segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

A Arte da chuva

Assim como se desencadeiam o frio, a chuva e o barro das ruas, quer dizer, o insolente e arrasador inverno do sul da América, o verão também chegava a estas regiões, amarelo e abrasador. Estávamos rodeados de montanhas virgens, porém eu queria conhecer o mar. Por sorte meu pai, voluntarioso, conseguiu uma casa emprestada de um de seus numerosos compadres ferroviários. Meu pai, o condutor, na escuridão completa das quatro da noite (nunca soube por que se diz quatro da manhã), despertava toda a casa com seu apito. Desse minuto em diante não havia mais paz nem tampouco havia luz, e entre velas, cujas chamazinhas bruxuleavam por causa das rajadas que se filtravam por toda parte, minha mãe, meus irmãos Laura e Rodolfo e a cozinheira corriam de um lado para o outro enrolando grandes colchões que se transformavam em bolas imensas envoltas em tecido de juta que eram despachadas às pressas pelas mulheres. Era preciso embarcar as camas no trem. Os colchões estavam ainda quentes quando partiam para a estação próxima. Enfermiço e fraco por natureza, sobressaltado na metade do sonho, eu sentia náuseas e calafrios. Entretanto, na casa os carregamentos continuavam sem terminar nunca. Não havia coisa que não levassem para essas férias de pobres. Até secadores de vime, que eram colocados sobre os fogareiros acesos para secar lençóis e a roupa perpetuamente umedecida pelo clima, eram etiquetados e colocados na carroça que esperava os volumes.
O trem percorria um pedaço daquela província fria desde Temuco até Carahue. Atravessava extensões imensas e desabitadas, sem cultivo, atravessava os bosques virgens, soava como um terremoto por túneis e pontes. As estações ficavam ilhadas no meio do campo, entre acácias e macieiras floridas. Os índios araucanos, com seus trajes rituais e sua majestade ancestral, esperavam nas estações para vender aos passageiros carneiros, galinhas, ovos e tecidos. Meu pai sempre comprava algo com interminável regateio. Com sua barbicha loura, erguia uma galinha em frente a uma araucana impenetrável que não baixava nem meio centavo o preço de sua mercadoria. Cada estação tinha um nome mais bonito, quase todos herdados das antigas possessões araucanas. Essa foi a região dos combates mais encarniçados entre os invasores espanhóis e os chilenos primitivos, filhos profundos daquela terra.
Labranza era a primeira estação, Boroa e Ranquilco a seguiam. Nomes com aroma de plantas selvagens, que me cativavam com suas sílabas. Sempre estes nomes araucanos significavam algo delicioso: mel escondido, lagoas ou rio perto de um bosque, ou monte com nome de pássaro. Passávamos pela pequena aldeia de Imperial, onde o poeta Dom Alonso de Ercilla quase foi executado pelo governador espanhol. Nos séculos XV e XVI aqui foi a capital dos conquistadores. Os araucanos, na guerra pela sua pátria, inventaram a tática de terra arrasada. Não deixaram pedra sobre pedra da cidade descrita por Ercilla como bela e soberba.
E, em seguida, a chegada à cidade fluvial. O trem dava seus apitos mais alegres, escurecia o campo e a estação com imensos penachos de fumaça de carvão, tilintavam os sinos e já se percebia o curso amplo, azul e tranqüilo do rio Imperial que se acercava do oceano. Descer as bagagens inumeráveis, organizar a pequena família e dirigirnos em carro de bois até o vapor que desceria pelo rio Imperial, era um espetáculo dirigido pelos olhos azuis e pelo apito ferroviário de meu pai. Metíamo-nos com as bagagens no barquinho que nos levava ao mar. Não havia camarotes. Eu me sentava perto da proa. As rodas moviam com suas pás a corrente fluvial, as máquinas da pequena embarcação resfolegavam e rangiam, a taciturna gente sulina ficava como mobílias imóveis dispersas pelo convés.
Um acordeão lançava seu lamento romântico, uma incitação ao amor. Não há nada mais envolvente para um coração de quinze anos que navegar por um rio amplo e desconhecido, entre ribeiras montanhosas, a caminho do mar misterioso.
Bajo Imperial era só uma fileira de casas de tetos vermelhos. Estava situada sobre a frente do rio. Da casa que nos esperava e, ainda antes, dos cais desconjuntados onde atracou o vaporzinho, escutei a distância o estrondo marinho, uma comoção distante. O marulhar entrava em minha vida.
A casa pertencia a Dom Horácio Pacheco, agricultor gigantesco que, durante esse mês de nossa estada em sua casa, ia e levava pelas colinas e pelos caminhos intransitáveis seu trator e sua debulhadora. Com a máquina colhia o trigo dos índios e dos camponeses, isolados na povoação costeira. Era um homenzarrão que de repente irrompia em nossa família ferroviária falando com voz estentórea e coberto de pó e palha de cereais. Depois, com o mesmo estrondo, voltava às suas tarefas nas montanhas. Foi para mim mais um exemplo das vidas duras de minha região austral.
Tudo era misterioso para mim naquela casa, nas ruas maltratadas, nas existências desconhecidas que me rodeavam, no som profundo da distância marinha. A casa tinha o que me pareceu um imenso jardim desordenado, com um caramanchão central castigado pela chuva, caramanchão de vigas brancas cobertas pelas trepadeiras. A não ser minha insignificante pessoa, ninguém entrava nunca na solidão sombria onde cresciam as heras, as madressilvas e minha poesia. É certo que havia naquele jardim estranho outro objeto fascinante: um bote, órfão de grande naufrágio, que jazia ali no jardim sem ondas nem tormentas, encalhado entre as amapolas.
O mais estranho naquele jardim selvagem era que, intencionalmente ou por descuido, havia somente amapolas. As outras plantas tinham-se retirado do lugar sombrio. Algumas eram grandes e brancas como pombas; outras, escarlates como gotas de sangue, ou cor de amora e negras como viúvas esquecidas. Eu nunca tinha visto tanta quantidade de amapolas e nunca mais voltei a ver. Ainda que as olhasse com muito respeito, com certo supersticioso temor que só elas infundem, entre todas as flores, não deixava de cortar de vez em quando alguma, cujo talo quebrado deixava um leite áspero em minhas mãos e uma lufada de perfume inumano. Acariciava e guardava em um livro as pétalas suntuosas de seda. Para mim eram asas de grandes mariposas que não sabiam voar.
Quando estive pela primeira vez diante do oceano fiquei atônito. Ali, entre duas grandes elevações (o Huilque e o Maule) desencadeava-se a fúria do grande mar. Não eram só as imensas ondas nevadas que se erguiam a muitos metros sobre nossas cabeças, como também um estrondo de coração colossal, a palpitação do universo.
Ali a família dispunha suas toalhas de mesa e seus bules de chá. Os alimentos chegavam à boca cobertos de areia, o que não importava muito. O que me assustava era o momento apocalíptico em que meu pai nos ordenava o banho de mar de cada dia. Longe das ondas gigantescas, a água nos salpicava, a minha irmã Laura e a mim, com seus látegos de frio. E acreditávamos, trêmulos, que o dedo de uma onda nos arrastaria até as montanhas do mar. Com os dentes batendo e as costelas arroxeadas nós dispúnhamos, minha irmã e eu, de mãos dadas, a morrer, quando soava o apito ferroviário e meu pai nos ordenava sair do martírio.
Contarei outros mistérios daquele lugar. Um eram os cavalos percherões e outro a casa das três mulheres encantadas.
No extremo da aldeola erguiam-se alguns casarões, provavelmente curtumes. Pertenciam a bascos franceses. Quase sempre estes bascos controlavam as indústrias de couro no sul do Chile. O que me interessava era ver como saíam dos portões, a certa hora do entardecer, grandes cavalos que atravessavam o vilarejo.
Eram cavalos percherões, potros e éguas de estatura gigantesca. Suas grandes crinas caíam como cabeleiras sobre os altíssimos lombos. Tinham patas imensas também cobertas de tufos de pêlos que, ao galopar, ondulavam como penachos. Eram alazões, brancos, rosilhos poderosos. Assim teriam andado os vulcões se pudessem trotar e galopar como aqueles cavalos colossais. Como um abalo de terremoto, caminhavam sobre as ruas poeirentas e pedregosas. Relinchavam asperamente, fazendo um ruído subterrâneo que estremecia a atmosfera tranquila. Arrogantes, incomensuráveis e estatuários, nunca voltei a ver cavalos como esses em minha vida, a não ser os que vi na China, talhados em pedra como monumentos tumulares da dinastia Ming. Porém a pedra mais venerável não pode dar o espetáculo daquelas tremendas vidas animais que pareciam, aos meus olhos de menino, sair da escuridão dos sonhos em direção a outro mundo de gigantes.
Em realidade, aquele mundo silvestre estava cheio de cavalos. Pelas mas, cavaleiros chilenos, alemães e mapuches, todos com ponchos de lã negra, subiam ou desciam de suas montarias. Os animais, magros ou bem tratados, esquálidos ou opulentos, ficavam ali onde os cavaleiros os deixavam, ruminando o capim dos caminhos e deitando fumaça pelas ventas. Estavam acostumados a seus amos e a vida solitária do povoado. Voltavam mais tarde, carregados com bolsas de mantimentos ou de ferramentas, para as intrincadas alturas, subindo por caminhos péssimos ou galopando infinitamente pela areia junto ao mar.
De vez em quando saía de uma casa de penhores ou de uma taberna sombria algum cavaleiro araucano que, com dificuldade, montava o seu cavalo imutável e logo tomava o caminho de regresso à sua casa entre os montes, cambaleando de um lado para o outro, bêbado até à inconsciência. Ao vê-lo começar e continuar seu caminho me parecia que o centauro alcoolizado ia cair ao solo cada vez que se inclinava perigosamente, mas me enganava: sempre voltava a erguer-se para logo inclinar-se outra vez dobrando-se até o outro lado e sempre se recuperando, grudado à montaria. Continuaria assim montado sobre o cavalo por quilômetros e quilômetros, até fundir-se na natureza selvagem como um animal vacilante, obscuramente invulnerável.
Voltamos em outros verões, com as mesmas cerimônias domésticas, à região fascinante. Fui crescendo, lendo, enamorando-me e escrevendo com o passar do tempo, entre os amargos invernos de Temuco e a misteriosa estiagem do litoral.
Acostumei-me a andar a cavalo. Minha vida foi ficando mais elevada e ampla pelas rotas de barro íngreme, por caminhos de curvas imprevistas. Ao meu encontro saíam os vegetais emaranhados, o silêncio e o som dos pássaros selvagens, o estalido súbito de uma árvore florida, vestida de escarlate como um arcebispo imenso das montanhas ou nevada por uma batalha de flores desconhecidas. Ou de vez em quando também inesperada, a flor do copihue, selvagem, indomável, irredutível, pendente das matas como uma gota fresca de sangue. Fui me habituando ao cavalo, à montaria, aos duros e complicados arreios, às esporas cruéis que tilintavam em meus calcanhares. Começou por praias infinitas e montes emaranhados uma comunicação entre minha alma, quer dizer, entre minha poesia e a terra mais solitária do mundo. Isto foi há muitos anos, mas essa comunicação, essa revelação, esse pacto com o espaço, tem continuado ao longo de minha vida.

Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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