Bem-feito. Red odeia o lugar. Para
começar, são tantas Atlântidas, sempre afundando, em tantos
filamentos: uma ilha na costa da Grécia, um continente no meio do
Atlântico, uma avançada civilização pré-Minoica na ilha de
Creta, uma espaçonave flutuando ao norte do Egito, e assim por
diante. A maioria dos filamentos nem tem Atlântidas, só conhece o
lugar através de sonhos e sussurros alucinados de poetas mais
alucinados ainda.
Porque há tantas, Red não consegue
consertar, ou fracassa em consertar, somente uma. Às vezes, parece
que os filamentos fazem brotar Atlântidas para provocá-la. Eles
conspiram. A história se alia com o inimigo. Trinta, quarenta vezes
ao longo de sua carreira, ela deixou uma ilha em pleno naufrágio, ou
incêndio, pensando: pelo menos acabou. Trinta, quarenta vezes, veio
a chamada: volte lá.
Ao pé do vulcão, os habitantes de pele
escura procuram seus navios. Uma mãe carrega o filho que chora em um
braço, agarra a filha pela mão. O pai segue. Ele carrega seus itens
de mais valor. Lágrimas marcam a fuligem em seu rosto. Uma
sacerdotisa e um sacerdote permanecem no templo. Eles serão
queimados. Viveram suas vidas como sacrifícios para — quem mesmo?
Red já não lembra. Ela se sente mal por isso.
Eles viveram suas vidas como sacrifícios.
Deuses e crianças primeiro, eles enchem
os barcos. Enquanto a terra treme e o céu queima, mesmo os mais
corajosos e mais teimosos abandonam seus trabalhos. Notas e contas e
máquinas novas ficam para trás. Eles levam pessoas e arte. A
matemática vai queimar, as máquinas vão derreter, os arcos, se
desintegrar.
Essa não é nem uma das Atlântidas mais
estranhas. Não há cristais aqui, não há carros voadores, não há
governos perfeitos nem poderes psíquicos. (Essas duas últimas
coisas não existem, de todo modo.) E ainda assim: aquele homem
construiu um motor a vapor e vento seis séculos antes do pretendido.
Essa mulher, por meio da razão e da meditação extática, discerniu
a utilidade do zero para sua matemática. Esse pastor construiu
passagens em arco nas paredes de sua casa. Pequenos toques, ideias
tão fundamentais que parecem inúteis. Ninguém ali sabe o seu
valor, ainda. Mas se eles não morrerem nessa ilha, alguém pode
perceber sua utilidade alguns séculos adiantado e mudar tudo.
Então Red tenta dar tempo a eles.
Seus implantes cintilam em
vermelho-brilhante, para dar vazão ao calor. Eles queimam sua pele.
Ela sua baldes. Resmunga. Franze a testa. Ela se esforça, ali.
Salvar uma ilha não é trabalho para uma mulher só, então ela
trabalha mais do que uma mulher só poderia.
Ela rola rochas enormes para impedir o
fluxo de lava. Ela ara novos e falsos leitos de rio com as mãos. Com
as ferramentas à disposição, ela quebra rochas e transforma seus
pedaços em outras rochas, em outros lugares. O vulcão treme e se
parte, vomita pedras no ar. Uma pilastra de fuligem brota de seu
cume. Ela corre colina acima, um feixe de pele e luz.
A lava cintila, borbulha, cospe. Um pouco
aterrissa perto dela, que dá um passo para o lado.
O mar verde-cinza reflete o céu preto
turvo. Os últimos biguás fogem, escuridão contra o breu. Red busca
um sinal. Está deixando alguma coisa passar. Ela não sabe o quê.
Observa os céus e os oceanos por um momento, pensando.
Enquanto Red está distraída, um escarro
de lava espirra na direção de seu rosto. Ela o pega na mão sem
olhar. Sua pele, se fosse o tipo de pele que os habitantes do
vilarejo lá embaixo usam em torno da carne, deveria queimar. Não é,
não queima.
Tempo demais observando. Ela dá as
costas à caldeira, ao poço de lava.
Ela para.
Preto e dourado se entremeiam na erupção
vermelha. Parece a superfície de alguns sóis que ela já visitou
quando de licença. Não é isso que chama sua atenção.
As cores inconstantes formam palavras que
duram meros instantes, em uma caligrafia agora familiar. Enquanto a
lava escorre, as palavras mudam.
Ela lê. Seus lábios formam as sílabas
uma a uma. Guarda as palavras que o fogo emoldura em um tipo antigo
de memória. Há câmeras em seus olhos, que ela não usa nesse
momento. Um mecanismo de gravação rodeia o feixe de fibras em seu
crânio, podendo ser confundido com um nervo óptico; ela o desliga,
coisa que a Agência não sabe que ela consegue fazer. A lava
transborda. Red pretendia destruir esse alto promontório no qual se
encontra, fazer uma espécie de calha para derramar rocha derretida
pelo canal predeterminado. Em vez disso, ela para e observa.
Lá embaixo, o vilarejo queima. Sem seu
enorme esforço no cume, os diques e redutos que criou não funcionam
tão bem, mas a matemática ainda tem tempo de pegar suas tábuas de
cera, ao menos. Os barcos partem; se afastam o suficiente para
sobreviver ao tsunami enquanto suas casas desabam no mar.
Red não falhou completamente. Ela
balança a cabeça e vai embora, torcendo para que essa seja a última
Atlântida que a enviarão para salvar. Ela lembra.
O vulcão sossega. Ventos partem as
nuvens, a seu tempo, e deixam o céu azul.
A rastreadora sobe a colina escorregadia
e estéril. Fibras de um fino e brilhante vidro vulcânico se agrupam
perto da lava que esfria. Eu outro tempo e lugar, eles serão
chamados de “cabelo de Pele”. A rastreadora os junta com as mãos,
como flores, cantarolando.
Amal El-Mohtar e Max Gladstone, in É assim que se perde a guerra do tempo
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