terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Capítulo cinco | O osso do relâmpago


Eram incontáveis os guerreiros que haviam sido intuídos para voar. Antes de Pé de Urutago, a memória registava as glórias de Caiboaté Alado, Sentimento de Vento, Asa de Avaré, Voz de Ar, Arara Universal, Sorriso Subido, entre outros. Todos foram nascidos para a profecia de tomarem em mãos o osso do relâmpago e inaugurarem o tempo prometido. Subitamente petrificado, como bocado de água seca que cintilasse em luz própria, o osso do relâmpago seria erguido ao centro das ilhas e incidiria sobre toda a mata enquanto garantia da luz eterna e da paz. Era pensado que a Verdadeiríssima Divindade deitaria sobre o osso a própria carne e haveria de caminhar ela mesma entre a criação com generosidade e infinito esclarecimento. Nenhum inimigo teria como abeirar com seus intentos terríveis. A ancestralidade intuíra mil vezes como verdadeirissimamente estava previsto que, em algum instante, um guerreiro escolhido subiria numa velocidade inigualável o clarão breve e temperamental e desceria empunhando-o como um novo deus.
Um deus só ocorre para os que necessitam. Deuses são por mérito dos que não desistem.

*

No princípio, havia apenas a meditação do silêncio. Na presença do silêncio tudo era vazio e nada necessitava. Depois, o ruído aconteceu e isso só podia diante do espaço. A materna pedra do fundo estendeu e permitiu ser ocupada. Aí, nasceu a imaginação.
A Divindade imaginou e tudo quanto quis se tornou mais do que verdadeiro e imaginar é movimento. O movimento criou o grão ainda poeira. A Divindade comoveu e imaginou o pranto que desceu como infinito, eterno e tremendo animal líquido, resfolegando continuamente. Seu pranto homenageia as coisas boas e as coisas são boas.
Até ao quarto mar são as ilhas abaeté, o órgão vital onde o começo conserva seu sentido, sua raiz. A Divindade entoou:
abaeté.
O primeiro habitou o nome. Desde então que cada um é coágulo de seu nome. Cada coisa é coágulo da palavra.
A história é a biografia da Divindade. Palavra longa que alonga.
Aqueles que soam criam com a Divindade e são dela e para ela. Serão de nenhuma diferença no instante em que imaginar. Entre a Divindade e os ancestrais a diferença diminui.
A morte melhora cada um.
Os mortos têm função.
Os mortos juntam na Pedra que Soa. Sua voz é coral. Ela contém a absoluta encantaria.
A captura do nome é fortuna, uma sabedoria domesticada ou por domesticar.
As águas tomaram o lamento e no embalo couberam os mínimos e depois os peixes e as fugazes transparências.
No princípio, as decisões eram boas e todos os acordos estavam ainda possíveis.
Levantada a proibição de existir, tudo se apressou a escutar seu nome para criar seu corpo, ter espírito, entidade, vontade de também criar. Mesmo aquilo que não viveu pôde criar corpo, caber no som.
Coisas nunca vividas têm nome. São. Podem estar à espera.
Bichos diferiram pelo modo de comer e de discutir línguas, que reservam suas próprias astúcias e esconderijos, adiamentos, dissimulações e avidez.
As partes canoras apoderaram as línguas para gerir a fome de cada instante e cada coisa, para pormenorizar. Há fome até nas evidências mortas, nas que nunca viveram e têm corpo, cabem num nome e podem devorar, servem de ataque e de defesa.
A quebra do silêncio pode ser considerada vocábulo, primeiro gesto da língua. As partes canoras imitam a quebra do silêncio inicial e ajudam a criar. Entoar é criação.
Aquele que soa era bocado de cada bicho, contido na onça e na arara, no peixe e no insecto. Ele já era baixo e alto, da terra, da água e do ar, recolhido ou agigantado, belo ou inexplicável, radicava da inteira construção do mundo, nascia no mundo vindo de toda a parte.
Aquele que soa subiu e desceu de todos os animais com um pouco da memória de seus saberes e juntou num só, caminhando erguido.
Com ele, a criação clarificou o desejo e a beleza.
A beleza tornou evidente e a maior de todas surgiu no filhote de tapir.
Houve caroba e a sua cor, sua doçura e milhões de mangangavas, a guaricica, o coqueiro, a tatajuba, a maçaramduba e a salvadora andiroba, branca ou vermelha, por generosidade da terra e pelo alagado da mata.
Houve todas as árvores, tantas sem entrega de nome, ainda porque suas explicações são adiadas, seus espíritos insignificantes, não têm por agora significado. Seus nomes haverão de ser língua diferida, por escutar. Resultam em sombra. De todo o modo, resultam em sombra e a sombra é boa.
A morte é ofício e foi dito que a morte tem função. Aquele que soa repetiu e aprendeu que também existe uma natureza escondida por dentro.
As ilhas são a terra mutilada, ferimento na mordedura do tremendo animal líquido onde se pesca e navega piroga.
Por dentro há sagrado e proibido. O vazio de piroga é um interior. Muito interior é vazio.
As femininas cantaram primeiro.
A língua voltou das femininas com jeito de juízo e de flor e aprendeu sua bênção. Nas canções são guardados os ensinamentos. Cantar é lembrar, saber e fazer vida.
Aves escutam as femininas para melhorar. Aves escutam os guerreiros para temer.
As aldeias trabalharam até que as plantas fossem domesticadas, ensinadas a crescer do abrigo da semente exactamente no lugar onde deitadas. Elas foram agraciadas e apartadas dos atributos inférteis da mata.
A natureza aprisionou árvores inteiras na imaginação de uma semente.
A água inaugura a semente.
Aqueles que soam levam água às dos melhores frutos e isso promete matar a fome.
Tudo o que sagra se expõe ao sol ou busca o pouco de fogo.
Bichos que vivem enterrados são imaturos. São raízes de bichos, bichos adiados.
Foi a morte de uma onça que fez o sol. Era importante que a criação visse e do sangue intenso da onça acendeu. O brilho é modo de a Divindade olhar. Tudo pode brilhar, nem que por um instante, sem se dar conta. E outro sangue pode chegar ao sol, que não devora, apenas refulge.
Despertar é puro. O instante seguinte é corrupção. Antes de relembradas as emoções, todos os que soam são iguais, abençoados pela limpidez. As emoções propõem a alegria e o perigo.
A obrigação de agradecimento acontece no pranto. Por ser essencial, o pajé chefia à aldeia que chore, e a aldeia chora.
Todas as curas estão prometidas no osso do relâmpago. Quando houver de ser admitido à mão de um guerreiro, a Divindade poderá mostrar seu corpo rigoroso e caminhar entre os que soam, entoando graças em cada alegria, e tudo será alegria e sem mais perigo. Tudo será sem inimigo. A intensa iluminação eterna haverá de educar os vivos bem antes de só poderem ser educados quando mortos.
E os vivos serão só esplendor e farão esplendor e o esplendor terá o tamanho de toda a normalidade.
A Verdadeiríssima Divindade assim o educa desde que os abaeté foram por primeira vez entoados.
Basta olhar a mata para aprender como é culta. A mata é boa.
Honra prosseguiu com seus humildes golpes no tronco que se feria sem sobressalto e espiava como Pé de Urutago aparentava ser mais do que apenas um. No seu temor peculiar, Honra pensava que se a nova era houvesse de chegar lhe curaria a cor e o sangue. Faria dele um abaeté inteiro e sem mácula. Então, pensou que queria ser o primeiro galho onde o corpo inteiro de Pé de Urutago teria de pisar para subir ao clarão. O curumim sentiu que seria para aquele guerreiro o servo perfeito, o lugar de partir para a verticalidade imensa que se desferia nos céus em alturas da tempestade. Nem que o pé a pisar-lhe as costas abrisse a pele, quebrasse o interior, mudasse sua robustez. À glória do osso de relâmpago descido ao meio das ilhas haveria de corresponder apenas sapiência e nenhuma dor. Honra imaginou para criar. Bateu a piroga mais e com mais vigor e desejou ansiosamente que chegassem as tempestades. Sabia da limpeza azul sobre sua cabeça, mas poderia suplicar que tudo mudasse. Poderia suplicar que o mundo inteiro instalasse o desafio desmesurado que se prometera ao guerreiro nascido para voar. Quando Altura Verde o notou batendo com mais força, sentiu orgulho. Julgava ele que o filho aprendia sozinho a maravilha de começar, com aquele gesto, a navegação.
Escavava o tronco e, com aquele gesto, começava a navegação. A comunidade alegrava, como tão importante era que se alegrasse.
Honra, mestiço na alegria também, ainda zangava e parecia-lhe bem zangar-se. Parecia-lhe justo. E sempre o tremendo animal líquido cintilava e o curumim guardava a impressão de que um clarão inteiro de relâmpago se levantaria dali para estar à mercê da glória do que soa para voar. Honra pensava:
levanta, sagrado relâmpago, levanta junto da mão de Pé de Urutago, junto de minha cor por curar de vez por todas.
Pequenos bocados de madeira eram atirados a boiar para divertirem os guerreiros. Navegavam de volta, quase todos atracando no areal onde revolviam imprestáveis e sem pescadores. Eram inúteis. Faziam de brinquedo. E o primeiro mar todo seguia incansável, tratando os brinquedos com a mesma chefia com que flutuariam as pirogas de verdade. Pé de Urutago o explicava, que a abundância das ilhas e dos três mares bastava até para o que servia de nada. O tremendo animal líquido nem se importaria com ser usado para tarefa nenhuma, nem pela fome nem pela guerra. A ampla generosidade da natureza era sagrada. O grande guerreiro chamava atenção para o tempo de divertir para que a diversão fosse grata e nenhum esquecesse a obrigação alegre de agradecer. Honra, olhando os pedaços disformes de madeira que o primeiro mar pacientemente devolvia, pensava que a natureza haveria de criar o relâmpago nem que por paciência, sem sequer muito estar prevenida para entregar o osso de luz à mão do guerreiro escolhido. De alguma forma, considerava o guerreiro de corpo ocupado, a natureza haveria de poder ser incentivada aos clarões para que os clarões houvessem de ser imediatamente caçados. Igual a chamar as feras que atendiam por um assobio. Haveriam de assobiar aos clarões até que eles chegassem e se deixassem caçar para ser tudo ao tamanho do que está certo.

Valter Hugo Mãe, in As doenças do Brasil

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