Quando conheci Randall Harris, ele estava
com 42 anos e vivia com uma mulher de cabelo grisalho, uma tal de
Margie Thompson. Margie estava com 45 e não era muito bonita.
Naquela época, eu editava uma pequena revista chamada Mad Fly e
tinha ido visitá-los numa tentativa de conseguir algum material de
Randall.
Randall era conhecido por ser um
solitário convicto, um bêbado, um homem bruto e amargo, mas seus
poemas eram crus, crus e honestos, simples e selvagens. Estava
escrevendo como ninguém mais fazia naquela época. Ele trabalhava
como despachante em um depósito de autopeças.
Sentei de frente para Randall e Margie.
Eram sete e quinze da noite e Harris já estava bêbado de cerveja.
Pôs uma garrafa na minha frente. Eu tinha ouvido falar de Margie
Thompson. Ela era uma comunista das antigas, uma salvadora do mundo,
uma benfeitora. Alguém poderia se perguntar o que ela estava fazendo
ao lado de Randall, que não se importava com nada e não fazia
questão de escondê-lo.
– Gosto de fotografar merda – ele me
disse –, essa é a minha arte.
Randall começou a escrever com 38 anos.
Com 42, depois de três pequenos livros de contos (A morte é uma
cadela mais suja que o meu país, Minha mãe trepou com um anjo e Os
cavalos desenfreados da loucura), estava começando a receber o que
se pode chamar de reconhecimento da crítica. Mas não ganhava grana
com seus textos e disse:
– Não sou nada além de um despachante
com uma depressão profunda.
Vivia em um velho casarão em Hollywood
com Margie, e ele era estranho, de verdade.
– Apenas não gosto de gente – ele
disse. – Sabe, Will Rogers disse uma vez: “Nunca encontrei um
homem de quem não gostasse”. Comigo é o contrário, nunca
encontrei um homem de quem gostasse.
Mas Randall tinha senso de humor, uma
capacidade de rir da dor e de si mesmo. Não havia como não gostar
dele. Era um homem feio com um cabeção e uma cara amassada...
apenas o nariz parecia ter escapado do achatamento generalizado.
– Não tenho osso suficiente em meu
nariz, é como se fosse de borracha – ele explicava. Seu nariz era
longo e muito vermelho.
Eu já ouvira histórias sobre Randall.
Dizia-se que era de quebrar janelas e jogar garrafas contra as
paredes. Era um bêbado terrível. Também tinha períodos em que não
atendia à porta nem ao telefone. Não tinha televisão, apenas um
radinho e somente ouvia música sinfônica... algo estranho para um
sujeito bruto como ele.
Randall também tinha períodos em que
tirava a parte de baixo do telefone e enchia com papel higiênico ao
redor da campainha para que não soasse. Ficava assim por meses.
Alguém poderia se perguntar por que ele tinha um telefone, afinal.
Sua educação era precária, mas ele evidentemente lia boa parte dos
melhores escritores.
– Bem, seu merda – ele me disse –,
imagino que você esteja se perguntando o que faço ao lado dela? –
e apontou para Margie.
Não respondi.
– Ela é boa de cama – ele disse –
e me dá as melhores fodas a oeste de Saint Louis.
Esse era o mesmo sujeito que tinha
escrito quatro ou cinco excelentes poemas de amor para uma mulher
chamada Annie. Era de se pensar como tudo isso funcionava.
Margie apenas ficava sentada ali,
mostrando os dentes. Ela também escrevia poesia, mas não era muito
boa. Frequentava dois workshops por semana, o que não ajudava muito.
– Então você quer alguns poemas? –
ele me perguntou.
– Sim, gostaria de olhar alguns.
Harris foi até o armário, abriu a porta
e pegou alguns papéis amassados e rasgados do fundo. Entregou-os
para mim.
– Escrevi esses aí na noite passada.
Então ele foi até a cozinha e voltou
com mais duas cervejas. Margie não bebia.
Comecei a ler os poemas. Eram todos
poderosos. Ele datilografava com a mão muito pesada, e as palavras
pareciam cinzeladas no papel. A força de sua escrita sempre me
surpreendia. Parecia estar dizendo todas as coisas que deveríamos
dizer, mas que nunca teríamos coragem de pronunciar.
– Vou levar esses poemas – eu disse.
– Ok – ele disse. – Beba.
Quando se visitava Harris, beber era uma
obrigação. Ele fumava um cigarro atrás do outro. Usava calças
marrons de algodão, folgadas, dois número acima do que seria o
correto, e camisas velhas que estavam sempre em frangalhos. Tinha
aproximadamente um metro e oitenta de altura e pesava uns cem quilos,
em grande parte decorrentes da cerveja. Tinha os ombros caídos e nos
espiava por trás das pálpebras semicerradas. Bebemos por cerca de
duas horas e meia, o ar estava saturado pela fumaça. Subitamente
Harris se levantou e disse:
– Dê o fora daqui, seu escroto, você
me dá nojo!
– Calma, Harris, calma…
– Eu disse AGORA! Escroto!
Levantei e parti com os poemas.
Voltei àquele casarão dois meses mais
tarde para entregar algumas cópias da Mad Fly para Harris.
Tinha publicado todos os dez poemas dele. Margie me deixou entrar.
Randall não estava lá.
– Ele está em Nova Orleans – disse
Margie –, acho que ele está tirando uma folga. Jack Teller quer
publicar seu próximo livro, mas ele quer conhecer Randall antes.
Teller diz que não pode editar ninguém de quem não goste. Pagou a
passagem área de ida e volta.
– Randall não é o que se poderia
chamar de um sujeito cativante – eu disse.
– Veremos – disse Margie. – Teller
é um bêbado e um ex-presidiário. Talvez formem uma bela dupla.
Teller publicava a revista Riftraff
e tinha seu próprio prelo. Fazia um belo trabalho. A última edição
de Riftraff tinha a cara feia de Harris na capa mamando em uma
garrafa de cerveja e trazia alguns de seus poemas.
Riftraff era amplamente
reconhecida como a revista literária número um da época. Harris
estava começando a ganhar mais e mais destaque. Isso acabaria se
tornando uma boa chance para ele, se não a estragasse com sua língua
pérfida e seus modos de bêbado. Antes de partir, Margie me disse
que estava grávida... de Harris. Como eu disse, ela tinha 45 anos.
– O que ele disse quando você lhe
contou?
– Pareceu indiferente.
Parti.
O livro realmente foi publicado em uma
edição de dois mil exemplares, muito bem impressos. A capa era
feita de cortiça importada da Irlanda. As páginas eram
multicoloridas e de um papel extremamente bom, impressas em um tipo
exótico e entremeadas com alguns desenhos em nanquim que o próprio
Harris havia feito. A edição foi aclamada, tanto pelo livro em si
quando pelo conteúdo. Mas Teller não podia pagar os royalties.
Ele e sua esposa viviam com uma margem de lucro muito pequena. Em dez
anos o livro passou a custar 75 dólares no mercado de livros raros.
Enquanto isso Harris voltou para seu emprego de despachante no
armazém de autopeças.
Quando fui visitá-lo novamente, quatro
ou cinco meses depois, Margie se fora.
– Ela partiu há muito tempo – disse
Harris. – Beba uma cerveja.
– O que aconteceu?
– Bem, depois que voltei de Nova
Orleans, escrevi alguns contos. Enquanto eu estava no trabalho, ela
revirou minhas gavetas. Leu algumas das minhas histórias e ficou
alterada com o conteúdo delas.
– Sobre o que eram?
– Ah, sobre as minhas aventuras
amorosas com algumas mulheres em Nova Orleans.
– As histórias eram verdadeiras? –
perguntei.
– Como vai a Mad Fly? –
perguntou.
A criança nasceu, uma menina, Naomi
Louise Harris. Ela e a mãe viviam em Santa Mônica, e Harris dirigia
até lá uma vez por semana para vê-las. Pagava pensão alimentícia
e continuava bebendo sua cerveja. Depois disso, soube que ele
mantinha uma coluna semanal no jornal de vanguarda Los Angeles
Lifeline. Chamava suas colunas de Impressões de um Maníaco
de Primeira Classe. Sua prosa era como sua poesia:
indisciplinada, antissocial e preguiçosa.
Harris deixou crescer um cavanhaque e
deixou seu cabelo mais comprido. Na próxima vez que o vi, estava
vivendo com uma garota de 35 anos, uma ruiva bonita chamada Susan.
Susan trabalhava em uma loja de material de desenho, pintava e tocava
violão razoavelmente. Também bebia ocasionalmente uma cerveja com
Randall, que era mais do que Margie fazia. O casarão parecia mais
limpo. Quando Harris acabava uma garrafa, atirava-a numa sacola de
papel, em vez de atirá-la no chão. Mas, ainda assim, era um bêbado
terrível.
– Estou escrevendo um romance – ele
me disse –, e às vezes arranjo alguma leitura de poesia nas
universidades da região. Também tenho uma leitura marcada em
Michigan e outra no Novo México. As ofertas são bem boas. Não
sinto vontade de ler, mas sou um bom leitor. Dou a eles um show e um
pouco de boa poesia.
Harris também estava começando a
pintar. Não pintava muito bem. Pintava como uma criança de cinco
anos que tivesse enchido a cara de vodca, mas dava um jeito de vender
um ou dois quadros por quarenta ou cinquenta dólares. Contou-me que
estava pensando em abandonar seu emprego. Três semanas depois ele
realmente largou o emprego para fazer a leitura em Michigan. Já
tinha usado as férias a que tinha direto para fazer a viagem a Nova
Orleans.
Lembrei de uma vez em que ele me havia
prometido:
– Jamais lerei diante daqueles
sanguessugas, Chinaski. Vou pra cova sem nunca fazer uma leitura
pública. É pura vaidade, é se vender.
Não o lembrei dessa afirmação.
Seu romance A morte na vida de todos
os olhos sobre a face da Terra foi publicado por uma pequena
porém prestigiada editora que pagava royalties regularmente. As
críticas foram boas, incluindo uma na New York Review of Books.
Mas ele ainda era um bêbado terrível e brigava constantemente com
Susan por causa da bebida.
Finalmente, depois de um porre homérico,
em que ele se enfureceu, amaldiçoou e gritou a noite toda, Susan o
deixou. Vi Randall vários dias depois que ela partira. Harris estava
estranhamente quieto, quase normal.
– Eu a amava, Chinaski – ele me
disse. – Não vou conseguir superar essa, meu chapa.
– Você vai conseguir, Randall. Você
vai ver. Vai conseguir. O ser humano é muito mais resistente do que
você pensa.
– Merda – ele disse –, espero que
você esteja certo. Estou com um buraco danado no peito. As mulheres
já colocaram muitos homens bons embaixo da ponte. Elas não sentem
isso da forma que nós sentimos.
– Elas sentem, sim. Ela só não
conseguia mais suportar as suas bebedeiras.
– Porra, homem, escrevo a maioria dos
meus textos quando estou bêbado.
– É esse o segredo?
– Merda, claro que é. Sóbrio, sou
apenas um despachante, e não dos melhores...
Deixei-o lá agarrado em sua cerveja.
Voltei a visitá-lo três meses mais
tarde. Harris ainda estava em seu casarão. Ele me apresentou Sandra,
uma loira bonita de 27 anos. Seu pai era um juiz da suprema corte, e
ela era uma estudante de graduação na Universidade do Sul da
Califórnia. Além de ter um corpo bem-torneado, tinha certa
sofisticação e classe, algo que faltara nas outras mulheres de
Randall. Estava bebendo uma garrafa de vinho italiano.
O cavanhaque de Randall tinha se
transformado em uma barba e seu cabelo estava ainda mais comprido.
Suas roupas eram novas e da última moda. Estava usando sapados de
quarenta dólares, um relógio de pulso novo e seu rosto parecia mais
magro, suas unhas, limpas... mas seu nariz ainda enrubescia à medida
que ia bebendo o vinho.
– Randall e eu vamos nos mudar para
West L.A. Este fim de semana – ela me disse. – Esse lugar é
imundo.
– Escrevi muitas coisas boas aqui –
ele disse.
– Randall, querido – ela disse –,
não é o lugar que escreve, é você. Acho que podemos
lhe arranjar um emprego de professor para lecionar três dias por
semana.
– Não sei ensinar.
– Querido, você pode lhes ensinar
tudo.
– Merda – ele disse.
– Estão pensando em fazer um filme
baseado no livro de Randall. Vimos o roteiro. É um belo roteiro.
– Um filme? – perguntei.
– A probabilidade é baixa – disse
Harris.
– Querido, estão trabalhando nele.
Tenha um pouco de fé.
Bebi outro cálice de vinho com eles e
então parti. Sandra era uma garota bonita.
Não recebi o endereço de Randall em
West L.A. E não fiz nenhuma tentativa de localizá-lo. Cerca de um
ano depois, li uma resenha do filme Flor no cu do inferno. Era
baseado em seu romance. Era uma crítica favorável e Harris chegou
mesmo a atuar em um pequeno papel.
Fui assistir. Tinham feito um bom
trabalho em cima do livro. Harris parecia um pouco mais austero do
que quando o havia visto pela última vez. Decidi encontrá-lo.
Depois de um tempo dando uma de detetive, bati à porta de sua cabana
em Malibu uma noite por volta das nove. Randall atendeu.
– Chinaski, seu cachorro velho – ele
disse. – Entre.
Uma bela garota estava sentada no sofá.
Parecia ter aproximadamente dezenove anos, simplesmente irradiava uma
beleza natural.
– Essa é Karilla – ele disse.
Eles estavam bebendo uma garrafa de vinho
francês, dos caros. Sentei com eles e bebi um cálice. Tomei vários
cálices. Outra garrafa apareceu e conversamos calmamente. Harris não
ficou bêbado e inoportuno e não pareceu fumar muito.
– Estou trabalhando numa peça para a
Broadway – ele me disse. – Dizem que o teatro está morrendo, mas
eu tenho algo para eles. Um dos principais produtores está
interessado. Estou finalizando o último ato agora. É um gênero
interessante. Sempre fui craque nos diálogos, você sabe.
– Sim – eu disse.
Fui embora lá pelas onze e meia naquela
noite. A conversa tinha sido agradável... As têmporas de Harris
começavam a exibir um respeitável tom grisalho, e ele não disse
“merda” mais do que quatro ou cinco vezes.
A peça Atire em seu pai, atire em seu
Deus, livre-se do desembaraço era um sucesso. Estava entre as
peças recordistas em tempo de exibição na Broadway. Tinha de tudo:
algo para os revolucionários, algo para os reacionários, algo para
os que amavam comédia, para os que amavam drama, tinha até mesmo
algo para os intelectuais e, ainda assim, fazia sentido. Randall
Harris se mudou de Malibu para uma casa maior em Hollywood Hills.
Agora é possível saber notícias dele pelos tablóides.
Após algumas dificuldades, encontrei a
localização de sua casa em Hollywood Hills, uma mansão de três
andares com vista para as luzes de Los Angeles e Hollywood.
Estacionei, saí do carro e caminhei pela
passagem que levava até a porta da frente. Era perto das oito e meia
da noite, a temperatura estava baixa, quase fazia frio; a lua estava
cheia e o ar fresco e limpo.
Toquei a campainha. Pareceu-me uma longa
espera. Finalmente a porta se abriu. Era o mordomo.
– Sim, senhor? – me perguntou.
– Vim para ver Randall Harris, da parte
de Henry Chinaski – eu disse.
– Um momento, por favor, senhor.
Ele fechou a porta em silêncio e
esperei. Mais uma vez, um longo intervalo. Então o mordomo voltou.
– Sinto muito, senhor, mas o sr. Harris
não pode ser perturbado neste momento.
– Oh, tudo bem.
– Gostaria de deixar uma mensagem,
senhor?
– Uma mensagem? Sim, dê-lhe os meus
“parabéns”.
– “Parabéns”? Isso é tudo?
– Sim, isso é tudo.
– Boa noite, senhor.
– Boa noite.
Voltei para o meu carro, entrei. Dei a
partida e comecei a longa viagem descendo as colinas. Tinha comigo
aquela antiga cópia da Mad Fly que queria que ele
autografasse. Era a cópia com dez poemas de Randall Harris. Ele
provavelmente estava ocupado. Talvez, pensei, se eu mandasse pelo
correio a revista com um envelope selado de resposta, ele assinasse.
Eram apenas nove da noite. Havia tempo
para ir a um outro lugar.
Charles Bukowski, in Ao Sul de Lugar Nenhum
Famosa novela A Feia Mais Bela vídeo exclusivo em alta qualidade para assistir de graça, todos os episódios sem cortes do aqui em um site telinha online
ResponderExcluir