casa; fiz cortinas de algodão para os quartos de hóspedes, me lembrei de perguntar para os agentes se qualquer redução de pontos ia estar pari passu com o estúdio de financiamento, coloquei lentilhas de molho no sábado à noite para a sopa de domingo, fiz pagamentos de impostos trimestrais e renovei minha carteira de motorista a tempo, errando na prova escrita só a questão sobre a responsabilidade financeira dos motoristas da Califórnia. Foi uma época de minha vida em que eu era “nomeada” com frequência. Era nomeada madrinha de crianças. Era nomeada oradora, palestrante, debatedora e conferencista. Até fui nomeada, em 1968, “Mulher do Ano” do Los Angeles Times, junto com a sra. Ronald Reagan, a nadadora olímpica Debbie Meyer e dez outras mulheres da Califórnia que pareciam se manter atualizadas e praticar boas ações. Eu não praticava boas ações, mas tentava me manter atualizada. Era responsável. Reconhecia meu nome quando o via. De vez em quando, até respondia cartas endereçadas a mim. Não assim que as recebia, mas em algum momento. Respondia até as que vinham de estranhos. “Durante minha ausência do país nos últimos dezoito meses”: era assim que todas as minhas cartas começavam.
Era uma performance bastante satisfatória para uma improvisação. O único problema era que toda a minha educação, tudo que já tinham me dito ou que eu tinha dito a mim mesma, insistia que a produção não devia ser improvisada: eu devia ter um roteiro e o perdera. Devia ficar atenta às pistas, mas não fazia mais isso. Devia entender o enredo, mas tudo que entendia era o que via: imagens intermitentes em sequência variável, imagens sem “significado” além do arranjo temporário. Não um filme, mas uma experiência na sala de edição. No que provavelmente ia ser a metade de minha vida, eu ainda queria acreditar na narrativa e na inteligibilidade da narrativa, mas saber que dava para mudar o sentido a cada edição me fazia ver a experiência de forma mais elétrica do que ética.
Durante esse período, passei o que, para mim, eram porções habituais de tempo em Los Angeles, Nova York e Sacramento. Passei o que, para muita gente, pareceu tempo excessivo em Honolulu, cujo aspecto singular me dava a ilusão de que podia, a qualquer minuto, pedir ao serviço de quarto uma teoria revisionista de minha história, enfeitada com uma orquídea vanda. Assisti ao funeral de Robert Kennedy em uma varanda do hotel Royal Hawaiian, em Honolulu, e às primeiras notícias de Mỹ Lai. Reli tudo de George Orwell na praia do Royal Hawaiian. Também li, nos jornais que chegavam com um dia de atraso, a história de Betty Lansdown Fouquet, uma mulher de 26 anos com cabelo louro desbotado que abandonou a filha de 5 anos para morrer na divisória central da Rodovia 5, alguns quilômetros ao sul da última saída para Bakersfield. A criança, cujos dedos tiveram que ser desgrudados da cerca de arame quando foi resgatada pela polícia rodoviária da Califórnia doze horas depois, contou que correu atrás do carro da família por “um tempão”. Algumas dessas imagens não se encaixavam em nenhuma narrativa que eu conhecesse.
Outro corte rápido:

Em junho deste ano, a paciente experimentou um episódio de vertigem e náusea, com a sensação de que ia desmaiar. Uma avaliação médica completa não gerou resultado conclusivo e foi receitado Elavil de vinte miligramas, três vezes ao dia. […] O teste de Rorschach parece descrever uma personalidade no processo de deterioração, com sinais abundantes de defesas ruindo e inabilidade crescente do ego de mediar o mundo da realidade e de lidar com o estresse normal. […] Emocionalmente, a paciente se alienou quase por completo do mundo. A vida imaginária dela parece ter sido quase totalmente antecipada por preocupações libidinais primitivas e regressivas, muitas das quais são deturpadas e bizarras. […] Em um sentido técnico, controles afetivos básicos parecem estar intactos, mas é igualmente claro que são mantidos por ora de forma precária e tênue por uma série de mecanismos de defesa que incluem intelectualização, dispositivos obsessivo-compulsivos, projeção, formação reativa e somatização, todos os quais agora parecem inadequados para a tarefa de controlar ou conter um processo psicótico subjacente e se encontram, portanto, em processo de falência. O conteúdo das respostas da paciente é muito incomum e com frequência bizarro, repleto de preocupações sexuais e anatômicas. Às vezes, o contato básico com a realidade é bastante comprometido. Em qualidade e nível de sofisticação, as respostas da paciente são características de indivíduos de inteligência acima da média ou superior. Agora, porém, ela está funcionando em modo prejudicado intelectualmente, em nível apenas médio. As elaborações temáticas da paciente no Teste de Apercepção Temática enfatizam a visão pessimista, fatalista e depressiva do mundo à sua volta. É como se ela sentisse, de forma intensa, que todo esforço humano está fadado a fracassar, uma convicção que parece empurrá-la mais fundo em um afastamento dependente e passivo. Na visão da paciente, ela vive em um mundo de pessoas movidas por impulsos estranhos, conflitantes, mal compreendidos e, acima de tudo, tortuosos, que as levam ao conflito e o fracasso…”

A paciente a quem esse relatório psiquiátrico se refere sou eu. Os testes mencionados — o Rorschach, o Teste de Apercepção Temática, o teste da conclusão de frases e o Inventário Multifásico de Personalidade de Minnesota — foram aplicados a portas fechadas no ambulatório de psiquiatria do St. John Hospital, em Santa Monica, no verão de 1968, pouco depois de eu ter sofrido “um episódio de vertigem e náusea, com a sensação de que ia desmaiar”, como mencionados na primeira frase e pouco antes de ter sido nomeada “Mulher do Ano” pelo Los Angeles Times. A título de comentário, considero, hoje em dia, que um episódio de vertigem e náusea não me parece uma resposta inadequada ao verão de 1968.

Joan Didion, in O álbum branco

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