Eram incontáveis os guerreiros que
haviam sido intuídos para voar. Antes de Pé de Urutago, a memória
registava as glórias de Caiboaté Alado, Sentimento de Vento, Asa de
Avaré, Voz de Ar, Arara Universal, Sorriso Subido, entre outros.
Todos foram nascidos para a profecia de tomarem em mãos o osso do
relâmpago e inaugurarem o tempo prometido. Subitamente petrificado,
como bocado de água seca que cintilasse em luz própria, o osso do
relâmpago seria erguido ao centro das ilhas e incidiria sobre toda a
mata enquanto garantia da luz eterna e da paz. Era pensado que a
Verdadeiríssima Divindade deitaria sobre o osso a própria carne e
haveria de caminhar ela mesma entre a criação com generosidade e
infinito esclarecimento. Nenhum inimigo teria como abeirar com seus
intentos terríveis. A ancestralidade intuíra mil vezes como
verdadeirissimamente estava previsto que, em algum instante, um
guerreiro escolhido subiria numa velocidade inigualável o clarão
breve e temperamental e desceria empunhando-o como um novo deus.
Um deus só ocorre para os que
necessitam. Deuses são por mérito dos que não desistem.
*
No princípio, havia apenas a meditação
do silêncio. Na presença do silêncio tudo era vazio e nada
necessitava. Depois, o ruído aconteceu e isso só podia diante do
espaço. A materna pedra do fundo estendeu e permitiu ser ocupada.
Aí, nasceu a imaginação.
A Divindade imaginou e tudo quanto quis
se tornou mais do que verdadeiro e imaginar é movimento. O movimento
criou o grão ainda poeira. A Divindade comoveu e imaginou o pranto
que desceu como infinito, eterno e tremendo animal líquido,
resfolegando continuamente. Seu pranto homenageia as coisas boas e as
coisas são boas.
Até ao quarto mar são as ilhas abaeté,
o órgão vital onde o começo conserva seu sentido, sua raiz. A
Divindade entoou:
abaeté.
O primeiro habitou o nome. Desde então
que cada um é coágulo de seu nome. Cada coisa é coágulo da
palavra.
A história é a biografia da Divindade.
Palavra longa que alonga.
Aqueles que soam criam com a Divindade e
são dela e para ela. Serão de nenhuma diferença no instante em que
imaginar. Entre a Divindade e os ancestrais a diferença diminui.
A morte melhora cada um.
Os mortos têm função.
Os mortos juntam na Pedra que Soa. Sua
voz é coral. Ela contém a absoluta encantaria.
A captura do nome é fortuna, uma
sabedoria domesticada ou por domesticar.
As águas tomaram o lamento e no embalo
couberam os mínimos e depois os peixes e as fugazes transparências.
No princípio, as decisões eram boas e
todos os acordos estavam ainda possíveis.
Levantada a proibição de existir, tudo
se apressou a escutar seu nome para criar seu corpo, ter espírito,
entidade, vontade de também criar. Mesmo aquilo que não viveu pôde
criar corpo, caber no som.
Coisas nunca vividas têm nome. São.
Podem estar à espera.
Bichos diferiram pelo modo de comer e de
discutir línguas, que reservam suas próprias astúcias e
esconderijos, adiamentos, dissimulações e avidez.
As partes canoras apoderaram as línguas
para gerir a fome de cada instante e cada coisa, para pormenorizar.
Há fome até nas evidências mortas, nas que nunca viveram e têm
corpo, cabem num nome e podem devorar, servem de ataque e de defesa.
A quebra do silêncio pode ser
considerada vocábulo, primeiro gesto da língua. As partes canoras
imitam a quebra do silêncio inicial e ajudam a criar. Entoar é
criação.
Aquele que soa era bocado de cada bicho,
contido na onça e na arara, no peixe e no insecto. Ele já era baixo
e alto, da terra, da água e do ar, recolhido ou agigantado, belo ou
inexplicável, radicava da inteira construção do mundo, nascia no
mundo vindo de toda a parte.
Aquele que soa subiu e desceu de todos os
animais com um pouco da memória de seus saberes e juntou num só,
caminhando erguido.
Com ele, a criação clarificou o desejo
e a beleza.
A beleza tornou evidente e a maior de
todas surgiu no filhote de tapir.
Houve caroba e a sua cor, sua doçura e
milhões de mangangavas, a guaricica, o coqueiro, a tatajuba, a
maçaramduba e a salvadora andiroba, branca ou vermelha, por
generosidade da terra e pelo alagado da mata.
Houve todas as árvores, tantas sem
entrega de nome, ainda porque suas explicações são adiadas, seus
espíritos insignificantes, não têm por agora significado. Seus
nomes haverão de ser língua diferida, por escutar. Resultam em
sombra. De todo o modo, resultam em sombra e a sombra é boa.
A morte é ofício e foi dito que a morte
tem função. Aquele que soa repetiu e aprendeu que também existe
uma natureza escondida por dentro.
As ilhas são a terra mutilada, ferimento
na mordedura do tremendo animal líquido onde se pesca e navega
piroga.
Por dentro há sagrado e proibido. O
vazio de piroga é um interior. Muito interior é vazio.
As femininas cantaram primeiro.
A língua voltou das femininas com jeito
de juízo e de flor e aprendeu sua bênção. Nas canções são
guardados os ensinamentos. Cantar é lembrar, saber e fazer vida.
Aves escutam as femininas para melhorar.
Aves escutam os guerreiros para temer.
As aldeias trabalharam até que as
plantas fossem domesticadas, ensinadas a crescer do abrigo da semente
exactamente no lugar onde deitadas. Elas foram agraciadas e apartadas
dos atributos inférteis da mata.
A natureza aprisionou árvores inteiras
na imaginação de uma semente.
A água inaugura a semente.
Aqueles que soam levam água às dos
melhores frutos e isso promete matar a fome.
Tudo o que sagra se expõe ao sol ou
busca o pouco de fogo.
Bichos que vivem enterrados são
imaturos. São raízes de bichos, bichos adiados.
Foi a morte de uma onça que fez o sol.
Era importante que a criação visse e do sangue intenso da onça
acendeu. O brilho é modo de a Divindade olhar. Tudo pode brilhar,
nem que por um instante, sem se dar conta. E outro sangue pode chegar
ao sol, que não devora, apenas refulge.
Despertar é puro. O instante seguinte é
corrupção. Antes de relembradas as emoções, todos os que soam são
iguais, abençoados pela limpidez. As emoções propõem a alegria e
o perigo.
A obrigação de agradecimento acontece
no pranto. Por ser essencial, o pajé chefia à aldeia que chore, e a
aldeia chora.
Todas as curas estão prometidas no osso
do relâmpago. Quando houver de ser admitido à mão de um guerreiro,
a Divindade poderá mostrar seu corpo rigoroso e caminhar entre os
que soam, entoando graças em cada alegria, e tudo será alegria e
sem mais perigo. Tudo será sem inimigo. A intensa iluminação
eterna haverá de educar os vivos bem antes de só poderem ser
educados quando mortos.
E os vivos serão só esplendor e farão
esplendor e o esplendor terá o tamanho de toda a normalidade.
A Verdadeiríssima Divindade assim o
educa desde que os abaeté foram por primeira vez entoados.
Basta olhar a mata para aprender como é
culta. A mata é boa.
Honra prosseguiu com seus humildes golpes
no tronco que se feria sem sobressalto e espiava como Pé de Urutago
aparentava ser mais do que apenas um. No seu temor peculiar, Honra
pensava que se a nova era houvesse de chegar lhe curaria a cor e o
sangue. Faria dele um abaeté inteiro e sem mácula. Então, pensou
que queria ser o primeiro galho onde o corpo inteiro de Pé de
Urutago teria de pisar para subir ao clarão. O curumim sentiu que
seria para aquele guerreiro o servo perfeito, o lugar de partir para
a verticalidade imensa que se desferia nos céus em alturas da
tempestade. Nem que o pé a pisar-lhe as costas abrisse a pele,
quebrasse o interior, mudasse sua robustez. À glória do osso de
relâmpago descido ao meio das ilhas haveria de corresponder apenas
sapiência e nenhuma dor. Honra imaginou para criar. Bateu a piroga
mais e com mais vigor e desejou ansiosamente que chegassem as
tempestades. Sabia da limpeza azul sobre sua cabeça, mas poderia
suplicar que tudo mudasse. Poderia suplicar que o mundo inteiro
instalasse o desafio desmesurado que se prometera ao guerreiro
nascido para voar. Quando Altura Verde o notou batendo com mais
força, sentiu orgulho. Julgava ele que o filho aprendia sozinho a
maravilha de começar, com aquele gesto, a navegação.
Escavava o tronco e, com aquele gesto,
começava a navegação. A comunidade alegrava, como tão importante
era que se alegrasse.
Honra, mestiço na alegria também, ainda
zangava e parecia-lhe bem zangar-se. Parecia-lhe justo. E sempre o
tremendo animal líquido cintilava e o curumim guardava a impressão
de que um clarão inteiro de relâmpago se levantaria dali para estar
à mercê da glória do que soa para voar. Honra pensava:
levanta, sagrado relâmpago, levanta
junto da mão de Pé de Urutago, junto de minha cor por curar de vez
por todas.
Pequenos bocados de madeira eram atirados
a boiar para divertirem os guerreiros. Navegavam de volta, quase
todos atracando no areal onde revolviam imprestáveis e sem
pescadores. Eram inúteis. Faziam de brinquedo. E o primeiro mar todo
seguia incansável, tratando os brinquedos com a mesma chefia com que
flutuariam as pirogas de verdade. Pé de Urutago o explicava, que a
abundância das ilhas e dos três mares bastava até para o que
servia de nada. O tremendo animal líquido nem se importaria com ser
usado para tarefa nenhuma, nem pela fome nem pela guerra. A ampla
generosidade da natureza era sagrada. O grande guerreiro chamava
atenção para o tempo de divertir para que a diversão fosse grata e
nenhum esquecesse a obrigação alegre de agradecer. Honra, olhando
os pedaços disformes de madeira que o primeiro mar pacientemente
devolvia, pensava que a natureza haveria de criar o relâmpago nem
que por paciência, sem sequer muito estar prevenida para entregar o
osso de luz à mão do guerreiro escolhido. De alguma forma,
considerava o guerreiro de corpo ocupado, a natureza haveria de poder
ser incentivada aos clarões para que os clarões houvessem de ser
imediatamente caçados. Igual a chamar as feras que atendiam por um
assobio. Haveriam de assobiar aos clarões até que eles chegassem e
se deixassem caçar para ser tudo ao tamanho do que está certo.
Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil
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