Contamos histórias para poder viver. A
princesa está enjaulada no consulado. O homem com o doce vai levar
as crianças para o mar. A mulher nua no beiral da janela do décimo
sexto andar é uma vítima de apatia ou uma exibicionista? Dizemos a
nós mesmos que faz diferença se ela está prestes a cometer um
pecado mortal, se está prestes a iniciar um protesto político ou se
está prestes a ser, a visão aristofânica, arrebatada de volta para
a condição humana pelo bombeiro em roupa de padre, escondido na
janela mais atrás, sorrindo para as lentes a distância. Buscamos o
sermão no suicídio, a lição social ou moral no assassinato de
cinco. Interpretamos o que vemos, selecionamos o que funciona melhor
entre múltiplas escolhas. Vivemos, sobretudo se somos escritores,
pela imposição de uma linha narrativa para imagens discrepantes,
pelas “ideias” com as quais aprendemos a congelar a fantasmagoria
que constitui nossa experiência real.
Ou, ao menos, fazemos isso por um tempo.
Falo aqui de uma época em que comecei a duvidar das premissas de
todas as histórias que já havia contado a mim mesma, uma condição
comum, mas que achei perturbadora. Creio que esse período começou
por volta de 1966 e durou até 1971. Ao longo daqueles cinco anos, eu
me mostrei, à primeira vista, uma integrante relativamente capaz de
uma ou outra comunidade, uma signatária de contratos e cartões de
viagem, uma cidadã: escrevi algumas vezes por mês para uma ou outra
revista, publiquei dois livros, trabalhei em vários filmes; me
envolvi com a paranoia da época, com a criação de uma filha
pequena, com o entretenimento de um grande número de pessoas que
passaram por minha casa; fiz cortinas de algodão para os quartos de
hóspedes, me lembrei de perguntar para os agentes se qualquer
redução de pontos ia estar pari passu com o estúdio de
financiamento, coloquei lentilhas de molho no sábado à noite para a
sopa de domingo, fiz pagamentos de impostos trimestrais e renovei
minha carteira de motorista a tempo, errando na prova escrita só a
questão sobre a responsabilidade financeira dos motoristas da
Califórnia. Foi uma época de minha vida em que eu era “nomeada”
com frequência. Era nomeada madrinha de crianças. Era nomeada
oradora, palestrante, debatedora e conferencista. Até fui nomeada,
em 1968, “Mulher do Ano” do Los Angeles Times, junto com a
sra. Ronald Reagan, a nadadora olímpica Debbie Meyer e dez outras
mulheres da Califórnia que pareciam se manter atualizadas e praticar
boas ações. Eu não praticava boas ações, mas tentava me manter
atualizada. Era responsável. Reconhecia meu nome quando o via. De
vez em quando, até respondia cartas endereçadas a mim. Não assim
que as recebia, mas em algum momento. Respondia até as que vinham de
estranhos. “Durante minha ausência do país nos últimos dezoito
meses”: era assim que todas as minhas cartas começavam.
Era uma performance bastante satisfatória
para uma improvisação. O único problema era que toda a minha
educação, tudo que já tinham me dito ou que eu tinha dito a mim
mesma, insistia que a produção não devia ser improvisada: eu devia
ter um roteiro e o perdera. Devia ficar atenta às pistas, mas não
fazia mais isso. Devia entender o enredo, mas tudo que entendia era o
que via: imagens intermitentes em sequência variável, imagens sem
“significado” além do arranjo temporário. Não um filme, mas
uma experiência na sala de edição. No que provavelmente ia ser a
metade de minha vida, eu ainda queria acreditar na narrativa e na
inteligibilidade da narrativa, mas saber que dava para mudar o
sentido a cada edição me fazia ver a experiência de forma mais
elétrica do que ética.
Durante esse período, passei o que, para
mim, eram porções habituais de tempo em Los Angeles, Nova York e
Sacramento. Passei o que, para muita gente, pareceu tempo excessivo
em Honolulu, cujo aspecto singular me dava a ilusão de que podia, a
qualquer minuto, pedir ao serviço de quarto uma teoria revisionista
de minha história, enfeitada com uma orquídea vanda. Assisti ao
funeral de Robert Kennedy em uma varanda do hotel Royal Hawaiian, em
Honolulu, e às primeiras notícias de Mỹ Lai. Reli tudo de George
Orwell na praia do Royal Hawaiian. Também li, nos jornais que
chegavam com um dia de atraso, a história de Betty Lansdown Fouquet,
uma mulher de 26 anos com cabelo louro desbotado que abandonou a
filha de 5 anos para morrer na divisória central da Rodovia 5,
alguns quilômetros ao sul da última saída para Bakersfield. A
criança, cujos dedos tiveram que ser desgrudados da cerca de arame
quando foi resgatada pela polícia rodoviária da Califórnia doze
horas depois, contou que correu atrás do carro da família por “um
tempão”. Algumas dessas imagens não se encaixavam em nenhuma
narrativa que eu conhecesse.
Outro corte rápido:
Em junho deste ano, a paciente
experimentou um episódio de vertigem e náusea, com a sensação de
que ia desmaiar. Uma avaliação médica completa não gerou
resultado conclusivo e foi receitado Elavil de vinte miligramas, três
vezes ao dia. […] O teste de Rorschach parece descrever uma
personalidade no processo de deterioração, com sinais abundantes de
defesas ruindo e inabilidade crescente do ego de mediar o mundo da
realidade e de lidar com o estresse normal. […] Emocionalmente, a
paciente se alienou quase por completo do mundo. A vida imaginária
dela parece ter sido quase totalmente antecipada por preocupações
libidinais primitivas e regressivas, muitas das quais são deturpadas
e bizarras. […] Em um sentido técnico, controles afetivos básicos
parecem estar intactos, mas é igualmente claro que são mantidos por
ora de forma precária e tênue por uma série de mecanismos de
defesa que incluem intelectualização, dispositivos
obsessivo-compulsivos, projeção, formação reativa e somatização,
todos os quais agora parecem inadequados para a tarefa de controlar
ou conter um processo psicótico subjacente e se encontram, portanto,
em processo de falência. O conteúdo das respostas da paciente é
muito incomum e com frequência bizarro, repleto de preocupações
sexuais e anatômicas. Às vezes, o contato básico com a realidade é
bastante comprometido. Em qualidade e nível de sofisticação, as
respostas da paciente são características de indivíduos de
inteligência acima da média ou superior. Agora, porém, ela está
funcionando em modo prejudicado intelectualmente, em nível apenas
médio. As elaborações temáticas da paciente no Teste de
Apercepção Temática enfatizam a visão pessimista, fatalista e
depressiva do mundo à sua volta. É como se ela sentisse, de forma
intensa, que todo esforço humano está fadado a fracassar, uma
convicção que parece empurrá-la mais fundo em um afastamento
dependente e passivo. Na visão da paciente, ela vive em um mundo de
pessoas movidas por impulsos estranhos, conflitantes, mal
compreendidos e, acima de tudo, tortuosos, que as levam ao conflito e
o fracasso…”
A paciente a quem esse relatório
psiquiátrico se refere sou eu. Os testes mencionados — o
Rorschach, o Teste de Apercepção Temática, o teste da conclusão
de frases e o Inventário Multifásico de Personalidade de Minnesota
— foram aplicados a portas fechadas no ambulatório de psiquiatria
do St. John Hospital, em Santa Monica, no verão de 1968, pouco
depois de eu ter sofrido “um episódio de vertigem e náusea, com a
sensação de que ia desmaiar”, como mencionados na primeira frase
e pouco antes de ter sido nomeada “Mulher do Ano” pelo Los
Angeles Times. A título de comentário, considero, hoje em dia,
que um episódio de vertigem e náusea não me parece uma resposta
inadequada ao verão de 1968.
Joan Didion, in O álbum branco
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