terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Atlântida afunda

Bem-feito. Red odeia o lugar. Para começar, são tantas Atlântidas, sempre afundando, em tantos filamentos: uma ilha na costa da Grécia, um continente no meio do Atlântico, uma avançada civilização pré-Minoica na ilha de Creta, uma espaçonave flutuando ao norte do Egito, e assim por diante. A maioria dos filamentos nem tem Atlântidas, só conhece o lugar através de sonhos e sussurros alucinados de poetas mais alucinados ainda.
Porque há tantas, Red não consegue consertar, ou fracassa em consertar, somente uma. Às vezes, parece que os filamentos fazem brotar Atlântidas para provocá-la. Eles conspiram. A história se alia com o inimigo. Trinta, quarenta vezes ao longo de sua carreira, ela deixou uma ilha em pleno naufrágio, ou incêndio, pensando: pelo menos acabou. Trinta, quarenta vezes, veio a chamada: volte lá.
Ao pé do vulcão, os habitantes de pele escura procuram seus navios. Uma mãe carrega o filho que chora em um braço, agarra a filha pela mão. O pai segue. Ele carrega seus itens de mais valor. Lágrimas marcam a fuligem em seu rosto. Uma sacerdotisa e um sacerdote permanecem no templo. Eles serão queimados. Viveram suas vidas como sacrifícios para — quem mesmo? Red já não lembra. Ela se sente mal por isso.
Eles viveram suas vidas como sacrifícios.
Deuses e crianças primeiro, eles enchem os barcos. Enquanto a terra treme e o céu queima, mesmo os mais corajosos e mais teimosos abandonam seus trabalhos. Notas e contas e máquinas novas ficam para trás. Eles levam pessoas e arte. A matemática vai queimar, as máquinas vão derreter, os arcos, se desintegrar.
Essa não é nem uma das Atlântidas mais estranhas. Não há cristais aqui, não há carros voadores, não há governos perfeitos nem poderes psíquicos. (Essas duas últimas coisas não existem, de todo modo.) E ainda assim: aquele homem construiu um motor a vapor e vento seis séculos antes do pretendido. Essa mulher, por meio da razão e da meditação extática, discerniu a utilidade do zero para sua matemática. Esse pastor construiu passagens em arco nas paredes de sua casa. Pequenos toques, ideias tão fundamentais que parecem inúteis. Ninguém ali sabe o seu valor, ainda. Mas se eles não morrerem nessa ilha, alguém pode perceber sua utilidade alguns séculos adiantado e mudar tudo.
Então Red tenta dar tempo a eles.
Seus implantes cintilam em vermelho-brilhante, para dar vazão ao calor. Eles queimam sua pele. Ela sua baldes. Resmunga. Franze a testa. Ela se esforça, ali. Salvar uma ilha não é trabalho para uma mulher só, então ela trabalha mais do que uma mulher só poderia.
Ela rola rochas enormes para impedir o fluxo de lava. Ela ara novos e falsos leitos de rio com as mãos. Com as ferramentas à disposição, ela quebra rochas e transforma seus pedaços em outras rochas, em outros lugares. O vulcão treme e se parte, vomita pedras no ar. Uma pilastra de fuligem brota de seu cume. Ela corre colina acima, um feixe de pele e luz.
A lava cintila, borbulha, cospe. Um pouco aterrissa perto dela, que dá um passo para o lado.
O mar verde-cinza reflete o céu preto turvo. Os últimos biguás fogem, escuridão contra o breu. Red busca um sinal. Está deixando alguma coisa passar. Ela não sabe o quê. Observa os céus e os oceanos por um momento, pensando.
Enquanto Red está distraída, um escarro de lava espirra na direção de seu rosto. Ela o pega na mão sem olhar. Sua pele, se fosse o tipo de pele que os habitantes do vilarejo lá embaixo usam em torno da carne, deveria queimar. Não é, não queima.
Tempo demais observando. Ela dá as costas à caldeira, ao poço de lava.
Ela para.
Preto e dourado se entremeiam na erupção vermelha. Parece a superfície de alguns sóis que ela já visitou quando de licença. Não é isso que chama sua atenção.
As cores inconstantes formam palavras que duram meros instantes, em uma caligrafia agora familiar. Enquanto a lava escorre, as palavras mudam.
Ela lê. Seus lábios formam as sílabas uma a uma. Guarda as palavras que o fogo emoldura em um tipo antigo de memória. Há câmeras em seus olhos, que ela não usa nesse momento. Um mecanismo de gravação rodeia o feixe de fibras em seu crânio, podendo ser confundido com um nervo óptico; ela o desliga, coisa que a Agência não sabe que ela consegue fazer. A lava transborda. Red pretendia destruir esse alto promontório no qual se encontra, fazer uma espécie de calha para derramar rocha derretida pelo canal predeterminado. Em vez disso, ela para e observa.
Lá embaixo, o vilarejo queima. Sem seu enorme esforço no cume, os diques e redutos que criou não funcionam tão bem, mas a matemática ainda tem tempo de pegar suas tábuas de cera, ao menos. Os barcos partem; se afastam o suficiente para sobreviver ao tsunami enquanto suas casas desabam no mar.
Red não falhou completamente. Ela balança a cabeça e vai embora, torcendo para que essa seja a última Atlântida que a enviarão para salvar. Ela lembra.
O vulcão sossega. Ventos partem as nuvens, a seu tempo, e deixam o céu azul.
A rastreadora sobe a colina escorregadia e estéril. Fibras de um fino e brilhante vidro vulcânico se agrupam perto da lava que esfria. Eu outro tempo e lugar, eles serão chamados de “cabelo de Pele”. A rastreadora os junta com as mãos, como flores, cantarolando.

Amal El-Mohtar e Max Gladstone, in É assim que se perde a guerra do tempo

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